Obsessão
Maristela já estava cansada do assédio que sofria de Milton - seu companheiro de escritório.
Naquele ambiente sem janelas, enclausurados em cubículos cujas únicas companhias durante as nove horas de expediente eram uma tela antiga de computador e seus componentes, a frustração de estar ali e o cheio do hálito de café dos demais colegas de profissão.
Inúmeras vezes Maristela fora alvejada por pequenos papéis contendo as mais absurdas perguntas: quer sair comigo? você tem planos para mais tarde? que tal um vinho hoje à noite? etc. Além disso, a ousadia de Milton ultrapassava os limites quando, propositalmente, ele a esperava para juntos descerem pelo ascensor ou quando perseguia-a enquanto Maristela ia ao banheiro ou a outra seção da empresa.
Já tentou por inúmeras vezes alertar os patrões, mas o reclame feminino nunca é páreo para a social vantagem masculina.
CASADA
- Você não desiste, cara? - reclamou ela em voz baixa, após ser alvejada novamente e, irritada, dirigir-se à cabine de Milton.
- Por que toda essa resistência, amor? - perguntou ele, debochado, sem olhá-la no olho - fato que fê-la mais colérica ainda.
- Porque eu sou casada - exclamou ela. - Casada! E mesmo que fosse solteira, você não faz meu tipo.
E saiu, a passos largos, a deixá-lo sem saber sua reação. Às vezes, pensava ela, Milton tinha um ar de psicopatia. Apesar de pôr-se bastante emputecida para consigo, ela às vezes tentava entender o que se passava na cabeça dele.
O MARIDO
Depois daquele dia estressante, Maristela conseguiu concentrar-se no jantar que havia prometido ao marido Edgar. Preparou uma interessante costela bovina a vapor, cozinhou batatas e brócolis e finalmente abriu o vinho do Porto trazido por sua amiga que o comprara durante uma viagem a trabalho em terra de Camões.
Quando Edgar chegou, algum tempo mais atrasado que o habitual, pôs-se surpreso, pois não lembrava da promessa de Maristela. Contudo, fez-lha mimos, elogiou-a a boniteza da mesa e a disposição dos pratos - a dizê-la que toda aquela fartura lhe havia aberto o apetite e que tinha-lhe um pormenor a contar.
Ele dirigiu-se ao banheiro, a tomar um banho rápido. Enquanto isso, angustiada com o que Edgar dir-lhe-ia, ela finalizava a salada. Por fim, ele adentrou a sala de estar e sentou-se à mesa - a servir-se, primeiramente, de vinho.
- Como te foi o dia, bem meu? - perguntou Edgar, sempre carinhoso.
- Indo... - redarguiu ela, sempre obscura. - E você?
- Ah - recordou-se ele -, deixa te dizer. Atrasei-me hoje porque estava a ter com um teu colega de trabalho.
- Um colega de trabalho? - premeu ela a fronte.
- Sim, um senhor muito educado, por sinal - disse Marcelo, a cortar a costela. - Milton! Conhece?
- Você o conheceu?
- Sim, ele disse que trabalha com você, mas não entrou em detalhes - disse Edgar.
- E onde é que você o viu?
- Na padaria em frente ao meu consultório...
Ela deixou uma azeitona escorregar do garfo. Mirava o nada com olhos mortos, esbugalhados, fixos. Por um tempo, só ouvia ao fundo a voz de Edgar contando mais detalhes do encontro, mas pensava ela que a ousadia de Milton estava a chegar demasiadamente longe.
A IRA
Na manhã seguinte, ela nem sequer bateu o ponto. Foi direto à cabine de Milton.
- Estarei indo a uma delegacia se você não parar com essa perseguição - ameaçou ela, a apontar-lhe o dedo indicador.
- Lindas unhas - replicou ele, a ignorar a ameaça. - Fez ontem à noite? Aliás, manda um abraço a Edgar...
Retirou-se, furiosa.
O DESFECHO
As duas semanas seguintes à Maristela lhe foram de paz. Milton parara de segui-la no emprego, deixara seu marido em paz e incrustara-se em seu cubículo a fazer suas coisas. Ela achou estranho o espontâneo silêncio, mas nem sequer fez menção de cutucar a onça com a vara.
Uma tarde, depois do almoço, Milton chegou à cabine de Maristela, com um sorriso largo, a mostrar os dentes amarelos de cigarro. Revelou uma caixa pequena e estendeu-a a Maristela.
- Eu não quero - exclamou ela. E, para não demonstrar tanta grosseria...: - Obrigada.
- Creio que vá querer - disse ele. - Isto aqui é de grande valia para você. Mais para você que para mim. Você será uma Mary Shelley moderna...
Maristela coçou a cabeça - mais por irritação que por comichão.
- O que você quer dizer?
- Se abrir o presente, vai entender... - replicou ele, enigmático.
Ela puxou o pacote com violência e abriu-o sem suspense. Porém, ao ver o conteúdo, quase desmaiou. Teve todas as reações possíveis antes de derrubá-lo ao chão: quis vomitar, chorar, teve vertigem, tontura, dores de cabeça. Tudo isso em uma fração de segundos. E, entrementes, Milton dava um diabólico e debochado riso.
- É o coração do teu marido - comentou ele, a se sentar ao lado dela - que já soluçava. - Agora você sai comigo?