Laurinha tem oito anos de idade. Nos olhos tímidos, que fogem toda vez que alguém olha para ela de frente, revela um desejo de ocultar o que se passa em sua mente. É que ela pensa e pensa muito. Sua imaginação é um rio de águas turbulentas e profundas que hospedam uma fauna de seres imaginários e tão bizarros, que o mundo cá de fora logo se poria a persegui-los para matá-los se ela deixasse que eles saíssem do zoológico da sua imaginação e começassem a passear pelas ruas.
Por isso Laurinha não deixa nenhuma pessoa entrar nos seus pensamentos. Ninguém pode ver a criação de bichos estranhos que ela faz dentro da sua cabeça. Lá vivem gatos imensos, com duas cabeças e unhas tão afiadas quanto a navalha que seu padrasto usa para fazer a barba pela manhã. Cães com olhos vermelhos e dentes tão pontiagudos e cortantes quanto as facas que ele usa para fatiar as carnes para o churrasco domingueiro. Cavalos alados, com crinas esfogueadas e esvoaçantes, que cavalgam nas nuvens e possuem patas tão pesadas e firmes quanto os enormes pneus da caminhonete do Vitor, seu padrasto. Gansos com cabeça de cobra, que tem bicos serrilhados como o serrote que ele usa para cortar madeiras; e quando mordem expelem um veneno mortal que mata em poucos segundos. Galinhas que botam ovos com serpentes dentro. Vermes imensos que comem pessoas numa bocada só. Lagartixas que expelem fogo pelas narinas. Formigas enormes, que carregam afiadas tesouras na testa.
Mas nem sempre Laurinha foi assim. Essa estranha criação de bichos fantásticos começou depois que seu pai morreu, num acidente de automóvel. Ele e seu atual padrasto estavam viajando juntos e o carro capotou. Vitor sobreviveu , mas seu pai não. Três meses depois Vitor veio morar com eles.
Laurinha nunca entendeu bem o que tinha acontecido, mas de uma coisa ela sabia. Nunca gostou de ver outro homem na cama da sua mãe, no lugar do pai dela. Era um sentimento horrível aquele. Lembrava-se que ás vezes ela acordava á noite e corria para o quarto dos pais, se enfiando em baixo dos lençóis, no meio dos dois e ficava ali, abraçada ao pai de um lado, aconchegada á mãe de outro, gozando aquele calor gostoso que vinha dos corpos deles, mas que ela sabia que era alimentado principalmente pelo amor.
Sentia-se calma e segura com eles. Naquele tempo sua cabeça só pensava nas histórias que ouvia na escola, nas coisas bonitas que papai e mamãe falavam para ela, nas brincadeiras com as amiguinhas, na sua boneca Tatiana, que era a companheira inseparável.
Agora tudo mudara. Não tinha mais gosto em ir á escola, nem de ouvir e ler as histórias que a professora contava ou mandava ler, nem de brincar mais com as amigas. Até a Tatiana fora abandonada, numa caixa cheia de brinquedos, que ela jogara no fundo do armário.Nunca mais tivera vontade de ir ao quarto da mãe, pois agora, ao ver aquele homem ali, no lugar do pai dela, seu coração se apertava e os sangue afluia nos olhos e na cabeça, com uma força tal que ela voltava correndo para sua cama com medo da sua cabeça estourar.
Sua cabeça, agora, se ocupava só da criação daqueles bichos estranhos. E tudo começara numa noite em que sua mãe saíra com umas amigas, e ela ficara sozinha em casa, com o Vitor.
Ela estava dormindo e acordou com a estranha sensação de que alguém estava mexendo nela, num lugar que ela sabia ser muito delicado. Então ela acordou e viu Vitor, seu padrasto, deitado ao lado dela, acariciando as partes íntimas dela com uma mão, enquanto com a outra ele manipulava o seu próprio sexo. Ela quis falar alguma coisa, mas ele colou sua boca na dela e impediu-a de falar. Do mesmo jeito que ele fazia com sua mãe. O contato dos lábios dele nos dela foi o sentimento mais terrível que ela jamais tivera. Sentira gosto de sangue e de saliva. Era nojento. Mas pior foi a sensibilidade que lhe ficou dos toques que ele deu nas suas partes íntimas. Não doeu, mas deixou nela um sentimento de constrangimento, medo, nojo, ódio, e uma estranha sensação de ter feito coisa errada. Por isso não suportava olhares diretos.
Aquilo durou alguns minutos. Ela o viu se agitar e tremer como se fosse ter uma síncope. Então se acalmou como se tivesse ficado muito cansado. Depois levantou-se e saiu sem dizer uma única palavra, mas não deixou de olhar para ela com olhos malévolos e frios.
Ela soube imediatamente que aquele dedo que ele colocava nos lábios dela, toda vez que ia ao seu quarto á noite, significava silêncio. Queria dizer que ela não podia contar a ninguém que aquilo estava acontecendo.
