O Mosteiro - Parte 2
Prólogo: http://www.recantodasletras.com.br/contosdeterror/567365
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As batidas na porta fizeram Tomas acordar trêmulo. O dia já havia nascido, e a luz da manhã entrava timidamente pela janela de sua cela. O rigor dos hábitos dos sacerdotes enclausurados em seus mosteiros lhe era comum e natural, pois fazia parte da constante luta que aqueles santos homens precisavam manter diariamente para vencer os impulsos e desejos do corpo. Uma disputa eterna, que acarretava em rígidas rotinas como as de dormir logo após o por do sol e acordar antes do nascer deste. Essa era um realidade que o jovem frei bem conhecia e que por anos cumprira, porém dessa vez ele cedera aos desejos de seu corpo e acordara tardiamente.
As batidas continuavam. Cambaleante ele se levantou, foi até a porta e ao abri-la se deparou com Silas e outro dois monges. .O primeiro mantinha seu tradicional olhar, impassível e inabalável enquanto os outros dois eram monges antigos traziam expressões severas e olhares de reprovação. Não demorou e logo começaram a perguntar o que acontecera, por que ele não acordara para os ritos da manhã e tudo mais. Tomas não sabia, ou melhor, não tinha como responder ao inquérito, feito mais que justificadamente pelos monges.
Vendo o desconforto e a falta de palavras do jovem, Silas intercedeu a acabou por finalizar aquela conversa condenado Tomas à um dia inteiro de jejum e penitência, que ficou satisfeito com a decisão e que a interferência do sombrio monge. Ele havia errado, por um motivo que ele próprio não sabia determinar qual fora e que não sabia explicar, por isso de bom grado ele aceitara a pena.
As horas passaram e ele se dedicou durante todo o dia aos afazeres determinados por Silas; afazeres esses que se resumiam basicamente em orações e mais orações na capela, ajoelhado em pequenas pedras, que cortavam profundamente sua carne provocando, no início apenas um incomodo e depois de algum tempo uma imensa dor.
Tomas tentou durante todo o momento concentrar sua mente nas palavras proferidas por sua boca. Esforço em vão, pois tais palavras não eram ditas pelo seu coração e sim por sua razão, que se encobrira de cumprir a pena imposta. Sem escolha, sua mente passava então a buscar por lembranças perdidas daquela estranha noite, onde sua alma havia vagado por lugares até então desconhecidos, e a ignorar a dor que seu corpo sentia.
Após longas horas de penitencia, Tomas começava a perder gradativamente as sensações de seu corpo, anestesiado pela dor que vinha de seus joelhos. Em determinando momento, quando as horas já eram confundidas com dias e sua mente finalmente começara a se concentrar nas orações que sua boca proferia, ruídos incomuns de luta e destruição chegaram aos seus ouvidos e o tiraram de sua meditação. O que estaria ocorrendo no mosteiro? Quem era aquele que ousava iniciar uma baderna na casa do Senhor?
Temeroso, porém tomado de uma curiosidade incomum, Tomas se levantou. Seus joelhos sangravam, suas pernas ardiam e o simples ato de ficar em pé lhe provocou uma forte dor que atravessava sua espinha. Ainda assim ele caminhou mancando até os portões da capela e cuidadosamente os abriu, para logo em seguida se arrepender. Teria sido melhor manter os portões fechados, era o que sua mente teria pensado caso fosse capaz de proferir mais do que sentenças simples. Aqueles portões não delimitavam mais os limites da capela e sim os limites entre o sonho e o pesadelo, o real e o ficcional, o sagrado e o profano. Sim, a visão que Tomas via diante não era nada além que o inferno!
O cenário era sangrento, com todos os monges sendo massacrados, dilacerados, desmembrados, por demônios disformes com cabeças de bode que traziam em seus peitos um pentagrama invertido, a marca de Lúcifer, o anjo caído. Eles não possuíam mãos, e sim garras, afiadas como espadas, que rasgavam as carnes daqueles pobres homens.
