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VAMPIROS - A HISTÓRIA ORIGINAL
 
 
APOCALIPSE
 
  No ano de 2063 principiaram os eventos que causariam o declínio da humanidade e do mundo como conhecemos. Durante a grande guerra, carnificina mais sangrenta e devastadora da história, a espécie humana foi reduzida a 200 indivíduos.

  A rebelião que causou a separação dos três clãs de vampiros existentes, fez com que o pacto que os unia e os mantinha no anonimato fosse quebrado e assim os humanos conheceriam, pela primeira vez, seu flagelo. Os demônios da noite, que deixaram seus esconderijos, cavernas, pântanos, e montanhas, para matarem e se alimentarem.

  Glades e Hector eram vampiros do clã dos Longueville. Os dois pulavam nas costas de suas vítimas, cravando as presas nos pescoços com sagacidade e brutalidade. Pareciam leões caindo sobre zebras. Mas os humanos não eram vítimas tão fáceis, quando do lado deles estavam, ou pareciam estar, os Maks, androides quase humanos, que se adequavam a quaisquer condições e podiam enxergar no escuro, através de obstáculos sólidos e até diferenciar humanos de vampiros; eram sorrateiros nas sombras e agiam silenciosamente e sem chance de defesa.

 
GÊNESIS
 
 
  Lúcifer, o primeiro Nosferatu, queria ter conjunção carnal com sua amante Lilith. Deus, tendo suas razões, proibiu os anjos de copularem com as mulheres. Lilith, a primeira mulher, ainda em essência carregava sua fração humana, mesmo que corrompida dentro de si por suas danação e queda.
Ambos precisariam de um corpo como receptáculo. Mas não poderia ser qualquer corpo. Como sabemos, não há como expulsar uma alma de um corpo vivente permanentemente e nem como um demônio coexistir com a alma de alguém por muito tempo.

  – Façamos de nós mesmos Adão e Eva, minha Lilith.

  – E como faremos isso, Deus do inferno?

  – Simples. Ele moldou o barro, nós manipularemos o fogo. O príncipe das trevas contou seu plano àquela mulher demônio, que se balançava no seu balanço feito de pedaços de mais de cem corpos de homens, cobertos de peles e amarrados com cabelos.

  O tártaro era silencioso e solitário, não agradava aos ouvidos ou aos olhos como o Hades, que era cheio de dor e sofrimento, por isso ela passava o tempo se balançando, quando não se banhava no lago de fogo. 

  Os olhinhos dela brilhavam enquanto Lúcifer desenrolava seu plano. Pegaria a chama, ele disse, que roubaria do lago de fogo do Seol, aquele em que são castigados os pederastas. E usaria a chama como a fagulha inicial da vida, que junto com a palavra faria seu espírito fluir para dentro do corpo escolhido. Mas antes precisaria da fruta, roubada da árvore da vida. Esta bem escondida e protegida por doze anjos dos mais valentes e astutos, no Éden. Depois que a chama envolvesse o fruto, dele nasceria a semente, com a qual Lúcifer alimentaria um morcego. O mamífero menor cairia, se debateria ferozmente, como que ferido de morte e depois alçaria voo. Um voo sublime. Essa parte, teatralizada por Lúcifer, foi cômica.
Depois de ouvir, a dama infernal esbanjou alegria e soltou umas gargalhadas frouxas.

  – Não seria mais fácil criarmos um Golem e dizer as palavras?

  – Seria. Mas os Golens estão presos à palavra. De forma que se for retirada ou riscada ele morre. Por isso a árvore da vida, pois o que dela comer viverá para sempre.

  – Entendi, seu seboso. Mas porque um morcego?

  – Só porque acabei de ver um, dando um rasante bem aqui. Você não viu?

  – Não vi. Acho que me distraia com a beleza dos seus olhos translúcidos, como se cascatas de diamantes caíssem do sol.

  – Minha ninfa infernal. Não me seduzas agora, para que eu não acabe sozinho e triste. Além disso morcegos são animais noturnos. Suas asas lembram as caricaturas que Doré fez de mim para a Divina Comédia. Quando nos tornarmos impuros e mortais, recolhidos aos vícios e pequenezas deles, poderemos ser como o rebento que nasceu Deus e homem.
 
 
HOMEM X DEUS
 
 
  – Olha as nuvens, Nice, vermelhas como sangue. Peter falava do sangue que escorre das montanhas, que mancha os rios e mares, que flui para fora do corpo como o vômito dos bêbados. Você percebe? Não há esperança para nós. Estamos condenados.
 
