Quando os alemães chegaram, nós os saudamos como heróis que iriam destruir a foice que nos ceifava e o martelo que nos oprimia e aclamamos sua chegada com festa e júbilo enquanto as mulheres distribuíam flores brancas aos soldados da Wehrmacht.
Parecia que, enfim, viveríamos aquele sonho de liberdade que tinha levado tantos de nós para os porões da Lubianka e de lá para a Sibéria.
Eu tinha quatorze anos e estava eufórico e orgulhoso por ter sido convocado para servir ao comando alemão que se instalara no prédio onde, por toda a minha vida, funcionara a sede do temido governo bolchevique.
Alguns dias após entrada triunfal e festiva das tropas alemãs, eu estava no único café da cidade comendo meu desjejum quando ouvi a proprietária conversando com uma de suas filhas sobre quem ficaria com a casa dos Koschnner quando eles fossem levados.
Naquele estado de espírito em que eu me encontrava, me perguntei quem levaria os Koschnner e porque eles desejariam ir embora agora que estávamos livres dos comunistas, contudo, aquelas palavras não ocuparam meus pensamentos por muito tempo. Havia tanta coisa acontecendo a nossa volta e eu queria fazer parte daquilo tudo.
Na tarde daquele mesmo dia, um novo grupo de alemães chegou a nossa cidade, entretanto, daquela vez não houve flores para saudar aqueles homens que trouxeram com eles uma atmosfera de angustia e medo que tomou conta de todos indistintamente, como se a sombra da morte os tivesse acompanhado até ali.
Havia algo de insano e terrível naqueles olhos claros, como se há muito tivessem deixado de ser olhos humanos. Seus uniformes negros e alinhados, as botas reluzentes e a caveira incrustada na lapela ao lado de duas letras “s” em forma de raios denunciavam que aqueles homens não faziam parte do exército regular e era visível que até os soldados da Wehrmacht sentiam-se pouco a vontade em sua companhia.
Poucos dias depois da chegada daqueles oficiais vestidos de negro, vi toda família Koshnner deixando a bela casa em que vivia na rua principal e percebi que cada um deles levava consigo somente uma pequena mala.
Logo reparei que outras famílias deixavam suas casas e, assim como a família Koschnner, pareciam abandonar tudo, enquanto deixavam para trás a vida que haviam construído e até as lembranças e levavam consigo somente aquilo que lhes era essencial.
Acompanhei aquelas pessoas que caminhavam em um silêncio perturbador que não era rompido nem mesmo pelas vozes das inúmeras crianças que faziam parte do cortejo. Todos eles pareciam devastados e vencidos, e pude perceber que, durante todo o caminho, aqueles que até então tinham sido seus vizinhos e amigos não fizeram qualquer menção de se despedirem daquelas pessoas que conheciam desde sempre enquanto que outros até mesmo fechavam as janelas ou viravam as costas fingindo não ver aquela procissão silenciosa.
Não conseguia parar de me perguntar para onde aquelas pessoas estavam indo até que chegamos à praça central da cidade onde uma multidão já se aglomerava formando filas em frente as pequenas mesas ocupadas por aqueles oficiais de olhos vazios que as interrogava uma a uma para, em seguida, ordenar que deixassem seus pertences ali mesmo e subissem em caminhões que seguiam lotados em direção à floresta.
Todo aquela contabilidade metódica que incluía a anotação do nome de todos os membros da família que seriam levados assim como seu expresso consentimento quanto a entrega de todos os seus bens ao III Reich, levou horas.
Horas em que aquelas pessoas ficaram ali, sob o sol, suportando frio e fome, exaustos e destruídos, após terem dividido a pouca comida que haviam levado para aquela viagem que, talvez agora, quando já não tinham forças para resistir, percebessem ser sem volta.
Fiquei ali hipnotizado por aquela cena, me perguntando por que eles aceitavam aquilo, por que simplesmente não se levantavam e iam embora, afinal, havia muitos mais deles do que daqueles homens de preto e me questionando, acima de tudo e enquanto roía minhas unhas tomado pelo desespero e pela impotência, por que os outros moradores da cidade aceitavam aquela situação.
