O ASSASSINO DA MADRUGADA
Aquela primeira madrugada de maio parecia carregar em sua névoa, muito mais do que a umidade das nuvens suspensas. Era possível sentir na pele um frio que submergia a alma em um mar denso e congelante, despedaçando-a em tristes fragmentos de ausência e saudade. Talvez fosse por essa atmosfera de incompletudes que as pessoas decidiram por repousarem mais cedo, até mesmo os jovens, conhecidos por seus impulsos naturais para pernoitar. O sono parecia uma manta protetora lançada sob aquela cidade para que, aquele raro e sutil silêncio não fosse profanado. Contudo, as regras sempre se lançam de uma ou mais exceções. Para todo caso, um jovem de vinte anos havia se demorado demais no encontro dos amigos.
Contrariando todos os convites, decidiu recusar passar a noite junto dos demais, subindo em sua lambreta e dirigindo-se de volta à sua casa. O cheiro de álcool era exalado de sua boca e fazia com que a rua se movimentasse, quando não, se dividisse em outras ruas que logo desapareciam. Não fosse o pior, a névoa lhe dava uma rasa visão de alguns centímetros a frente de sua vista. Todo o resto eram um conjunto de formas e borrões quase incompreensíveis.
Aos poucos, o frio daquela noite começava a despertá-lo de seu estado alcoólico. Sentiu a neve ficar mais fria e pesada, sufocando até mesmo sua respiração. A poucos metros da ponte, a lambreta apagou. O rapaz tentou girar a chave, mas sem sucesso. Ao balançar o veículo, ouviu o barulho do combustível nas paredes do tanque. Também não constatou nem um fio desconectado ou com mau-contato durante uma rápida inspeção. Respirou fundo, decepcionado. De repente, sentiu-se agitado por uma forte presença. Olhou para os dois lados da rua e não viu ninguém. Subiu na lambreta e usou toda a força que tinha para tentar dar a partida. Após várias tentativas, o veículo respondeu. Passou com toda a velocidade por cima do relevo da ponte, o que o fez praticamente voar durante breves segundos. Cruzava a ponte com aceleração total, tal qual alguém que fugia da morte. Restava-lhe saber que ela estava dois passos a sua frente.
A adrenalina mal o fizera perceber a enorme figura ao final da ponte. Sentiu um golpe no peito, tal qual um coice de animal. A lambreta seguiu seu rumo, desorientada até bater na mureta de proteção da ponte. O impacto usurpou-lhe o fôlego e o levou ao atrito com o chão. Parou poucos metros depois, com a pele esfolada do atrito com o asfalto. Talvez fosse a dor do golpe, ou a névoa cada vez mais densa da madrugada, mas ele percebera que não tinha forças para se levantar.
Do outro lado da ponte, uma sombra escura o observava. A silhueta de um homem envolto em um sobretudo, cujo os olhos amarelos brilhavam como se fosse um felino, conferiam-lhe o aspecto de uma criatura nascida da própria escuridão da noite. Era circulado de um ar tão gélido que a neblina ao seu redor se convertia quase que instantaneamente em orvalho. O movimento dos seus lábios pareciam recitar uma espécie de canto ou maldição, que ressoavam como um aparelho de rádio antigo, ressoando nos tímpanos mesmo que os ouvidos fossem tampados. Em uma primeira visão, o jovem se desesperara ao notar a presença de semelhante criatura. Tentou gritar, mas as contrações de seus pulmões e garganta eram incapazes de emitir qualquer som.
Quando caiu em si, continuou a se arrastar para longe daquele ser. Olhou novamente: a criatura havia desaparecido. O jovem então rendeu-se a exaustão. Ficou um tempo debruçado no asfalto, perguntando a si mesmo se estava preso em um pesadelo ou algo do tipo. Enquanto expirava todo o ar dos pulmões, voltou a sentir aquela presença gélida. Os múrmuros que antes tinham se silenciado, agora retornavam mais intensos e graves. Sem escolha, o jovem começou a implorar por sua vida, entregando-se às lágrimas e ao desespero. O homem então começou a andar calmamente. Por um breve segundo, o rapaz tranquilizou-se, mas tudo mudou quando sentiu seu tornozelo sendo agarrado. O aperto da mão da criatura mais parecia uma prensa hidráulica, que não tardou a quebrar os ossos do jovem, que ainda sem voz, se debatia descontroladamente de dor. Tão atordoado, sequer sentiu o corpo sendo erguido pouco acima da cabeça da criatura e arremessado com toda a força de volta ao chão. A dor era aguda e agora se espalhava por todo o corpo ao ponto de quase deixá-lo quase sem consciência. Levou uma das mãos à cabeça e percebeu os dedos manchados de um líquido escuro e viscoso. Olhava ao redor e tudo o que continuava a ver era a fria e densa névoa escondendo tudo e sufocando seus pedidos de socorro. De ouvido no chão, conseguia ouvir o barulho do rio correndo por baixo da ponte e isso o recordava do qual real era tudo aquilo.
Começava a se perder nos próprios pensamentos quando o homem se agachou próximo a ele, fechou os punhos erguidos e preparou mais um golpe. O jovem tentava usar suas últimas forças para suplicar que aquele indivíduo encerrasse toda aquela sessão de tortura. A força último golpe quebrou três costelas e danificou seu coração.
Arrastado pelos pés até o poste de luz mais próximo, o rapaz balbuciava seus últimos suspiros. As mudas palavras tornavam-se então golfadas de sangue quente e seu olhar contemplava um ambiente cada vez mais distante. O homem então retirou o capuz e o jovem fez uma expressão de assustado, como se o conhecesse. Agora sufocado pela mão do assassino tapando sua boca e nariz, o jovem se debatia, sufocado tanto pela falta de ar quanto pelo sangue dos órgãos dilacerados, em poucos minutos, o corpo estava totalmente entregue à gravidade, sem oferecer quaisquer resistência: estava morto.
O homem então afastou-se alguns passos, recolocou o capuz que ocultava seu rosto, contemplando aquela cena como se houvesse esperado uma vida por ela. Uma massa de névoa ainda mais densa, arrastada por uma corrente de ar, levou consigo a presença da estranha criatura, deixando ao relento daquela madrugada inacabada, o cadáver de um jovem recostado ao poste de luz, com um pequeno bilhete amarelo na mão esquerda.
Quando o dia amanheceu, a neblina já havia se convertido em orvalho e as pessoas começavam a despertar de seu descanso. Um leiteiro que fazia suas entregas matinais encontrou o corpo. Uma multidão se aglomerou no local, tecendo inúmeras teorias sob a causa do crime. A polícia realizava suas investigações preliminares, coletando não somente as marcas do homicídio, como também as dúvidas que pairavam sobre ele. Tudo o que tinham era o bilhete deixado para trás pelo assassino, uma mensagem que deixava todos em alerta, atuando como um prelúdio de uma história policial que havia saltado dos livros para a realidade: “Para que eu possa descansar em paz, outras sete pessoas irão partilhar do mesmo destino, aguardem os corpos.”
O medo se instaurou na pacata cidade. As névoas continuariam por um bom tempo e com elas, um mensageiro da morte que esperaria pacientemente pela próxima vítima. E essa vítima, apareceu três dias depois, em outra escura madrugada…