  – Eu não entendo, irmão. Como esses vampiros, que se esconderam por tanto tempo, fazendo suas vítimas às ocultas, resolvem dar as caras de repente. O que aconteceu para que se revelassem? Peter e Nice tinham muitas perguntas e tinham um ao outro apenas. Abraçados, lado a lado, contemplavam o céu único e espantoso daqueles dias finais. Uma pintura em tons de amarelo, laranja e vermelho. A lua, muito maior e rubra, era uma testemunha solitária e silenciosa, observando o caos e tornando tudo ainda mais desesperador.

  Nice, a menina de Peter, sua protégé, querida irmã, era forte e inabalável, mesmo que ele não a visse assim e a quisesse ninar se pudesse.

  – Quem é que sabe, irmã? Há 30 anos, quando o mundo começou a se encher de máquinas e robôs, para fazerem tudo por nós, não poderíamos conceber sequer o cerne do que um dia vieram a ser os Maks e olhe para eles? Se você não levantar o cabelo das suas nucas e enxergar, por si mesmo os leds das suas baterias, diz que não são humanos? Se somos capazes de os criar e ainda assim somos criaturas imperfeitas o que mais se esconde entre os mistérios desde o início dos tempos?

  – Sim, irmão. O homem chegou longe, mas se afastou de Deus. E agora quando os dois lutam, frente a frente, como vampiros e maks, os homens fogem. Covardes. Houve um tempo, Peter, que venceríamos essa batalha, mas esse tempo passou.
 
 VAMPIROS
 
 
  –  Onde achou esse? Fala seu miserável! -Gritou Nicolas, referindo-se ao cadáver de criança que foi encontrado com Bolzan, o vampiro acorrentado. Um espécime alto, pele bronzeada, cabelos louros, que se vestia como um cowboy, com suas botas com esporas e chapéu de couro preto.

  –  Me mata logo, seu bastardo! Nunca saberá, nunca! Prefiro morrer do que entregar de bandeja para um Longueville o esconderijo do rebanho. Quer gado, Nicolas? Vá caçar você mesmo! –Gado era uma gíria que os vampiros usavam para se referirem aos humanos.

  – Strozzi maldito. Vocês nos envergonham. Seu sangue é misturado, vocês não têm leis nem moral. Por causa de vocês os vampiros têm essa imagem de bestas selvagens. Agora escute, Bolzan, se não deixarmos nossas diferenças de lado e nos unirmos, os três clãs de vampiros que existem e as sagradas casas que eles representam vão se acabar em nada e vamos todos morrer. Entendeu? Neste momento, enquanto discutiam, Audrey e Thierry, vampiros do clã Longueville, se aproximaram com estacas e marretas. Riam para ele numa manifestação escrachada de zombaria e escárnio, arreganhando os dentes. Bolzan passou a se debater ainda mais e chacoalhava as correntes tão violentamente que sangue começou a escorrer dos seus poros, olhos e narinas.

  – Patife, está inchado com sangue, olhem. Tão estufado que chega a pôr pra fora. Matem esse canalha de uma vez, já perdemos muito tempo. Ele não irá falar. Concluiu Nicolas se afastando e abrindo espaço para os dois vampiros que chegavam. A estaca foi posicionada sobre o coração por Audrey, enquanto Thierry com precisão e frieza deu o golpe final com a marreta, enterrando o artefato fatal no peito do vampiro.

  – Bolzan blefava, não é Thierry? Sobre o esconderijo deles.

  – Sim, mestre, é certo. O filhote que foi encontrado com ele estava gordo, saudável e fresco. Ele o alimentou e engordou. Sabemos que os humanos passam fome e que não cultivam lavouras, nem criam animais. Caçam pra comer e muitos morrem nessa tarefa. Então ele deve tê-lo encontrado sozinho. Provavelmente abandonado pela sua família para morrer.

  – E nós somos os animais, Thierry? Mas precisamos, encontrar os Capeto. O recenseamento é daqui três dias e se não estiverem aqui eles serão excomungados.

  – Lúcifer não perdoa, meu senhor. Se o conjuramos nas cerimônias, ele tira a palavra e os Capeto viram pó. Ele não se importa em achar outra hospedeira.

 – E se eles não aparecerem é porque sabem do último reduto dos humanos. Ou eles ou nós. Se não os acharmos logo estaremos condenados para sempre. Alertou Nicolas, o líder do clã. Era um homem carrancudo, com uma barba espessa e longa, cuja ponta encostava em seu peito. Alto e intimidador e com uma voz grossa e rouca, e que carregava consigo um facão enigmático, prateado, não se separando nunca dele.
 