O dia passou entre as idas e vindas daqueles caminhões que transportavam os homens, mulheres e crianças como se fossem gado sendo levado para o abatedouro e que aceitavam tudo aquilo com a resignação dos vencidos até que a última carga de gente foi embarcada.
Vi quando Davi Koschnner subiu na traseira do caminhão e olhou para trás. Nossos olhos se cruzaram por um breve instante e ele acenou com a cabeça antes de virar-se para encarar seu destino.
O caminhão ainda não tinha deixado a praça quando alguns dos moradores da cidade começaram a aparecer e, por alguns instantes, acreditei que enfim vinham exigir que os alemães revelassem para onde tinham levado seus amigos e vizinhos, mas eu estava enganado, eles estavam ali para garimpar, como abutres, os bens deixados para trás por aqueles que tinham ido embora.
Senti um ímpeto de gritar, de dizer que havia algo de errado naquilo tudo, porém, a única coisa que fui capaz de fazer foi correr em direção ao caminhão que se afastava em direção à floresta. Continuei correndo mesmo quando ele se afastou demais, continuei correndo pela estrada entumecida pelo frio, continuei quando minhas pernas queriam parar e meu pulmão ardia, continuei, continuei e continuei até que, ao longe, ouvi tiros.
Aproximei-me com cuidado e pude ver aquele ritual medonho de corpos pálidos e despidos de tudo que seguiam obedientes em fila até o enorme buraco cavado no chão duro onde se ajoelhavam para que um tiro explodisse suas nucas lançando-os na vala comum.
Quando o último corpo caiu, os homens de uniforme preto se prepararam para deixar para trás mais um dia de trabalho extenuante e seguir em busca de uma boa refeição quente e de seu merecido descanso.
Eles passaram por mim sem sequer me notar encolhido ali em meio aos arbustos e ouvi-os conversando sobre trivialidades, enquanto um deles assobiava um trecho da opera Tosca, de Puccini, como se não sentissem o peso de todas aquelas vidas que haviam acabado de destruir.
A banalidade da conversa frívola e do comportamento despretensioso tornava a crueldade de tudo aquilo ainda mais latente.
Desci a ravina até o grande espaço de terra remexida onde encontrei centenas de corpos abandonados ao relento, sem qualquer resquício de dignidade.
Era difícil assimilar o absurdo de tudo aquilo, ainda assim, eu não conseguia desviar os olhos daquela orgia de morte que cheirava a sangue, urina e fezes.
Reconheci, em meio àquele emaranhado de pele e cabelos, o corpo magro de David Koschnner. Seus olhos, que eram tão azuis quanto os olhos daqueles que o haviam assassinado, ainda estavam abertos e fitavam o céu infinitamente negro acima dele.
De sua boca escorria um filete de sangue e aquela cena me fazia pensar que tínhamos a mesma idade, que havíamos estudado na mesma sala até poucos meses antes e que eu não podia simplesmente deixa-lo lá. Eu tinha que, ao menos, fechar seus olhos para que ele pudesse descansar, para que, da eternidade, ele não visse todo aquele horror.
Então, caminhei com lágrimas nos olhos sobre os corpos que afundavam a minha passagem, até aquele garoto que, mesmo nunca tendo sido meu amigo próximo eu sabia, tocava violino e era ótimo em matemática.
Ajoelhei-me ao seu lado e pedi perdão por nada ter feito para impedir aquilo. Chorei por ele e por todos aqueles que estavam ali, por todas aquelas vidas desperdiçadas e por todos os outros que ainda morreriam daquele jeito. Mas, acima de tudo, chorei por nos que aceitamos aquele crime com naturalidade.
Amanhecia quando enfim toquei a pele de suas pálpebras com cuidado e me despedi fechando seus olhos enquanto os primeiros flocos de neve caiam sobre seu corpo e sobre cada um daqueles corpos como uma mortalha e que seriam esquecidos naquele campo de morte sob o céu da Ucrânia.