Porque não foi somente uma vez que Vitor foi ao quarto dela á noite para fazer aquilo com ela. Foram várias vezes. E desde então ela começara a sentir-se esquisita, a sua cabeça começara a rodar aqueles sonhos malucos e a gerar aquelas estranhas imaginações.
Ninguém entendeu como aquele acidente aconteceu. Júlia, a mãe de Laurinha, ao depor na delegacia, disse que Vitor, seu marido acordou no meio da noite, dizendo ter ouvido um barulho na sala. Eles moravam em um sobrado. Os quartos ficavam na parte de cima. Então se levantara para ver o que era. Depois ela só ouvira três barulhos. O primeiro parecia um miado de gato quando alguém pisa no rabo dele. Depois o grito de Vitor, falando um palavrão, como se estivesse sendo atacado por alguém ou alguma coisa. Depois o som de um corpo rolando escadas abaixo. Então ela se levantou e o que viu algo tão assustador que ela não podia conter os arrepios toda vez que lembrava daquilo. Vitor estava morto aos pés da escada. Da sua cabeça, toda arrebentada na queda, saia um copioso rio de sangue. Um gato preto, de olhos vermelhos como carvões em brasa, lambia, com visível satisfação, o líquido viscoso que se espalhava pelo chão. Vitor morrera instantaneamente. Mas não havia decorrido mais que um minuto da sua morte e já um exército de vermes, enormes como lagartas, comiam seu cérebro exposto, que estava se derramando pela sala. Duas enormes lagartixas, que pareciam ter saído de sua boca, fugiram rapidamente quando ela começou a gritar. O estranho em tudo isso é que não havia gatos na casa. Nem jardim, de onde podiam ter saido aquelas lagartas. Quanto as lagartixas, era mais estranho ainda pois a casa havia sido dedetizada no dia anterior.
A única coisa que ela não viu foi Laurinha, no alto da escada, parada, olhando a cena. Nos olhos dela havia um estranho brilho.
Júlia levou muito tempo e gastou um bom dinheiro com psiquiatras para se recuperar. Mas Laurinha nunca mais teve aquelas alucinações com a estranha fauna que habitava em sua imaginação. Voltou a ser uma menina normal, que brinca com as amiguinhas, gosta das histórias contadas pelas professoras e não desvia mais o olhar quando alguém olha diretamente para ela. Voltou até a brincar com a Tatiana, a boneca que ela havia enterrado no fundo do armário.
Só quando alguém fala do seu padrasto Vitor, é que um estranho e malévolo brilho aparece nos seus doces e calmos olhinhos azuis.
Por isso Laurinha não deixa nenhuma pessoa entrar nos seus pensamentos. Ninguém pode ver a criação de bichos estranhos que ela faz dentro da sua cabeça. Lá vivem gatos imensos, com duas cabeças e unhas tão afiadas quanto a navalha que seu padrasto usa para fazer a barba pela manhã. Cães com olhos vermelhos e dentes tão pontiagudos e cortantes quanto as facas que ele usa para fatiar as carnes para o churrasco domingueiro. Cavalos alados, com crinas esfogueadas e esvoaçantes, que cavalgam nas nuvens e possuem patas tão pesadas e firmes quanto os enormes pneus da caminhonete do Vitor, seu padrasto. Gansos com cabeça de cobra, que tem bicos serrilhados como o serrote que ele usa para cortar madeiras; e quando mordem expelem um veneno mortal que mata em poucos segundos. Galinhas que botam ovos com serpentes dentro. Vermes imensos que comem pessoas numa bocada só. Lagartixas que expelem fogo pelas narinas. Formigas enormes, que carregam afiadas tesouras na testa.
Mas nem sempre Laurinha foi assim. Essa estranha criação de bichos fantásticos começou depois que seu pai morreu, num acidente de automóvel. Ele e seu atual padrasto estavam viajando juntos e o carro capotou. Vitor sobreviveu , mas seu pai não. Três meses depois Vitor veio morar com eles.
Laurinha nunca entendeu bem o que tinha acontecido, mas de uma coisa ela sabia. Nunca gostou de ver outro homem na cama da sua mãe, no lugar do pai dela. Era um sentimento horrível aquele. Lembrava-se que ás vezes ela acordava á noite e corria para o quarto dos pais, se enfiando em baixo dos lençóis, no meio dos dois e ficava ali, abraçada ao pai de um lado, aconchegada á mãe de outro, gozando aquele calor gostoso que vinha dos corpos deles, mas que ela sabia que era alimentado principalmente pelo amor.
Sentia-se calma e segura com eles. Naquele tempo sua cabeça só pensava nas histórias que ouvia na escola, nas coisas bonitas que papai e mamãe falavam para ela, nas brincadeiras com as amiguinhas, na sua boneca Tatiana, que era a companheira inseparável.