 
ESCONDERIJO REVELADO
 
 
O paradeiro dos Capeto, porém, embora fosse desconhecido para os Longueville, não o era para Nice e Peter, que os eliminavam as dezenas com suas balestras lançadoras de estacas. Os irmãos estavam nas colinas, que já foram verdejantes, do norte, há 200 quilômetros da planície árida e quente onde estavam Nicolas e seu clã.           
 
*********
 
  – Eu sei onde achá-los, mano. Empolgou-se Nice, a menina guerreira de pele vermelha e cabelos lisos. Seu rosto delicado irradiou-se como o sol cuja fagulha inicial tinha sido aquele sorriso espontâneo e genuíno.

  – Está falando dos humanos? Os que sobraram? Nossa família? Será que resta ainda alguém vivo?

  – Sim, Peter, ele me falou. O vampiro que eu matei na margem do rio bravo. Quando enfiei a estaca nele. Não morreu logo como os outros, pareceu lutar pelo sopro restante de vida, cuspindo sangue, tossindo. Dizia Nice sôfrega, exaurida pela batalha. Contava entre lágrimas como o vampiro segurava seu coração nas mãos. O peito estraçalhado, costelas quebradas. Já tinha matado muitos vampiros, perdera a conta. Não sentia pena desses monstros assassinos, mas sentiu pena dele.

 – O rebanho, como chamam, está além da cordilheira, na floresta de Tamares, ele disse. Vim correndo te contar. Podemos ter esperança, irmão. Finalmente.

 – Se a gente não morrer antes de chegar lá, maninha. A viagem é longa e não sabemos o que iremos encontrar no caminho. Agora me ajude a empilhar esses corpos pra queimar antes que mais vampiros apareçam.
 
 
ORIGEM DOS TRÊS CLÃS
 
 
  Para compreender a rebelião dos clãs, devesse saber o que aconteceu com Lúcifer e Lilith no início de sua jornada de autoconhecimento como demônios antropomorfizados.

  E saibam, não foi um homem, mas sim uma mulher, a primeira vampira humana que se conhece. Chamava-se Suria e gerou os ciúmes de Lilith ao cair nas ciladas de amor lançadas por seu consorte Lúcifer.
Suria era descendente de Eva; uma mulher, em todos os atributos, exceto em seus gostos culinários pitorescos (que incluíam carne humana).

  Quando Lúcifer a viu pela primeira vez, ela estava montada sobre um vampiro morto. Ele a observava atrás de uma árvore e seu riso malicioso e olhar abrasador denunciavam todas as suas piores intenções. A jovem esbelta, seios firmes, cabelos até a cintura, ondulava o ventre e rebolava o quadril numa cadência graciosa e sensual. Tocava seu sexo e gemia de prazer. O corpo sobre o qual ela se entregava a esses prazeres pouco cooperava para o seu gozo, mas sim para o seu sadomasoquismo. Os intestinos que fedorentos e flácidos roçavam sua cintura acariciando suas nádegas, faziam a cabeça do vampiro morto ir e vir, para frente e para trás quando ela puxava, como a corda de um enforcado, que é suspenso depois de morrer.

  – Posso fazê-lo reviver para que o mate a cada vez de uma forma diferente. Posso fazê-lo entrar em você, enquanto o mato ainda teso e depois matá-lo mais uma vez da forma que você quiser! –Dizia o demônio se revelando e parando à meio caminho da moça.

 –  Pode fazer isso? Verdade? –Os olhos de Suria reluziram como o brilho de uma lâmina afiada ao ser transpassada por um feixe de luz. Desvencilhou-se das tripas do vampiro e levantou-se com elegância e vagar. Lúcifer a comia com os olhos. Ela veio em direção a ele e o beijou, o envolvendo em seus braços.

  – Posso fazer, por um curto espaço de tempo. Mas seria o suficiente para sua diversão.

  – E para que precisamos dele? Prefiro que seja você. Depois podemos comê-lo. Era o que eu ia fazer quando acabasse aqui.

  E de mãos dadas eles foram se banquetear. Arrancavam pedaços com os dentes e agitavam a cabeça segurando-os na boca, como cães selvagens. Torciam pernas, braços, para separar os ossos. Cada vez mais ferozes, mais loucos. Lúcifer gargalhava, estava adorando aquilo. Ofereceu um pedaço à Suria, que comia os rins em sua mão. Beijaram-se mais uma vez e aquela massa esparramada de vísceras e restos mordidos de carne e ossos virou sua cama, onde fizeram amor.