Tomas estava paralisado de medo e terror, afinal, como era possível aquilo? De que abismo havia saído àquelas criaturas? O cheiro de sangue se juntava com a visão de ossos partidos, que vinham acompanhados pelos aterrorizantes gritos de dor dos pobres sacerdotes. Em meio a esse cenário terrível, Tomas notou aquilo que o deixaria ainda mais confuso, como se isso fosse possível: Silas, com seu hábito de todos os dias e olhar sereno, liderava o ataque das feras!
Quando aquela loucura teria fim? Uma cabeça rolou para frente de Tomas. Era Jean, um dos responsáveis pela cozinha do monastério. Sua cabeça fora arrancada de seu corpo pelas garras de um dos demônios, ainda assim seus olhos fitavam Tomas, e sua boca falava: "Pelo amor do Pai, nos ajude...". Outra cabeça rolou a sua frente, dessa vez era a cabeça de Pablo, outro jovem aprendiz, que fora separada de seu corpo, e ainda assim insistia em falar: "Dessa pelas escadas, ache Giulliano, e nos salve!".
O horror e o espanto ainda preenchiam a alma de Tomas, que não conseguia sequer juntar duas palavras para iniciar uma oração, quando subitamente Silas olhou em sua direção e gritou: "Ali está ele. Pegue aquele infeliz, pois nele está o poder para nos destruir!". Seu dedo apontava para Tomas, e uma língua bifurcada saia de sua boca e dançava ante seu rosto. Silas era um, senão o demônio.
Os corpos dos demais monges foram jogados de lado e todos, simplesmente todos os demônios, se viraram para Tomas e partiram para cima dele com suas garras afiadas. Uma luz divina, ou talvez um mero senso de sobrevivência, fizeram com que Tomas recuperasse o juízo e corresse. E corresse muito, tentando se afastar o máximo possível daquelas criaturas. Ora indo para a direita, ora para a esquerda, Tomas corrida e tentava de todas as maneiras despistar os demônios.
Mais uma vez o tempo resolvera passar de maneira assíncrona. Teriam sido minutos ou teriam sido horas? Tomas não saberia dizer quanto tempo havia corrido, ainda assim em dado momento em se viu em um beco sem saída, ou quase. Dos lados havia apenas as tradicionais paredes de pedra gasta do mosteiro, atrás a horda infernal, e na frente uma porta. O monge tentou, forçou, porém a porta não cedia. Estava trancada. Ele olhou por sobre os ombros e viu aqueles rostos demoníacos se aproximando cada vez mais. Seu coração começou a bater mais forte. Seus olhos procuravam uma maneira de escapar, quando então sua mente começou a recordar daquele corredor, daquelas marcas, daquela porta: fora naquele lugar que na noite anterior Tomas encontrara Silas. Estranho... Seria aquilo um sinal?
Não havia mais tempo para considerações. Tomas estava acuado contra a porta. Os demônios estavam a poucos metros, porém não atacavam, apenas olhavam o monge como se aguardassem uma ordem, que após alguns minutos veio, não de Tomas, mas de Silas que passava pelas fileiras infernais, até parar frente a frente com o assustado.
"Parados todos!", Silas ordenou as criaturas. Em seguida ele se virou para Tomas e com uma expressão serena e um olhar fúnebre disse: "Não é uma mera coincidência que você tenha vindo até aqui. Isso mostra apenas que minha intuição estava certa e que você é o escolhido".
Tomas estava confuso. Escolhido? Escolhido por quem? Para que? Confuso, sem saber o que fazer, ele sentiu uma voz, ou melhor, uma ordem, ou mais, um conselho em seu coração, lhe dizia: "atravesse a porta". Era uma mensagem de Deus, ele sabia. O pai olhara para ele, e naquele momento ele haveria de se entregar a vontade do todo poderoso.
Tomas encarou Silas, que notou suas intenções em seu olhar e gritou "Não!". Ele então reuniu todas as forças que ainda restavam em seu corpo, frágil após o dia de penitencias, e se atirou em direção à porta, que cedeu, dando lugar a um clarão que cobriu o monge e todos seus perseguidores.