O Antídoto da Morte (Parte VII)
Eu estava apavorado com a figura demoníaca, que transformava almas em estrelas de fogo para queimar por toda a eternidade, por isso, demorei a criar coragem e procurar a Preta Velha.
***
Era uma mulher feia, desdentada, com cabelos incrivelmente brancos. Fumava um cachimbo tão negro quanto a cara ossuda. Os olhos anil não deixavam dúvidas de que era cega.
A vendedora de ervas ficava sentada em um canto úmido, onde as pessoas evitavam passar por conta do odor insuportável de fezes e urina. As cestas cheias de ramos secos ficavam encostadas em um colossal pilar onde se podia ler, entre desenhos obscenos, a frase esdrúxula: "Deus vê tudo, mas não é X9."
- Chegue mais perto! Disse ela ao levantar a cabeça e dilatar as narinas.
Aproximei e agachei bem à sua frente. Com movimentos ágeis, ela me agarrou pelos cabelos, e me puxou para junto dela. De repente, antes que eu pudesse protestar, sugou o cachimbo e soprou na minha cara. A fumaça de cheiro adocicado invadiu os meus pulmões e uma sensação de torpor fez com que eu fosse lentamente perdendo as forças.
O beijo foi inevitável, senti a aspereza da língua dela ao sorver o fluido amargo que passou queimando pelo meu esôfago.
Desmaiei... Não sei por quanto tempo ficamos conectados, mas quando a velha terminou de lamber meus dentes, eu estava exausto. Assim que achei que tinha recuperado os sentidos e ficado de pé, a vontade que tive foi correr muito. A anciã percebeu e me deteve com um grito rouco e depois baixou a voz quase em um sussurro:
- ESPERE! Já sei o que procuras, foi Alloces quem te mandou...
Acenei com a cabeça, baixei os olhos e, perplexo, perguntei:
- Como sabe?
- Já estive no inferno e conheço o grande Duque e suas trinta e seis legiões de demônios. Entrei no seu corpo para ler seus pensamentos. Há coisas que até a alma se recusa a dizer. Ainda quer saber onde encontrar o Bruxo Josué?
Respondi que sim, e ela engoliu seco antes de falar:
- Então só lhe resta entrar na floresta e descer a correnteza do rio das garças. Encontrará o bruxo em uma caverna atrás da cachoeira das lontras...
Fiz menção de enfiar a mão no bolso e lhe dar algumas moedas. Mas, ainda meio grogue, sem saber se eu era espírito ou carne, tive a impressão de ter visto um olho se abrir entre os tufos de cabelos brancos quando ela disse:
- Não faça isso, não careço de nada. Agora siga seu caminho, há outras almas precisando de ajuda, veja!
Olhei para o outro lado da rua. Pessoas agonizantes, com ferimentos em carne viva, aguardavam para serem atendidas.
***
Acordei minutos depois com um homem fardado batendo com o bico do coturno em meu ombro. Eu estava no chão, em posição fetal. Minha roupa, enlameada, cheirava a excremento humano. Meio atordoado, fiquei de pé, olhei ao redor e não vi a preta velha, nem seus balaios abarrotados de folhas mortas.
Perguntei ao guarda municipal pela senhorinha cega que vendia ervas. Ele fez um movimento circular com o cassetete e disse:
- Camarada! Faz uns dez anos que morreu. Mas, não se preocupe, tem um Senhor na Av. Cônego João Clímaco, próximo à Prefeitura, que mexe com isso.
- Mas... Como? Eu, eu... Não consigo compreender...
O homem notando a minha decepção, continuou:
- Deveria ter quase cem anos. Pelo o que fiquei sabendo, infartou. Foi encontrada aí, próxima ao pilar, caída sobre os balaios.
Agradeci ao servidor público, disse que tive um mal súbito e dei uma desculpa que quem me indicou, provavelmente, não sabia que ela havia falecido.
Voltei a pé para casa, eu estava sujo e fedendo à beça para entrar em um coletivo.
***
O rio das garças cortava a cidade, e antes de desaguar no mar, percorria um grande percurso pela Floresta. A cachoeira das lontras, segundo me informei, era de difícil acesso, e para chegar lá, eu precisava de um barco.
Esperei até poder comprar um, e com um misto de medo e esperança, fui desgraçar ainda mais o meu cruel destino.
Quase não precisei remar, o vento tinha pressa em me levar...
Em um trecho de calmaria a água acumulada era tão verde e parecia tão fresca que pensei em pular dentro dela. Entretanto, me lembrei do pescador que me vendeu o barco. Ele disse que, quando chegasse ao grande delta, eu deveria tomar cuidado, pois, naquela região, muitos foram devorados por imensos jacarés. Mudei de ideia, e deslizando entre as plantas aquáticas, fui observando o desespero de homens e mulheres, que das margens gritavam para que eu desistisse. Com certeza, tendo em vista o estado deplorável das carcaças, já não pertenciam a esse mundo...
Alguns quilômetros adiante o rio foi se afunilando e ganhando força surpreendente. Desci batendo por aquele corredor de pedras cortantes, até que de forma instintiva tive de saltar da embarcação. Caí sobre a margem escorregadia. Tive sorte ao conseguir me agarrar a um pequeno galho e me arrastar até a parte seca.
Meu barco desceu pela cachoeira das lontras e, pelo impacto lá embaixo, se transformou em mais de mil pedaços.
Logo escureceu e a noite parecia não terminar jamais, pois a voz da floresta e toda aquela aguaceira batendo nas pedras lá embaixo me mantiveram com medo e tremendo de frio até o raiar do dia.
Os primeiros raios de luz surgiram no horizonte despertando centenas de aves que, das árvores pregadas na encosta, deixavam seus ninhos e mergulhavam orgulhosas na umidade suspensa do ar. Insensatos pássaros de aquarela, que achavam que suas asas eram os pincéis usados pelo sol para colorir o arco-íris desenhado pelo vento: rica moldura para aquele cenário de beleza e de magia.
A possante queda d’água deveria ter bem mais de duzentos metros. Do alto, gritei: "Josué, Josué..."
O som ecoou pelo vale e por alguns segundos calou a melodia dos pássaros, mas nada dele responder e romper aquele momentâneo silêncio.
Desci pelas rochas, agarrando a cipós e frágeis arvoretas. Olhei para baixo e me senti tonto ao ver as brumas, que entre a mata exuberante, transformavam o sinuoso rio em uma longa estrada de algodão.
Havia momentos de intenso pavor quando, sem outra opção, o caminho me levava a bem próximo das águas que, batendo nas rochas, me respingava. Encharcado e com um frio daquele que faz tremer todos os ossos do corpo, imaginei que não demoraria a perder os sentidos e que logo faria companhia aos destroços da embarcação. Minha vista escureceu e quando tudo parecia ter fim, ouvi a sua voz:
- Não desista, o pior já passou...
O jovem índio estava em uma língua de pedra projetada no meio da cachoeira. Era uma espécie de altar, onde a figura de um Deus, iluminada por infinitos raios de sol, parecia flutuar com suas imensas asas esculpidas na beleza das águas...
Continua....