  E quando Suria tornou-se uma vampira, a casta espanhola nasceu, os Capeto. Ela vinha de uma antiquíssima linhagem celta e seus ancestrais foram magos e bruxas famosos em seu tempo.
Mas para explicar o surgimento do segundo clã voltemos aos ciúmes descontrolados de Lilith, ao descobrir a traição de Lúcifer. Sua ira transformou Rorschach, seu desafortunado amante e com ele nasceu o clã francês, os Longueville. Os Strozzi por sua vez são os vampiros originalmente humanos, sem intervenção de Lúcifer e Lilith, descendentes diretos dos dois clãs. Elizabeth, da casa de França e Felipe da casa de Espanha, que se conheceram e se amaram na Itália. Por isso se tornaram conhecidos como os vampiros mestiços e sofrem com isso até os dias de hoje.

 
UMA LEMBRANÇA RUIM
 
 
  – Pare, pare, por favor. –Reclamou Peter sentando em um tronco tombado na trilha que levava à floresta. Estamos andando há três horas sem parar. Acha que vamos conseguir chegar antes que escureça?

  – É o que tem que ser feito. Se ficarmos no meio do caminho e formos descobertos? Se nos encontrarem levaremos os vampiros até eles.

  – Você tem razão. Mas descansemos pelo menos uns trinta minutos ou vamos morrer de exaustão. A água está escassa, os rios poluídos. Se não guardarmos um pouco de energia cairemos mortos no caminho.

  – Coma. –Disse Nice, oferecendo uma lata oval, verde oliva. São os biscoitos que a mamãe fez pra gente antes de fugirmos. Você lembra deles?

  – É claro que lembro, –consentiu Peter. Alisava a lata e chorava copiosamente. Nice lhe fez companhia no choro. Ambos alisavam a lata agora, relembrando.
 
  – Foi o último mimo que ela fez pra gente. Como nos amava. Morreu para nos proteger. Porque, porque? Aqueles desgraçados arrancaram a cabeça dela num golpe. Eu nem pude olhar. Não tive coragem de virar para trás. Fechei os olhos. Pude ouvir quando, quan-do... os irmãos se abraçam e se consolam. Logo prosseguiriam no caminho. Não havia nem tempo para chorar as dores e lembranças.
 
 
O QUE ACONTECEU AQUI?
 
 
  Depois que os Longueville e os Strozzi finalmente selaram um acordo de paz e uniram forças para irem atrás dos Capeto, os mais rebeldes dos vampiros, muita coisa mudou. Todo o sangue que conseguiram estocar, que não estragou ou coagulou, tinha acabado e os geradores que mantinham os freezers funcionando não tinham mais combustível. Estavam morrendo, era só questão de tempo. Sangue fresco é a vida para um vampiro, já que o seu próprio sangue não circula mais. Estavam longe de qualquer cidade grande, ou centro urbano, onde os médicos eram mantidos reféns pelos vampiros para produzirem sangue sintético.

  – Aí, Audrey, daria tudo por uma caixinha de sangue sintético agora. Você não? –Questionou Hector. Vinha atrás com o resto do bando quando esticou os passos para alcançá-la.

  – Qual é cara. Sangue sintético é como leite de soja, porra. Uma porcaria. Você tá louco!

  – A cara, mas pensa. Isso pode te manter vivo. –Ponderou Hector.

  – Tanto faz. Só quero encontrar os Capeto e descobrir o último reduto desses humanos fracassados. Já acabou pra eles, merda. Só estão adiando o inadiável.

  – Isso se aguentarmos a viagem. Muitos de nós já estão morrendo. De tão fracos alguns vampiros adquiriram doenças humanas de cadáveres. Não somos mais os mesmos.

  – Qual é a dos Capeto, mano. Porque estão ferrando com tudo?

  – Os Capeto são um problema, sim. Mas não foram eles que começaram. Sério, qual vampiro ia querer dizimar suas fontes de alimento, os humanos? Isso não tem lógica. Nada disso aconteceria se não fosse a Austrocorp e seus Maks fodendo tudo. Eles começaram a guerra. Colocaram os humanos contra nós. A rebelião, depois que paramos de nos esconder, causou a morte de muitos humanos, mas jamais alcançaria essa proporção se não fossem os Maks.
 