Agora tudo mudara. Não tinha mais gosto em ir á escola, nem de ouvir e ler as histórias que a professora contava ou mandava ler, nem de brincar mais com as amigas. Até a Tatiana fora abandonada, numa caixa cheia de brinquedos, que ela jogara no fundo do armário.Nunca mais tivera vontade de ir ao quarto da mãe, pois agora, ao ver aquele homem ali, no lugar do pai dela, seu coração se apertava e os sangue afluia nos olhos e na cabeça, com uma força tal que ela voltava correndo para sua cama com medo da sua cabeça estourar.
Sua cabeça, agora, se ocupava só da criação daqueles bichos estranhos. E tudo começara numa noite em que sua mãe saíra com umas amigas, e ela ficara sozinha em casa, com o Vitor.
Ela estava dormindo e acordou com a estranha sensação de que alguém estava mexendo nela, num lugar que ela sabia ser muito delicado. Então ela acordou e viu Vitor, seu padrasto, deitado ao lado dela, acariciando as partes íntimas dela com uma mão, enquanto com a outra ele manipulava o seu próprio sexo. Ela quis falar alguma coisa, mas ele colou sua boca na dela e impediu-a de falar. Do mesmo jeito que ele fazia com sua mãe. O contato dos lábios dele nos dela foi o sentimento mais terrível que ela jamais tivera. Sentira gosto de sangue e de saliva. Era nojento. Mas pior foi a sensibilidade que lhe ficou dos toques que ele deu nas suas partes íntimas. Não doeu, mas deixou nela um sentimento de constrangimento, medo, nojo, ódio, e uma estranha sensação de ter feito coisa errada. Por isso não suportava olhares diretos.
Aquilo durou alguns minutos. Ela o viu se agitar e tremer como se fosse ter uma síncope. Então se acalmou como se tivesse ficado muito cansado. Depois levantou-se e saiu sem dizer uma única palavra, mas não deixou de olhar para ela com olhos malévolos e frios.
Ela soube imediatamente que aquele dedo que ele colocava nos lábios dela, toda vez que ia ao seu quarto á noite, significava silêncio. Queria dizer que ela não podia contar a ninguém que aquilo estava acontecendo.
Porque não foi somente uma vez que Vitor foi ao quarto dela á noite para fazer aquilo com ela. Foram várias vezes. E desde então ela começara a sentir-se esquisita, a sua cabeça começara a rodar aqueles sonhos malucos e a gerar aquelas estranhas imaginações.
Ninguém entendeu como aquele acidente aconteceu. Júlia, a mãe de Laurinha, ao depor na delegacia, disse que Vitor, seu marido acordou no meio da noite, dizendo ter ouvido um barulho na sala. Eles moravam em um sobrado. Os quartos ficavam na parte de cima. Então se levantara para ver o que era. Depois ela só ouvira três barulhos. O primeiro parecia um miado de gato quando alguém pisa no rabo dele. Depois o grito de Vitor, falando um palavrão, como se estivesse sendo atacado por alguém ou alguma coisa. Depois o som de um corpo rolando escadas abaixo. Então ela se levantou e o que viu algo tão assustador que ela não podia conter os arrepios toda vez que lembrava daquilo. Vitor estava morto aos pés da escada. Da sua cabeça, toda arrebentada na queda, saia um copioso rio de sangue. Um gato preto, de olhos vermelhos como carvões em brasa, lambia, com visível satisfação, o líquido viscoso que se espalhava pelo chão. Vitor morrera instantaneamente. Mas não havia decorrido mais que um minuto da sua morte e já um exército de vermes, enormes como lagartas, comiam seu cérebro exposto, que estava se derramando pela sala. Duas enormes lagartixas, que pareciam ter saído de sua boca, fugiram rapidamente quando ela começou a gritar. O estranho em tudo isso é que não havia gatos na casa. Nem jardim, de onde podiam ter saido aquelas lagartas. Quanto as lagartixas, era mais estranho ainda pois a casa havia sido dedetizada no dia anterior.
A única coisa que ela não viu foi Laurinha, no alto da escada, parada, olhando a cena. Nos olhos dela havia um estranho brilho.
Júlia levou muito tempo e gastou um bom dinheiro com psiquiatras para se recuperar. Mas Laurinha nunca mais teve aquelas alucinações com a estranha fauna que habitava em sua imaginação. Voltou a ser uma menina normal, que brinca com as amiguinhas, gosta das histórias contadas pelas professoras e não desvia mais o olhar quando alguém olha diretamente para ela. Voltou até a brincar com a Tatiana, a boneca que ela havia enterrado no fundo do armário.
Só quando alguém fala do seu padrasto Vitor, é que um estranho e malévolo brilho aparece nos seus doces e calmos olhinhos azuis.