  – Sim, Hector. Para os Maks era interessante que os humanos morressem para que eles assumissem seu lugar. Deduziu Audrey, mesmo com seu conhecimento limitado sobre os Maks. Ignorava, por exemplo, que o mundo estava se tornando pequeno para eles. Principalmente depois que os Maks foram capazes de se reproduzir. Mas os androides eram vulneráveis num embate direto. Eram apenas máquinas, que os humanos controlariam, se fosse descoberta alguma conspiração. A Austrocorp poderia mudar suas programações, se os humanos se sentissem ameaçados. Então precisavam de uma isca.

  – Sabe, Audrey. Não entendo como os humanos não perceberam a nossa imensa desvantagem se os Maks avançassem com todo o seu arsenal contra nós. Talvez as criaturas manipulem seus criadores e não sejam manipuladas por eles.

  Hector e Audrey, que seguiam naquela legião gigantesca de vampiros, os Capeto e Strozzi unidos, que era ao menos a metade dos vampiros que existiam, faziam tremer o chão por onde passavam. Mesmo debilitados e cansados, ainda eram vampiros. Sua jornada, como a de Nice e Peter, era pela sobrevivência.
 
 
CAPULETOS X MONTECCHIOS
 
 

  – Porque você acha que vai fazer a diferença no mundo? – Perguntou Lucy.
Os olhos apaixonados entregavam seus sentimentos. Sentada na frente de Glades, com seu vestido vermelho decotado e seus cachos ruivos, a jovem provocava a cada gesto. Mordendo os lábios, mexendo os cabelos, cruzando as pernas.

  – Eu não vou. Não dá mais tempo para isso.  Eu só não quero escolher um lado, sabe? Você é humana e eu vampiro. É tipo os Capuleto contra os Montecchio? Eu sempre admirei os humanos e não acho que seja um traidor dos vampiros por causa disso. Glades abria sua cerveja e um pacote de batata frita. Seus olhos verdes inquietos percorriam o corpo de Lucy e se perder na voluptuosidade dela era melhor do que tentar entender o que significava tudo aquilo.

  – Eu não penso assim. Que nossa vida tenha que virar uma tragédia, como Romeu e Julieta. Você é quem diz que nós não podemos ficar juntos.  Tem medo.

  – Lucy, quando um vampiro e uma humana se envolvem, nada de bom pode sair disso. Somos assassinos por natureza. Cruéis, selvagens, movidos pelo instinto. Sabe, como uma cobra? Você cria, alimenta, desde filhote. Mas quando tiver uma oportunidade ela te devora. Entende?

  – Você é um demônio. Não é? Penso que nós humanos, quando cometemos o pecado original, nos transformamos em demônios também. Pois obedecemos à um. Consegue entender o meu ponto de vista?

  – Minha ruiva, você é linda. Eu te amo. Disse Glades ao se levantar e puxar a cadeira, sentando mais perto dela e passando a mão nos seus cabelos. Eu gosto de você. Por isso mesmo precisa me entender e me esquecer. Não daria certo. Não daria.

  – Seu tolo. Tem um coração aí, –apontando com o dedo indicador, –ele não bate como o meu, é verdade, mas irá, você vai ver. O amor muda tudo.

  – Olha só minha Julieta, já passamos tempo demais aqui. Estamos num dos últimos lugares que ainda tem energia elétrica e isso atrai os vampiros, por causa dos humanos. A gente sabe que eles não estão aqui, mas os vampiros não. Temo por sua segurança. É hora de partir.
 
 
UM NOVO CÉU E UMA NOVA TERRA
 
 
  A escuridão na floresta sempre vem acompanhada das sensações mais angustiantes, causadas pelos sons ocultos e por ignorarmos tudo que nos cerca. Mas qual outra floresta esconderia os duzentos últimos seres humanos da terra?

  – Peter, Peter, acorde, vamos! –Alertou Nice. O dia cansativo e longo tinha fatigado seu irmão até a exaustão. Mas Nice acordou há vinte minutos e não conseguia mais pregar os olhos, até ouvir aquele barulho. Era como uma lixa raspando nas paredes de pedra da caverna. Um dos tantos segredos que a estranha floresta escondia. A entrada que dava acesso à caverna era subterrânea, o que fazia com que todos que entrassem tivessem que mergulhar em um lago, portanto o som lá dentro era muito mais redundante, expansivo.

  – Hum, o que… o quer? Vai dormir, me deixa.

  – Não, Peter. Ouça, esse barulho. Ouviu?

  – São só morcegos, vá dormir.

  – Não são morcegos. Sei muito bem que som os morcegos fazem. Em quantas cavernas acha que já estivemos?

  – Tá bom. Vou levantar, pegar uma tocha e olhar. Tá bem?

  Quando Peter iluminou o teto da caverna, o que viram foi uns quarenta vampiros ou mais que rastejavam sobre suas cabeças, como se rastejassem pelo chão. As bocas manchadas de sangue denunciavam que acabavam de jantar.
 
  O que queria dizer que alguns de seus mais novos amigos estavam mortos. Pessoas que eles nunca aprenderiam a gostar, ou nem teriam a chance de conhecer, porque estavam mortas.

  Vampiros caiam do teto como flechas ao perderem altitude. Humanos caíam um após outro como moscas. A matança logo se tornou tão desigual que parecia não haver esperança para os humanos. E não havia mesmo. As balestras e estacas foram surrupiadas pelos visitantes silenciosos e as poucas armas que puderam usar, efeito nenhum tinham neles. Esses humanos desafortunados conheceriam a força e a fúria dos Capeto, descendentes de Lúcifer e não sobreviveriam para contar, quase nenhum deles. A matança parecia coreografada. Corpos caíam como dominós. Pescoços eram mordidos e depois quebrados para então virarem a refeição. Nenhum humano se tornava vampiro, era só morte e escuridão para eles.

  O dia amanheceu com os raios do sol acentuando partículas que pairavam no ar entre as copas das árvores. Os vampiros dormiam com as barrigas cheias e suas presas sujas de sangue. Aqueles quarenta na caverna, eram só o comitê de boas-vindas. Porque milhares mais vieram depois.

  Os Maks que já a algum tempo tinham abandonado as batalhas, por considerarem perdidas para os humanos, controlavam agora a Austrocorp e desviavam sua artilharia contra um novo alvo, os vampiros. Reconstruíram as grandes cidades. Uma nova era, onde máquinas sem coração ou sentimentos autênticos, dominariam tudo.

  Talvez nem tudo, pois em algum lugar na costa, numa praia deserta, três humanos e um vampiro caminhavam. Peter e Nanci não saberiam como recomeçar, antes de conhecerem Lucy. Dois irmãos com esse devastador destino, perecendo em pecado e morte. E um vampiro que se redimiu no último momento e salvou duas vidas. Glades, que através de Lucy, tinha compreendido o poder do amor. Os dois uniram suas vidas com as de dois outros humanos e se lançaram contra os Capeto na caverna. Trucidando seus semelhantes, Glades, com a adaga forjada por Nifistélis, a qual roubou de Nicolas quando este dormia, matou muitos Capetos, pois a lamina, forjada por um demônio de fogo, matava um vampiro onde quer que o atingisse.
Audrey e Hector nunca estiveram na floresta. Caminharam como almas livres até a autoestrada, onde pegaram o primeiro táxi dirigido por Maks-W4, modelos mais simples que executavam serviços essenciais para os humanos.

  – Audrey, sabe o que mais?

  – O que, seu prego? –Deu um soquinho no braço de Hector, sorrindo.

  – Por que ao invés de roubar sangue sintético, não raptamos um químico ou médico, para nos ensinar? Abrimos um bar pra vampiros e tocamos a vida?

  – Você, Hector, é um brincalhão. Sabe que o mundo não tem mais lugar pra vampiros. Seremos só nós dois, contra o resto de nós?

  – Porque acham que precisa ser assim? Uns contra os outros? Eu me uni à minha inimiga. Não conseguimos, os vampiros, nos unirmos de novo? Ponderou Glades, de mãos dadas com Lucy. Sua guerra agora era contra os Maks, por isso precisavam encontrar outros vampiros. Mas o futuro era incerto, pois só existiam sombras e incertezas.
 
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  ZP-2 Série de 2060, da quarta geração de Maks, Makbot W-12. Escrevo estas crônicas para dar testemunho dos feitos humanos e de suas criações até o dia de sua queda. Não participei da guerra em nenhum lado. Escondo-me de todos e observo. Assim pude relatar o que vocês conheceram aqui, como também pela sabedoria absorvida através dos pergaminhos dos vampiros, desde seus primórdios. Posso ser qualquer um deles. Tentem a sorte.

Tema: Vampiros
Total de Palavras é de 4.000!
 


Autoria em Sigilo
Enviado por DTRL Desafio de Terror Rascunhos Literários em 16/07/2019
Reeditado em 29/07/2019
Código do texto: T6697531
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