Dollify.

Uma das maiores alegrias da minha vida foi trabalhar com tecnologia. Sempre fui um entusiasta do assunto e quando recebi o convite para trabalhar numa desenvolvedora de aplicativos, aceitei sem pensar duas vezes.
Na empresa eu criei vários aplicativos. Um dos mais baixados era o aplicativo de cardápio online, que posteriormente foi copiado por outras empresas.

Na área de criação e desenvolvimento de apps, o que eu mais gostava de fazer era jogo. Principalmente jogo com criação de avatar. Pra cada jogo criado por mim, a concorrência desenvolvia outro. Era um trabalho desgastante, afinal, eu sempre tinha que pensar em algo novo todos os dias. Eu precisava estar um passo à frente das outras empresas.

Em determinado momento dessa carreira, minhas inspirações foram desaparecendo. Eu temia perder minha criatividade.
Depois de muito pensar, passar horas e horas debruçado em processos criativos, finalmente meu novo projeto estava pronto. Sinceramente, não era pra ser vendido, como de fato não foi, mas para ser usado exclusivamente por mim. Eu criei um aplicativo de ideias. Inteligência artificial, melhor dizendo. Em outras palavras, eu criei um aplicativo que criava aplicativos.

O início do projeto foi muito produtivo. Muitos aplicativos foram criados, mas eu selecionava apenas os melhores. Numa dessas seleções, escolhi um aplicativo que criava avatar. Até então, nenhuma novidade. Porém, o avatar era criado a partir das características psicológicas dos usuários. Para que isso funcionasse, o usuário precisava apenas ter uma boa câmera frontal e segurar firme o smart fone, que a assinatura de calor do aparelho fazia uma leitura do seu estado psicológico.

O avatar mudava várias vezes ao dia, sempre que o usuário clicasse no banner do app. Foi um sucesso. Vendemos muito. As vendas só caíram depois de um problema envolvendo a assinatura de calor.
Toda vez que um celular era vendido, os vendedores mostravam o funcionamento do aparelho, e a assinatura de calor ficava registrada. Não sei porque, mas algumas características comportamentais eram replicadas ao tocar no celular.
Quando troquei de telefone, passei a entender o problema constatado pelos usuários. Sempre fui uma pessoa calma e de repente, me tornei violento. Ao testar meu aplicativo, meu avatar não tinha nenhuma característica minha. Parecia um monstro, um demônio. Tentei solucionar o problema junto aos desenvolvedores, mas sem sucesso.

Sempre que eu segurava o celular, eu era tomado por um sentimento de ódio que nunca tive. E isso foi sentido por todos os usuários. Todas as pessoas que usavam celular, sentiam ódio quando tocavam nele e faziam coisas terríveis. A essa altura, meu aplicativo de avatar pouco importava, só servia para o dono do celular apreciar sua versão demoníaca.

Quando tentei negociar com as fabricantes de celular e com outros desenvolvedores, tive o não como resposta. Irritado, matei cada pessoa que negou o meu pedido.
Tive que fugir, mas fui pego.
Durante os anos que passei na prisão, refleti sobre o motivo do ódio gerado pelo toque no celular. Tantas pessoas manuseando o aparelho no momento da fabricação. Cada um com sua história, com seu sofrimento. Tudo transferido para o aparelho. E meu aplicativo revelando o que cada um é por dentro. Revelando o pior de si.

Depois de anos vivendo atrás das grades, eu estava desesperado para sair. Provavelmente eu morreria lá dentro. Pelo tempo que passei naquele lugar, posso dizer que é pior que o inferno. E dito isso, supliquei a quem ouvisse para me tirar daquele local e me jogar em qualquer canto, qualquer canto mesmo, exceto a prisão.

Felizmente eu fui atendido e em uma semana adoeci e morri. Pelo crime que cometi, eu sabia que não merecia o céu. Mas foi uma grata surpresa saber que eu poderia conviver entre os vivos, observando cada usuário através da tela.
Régis Di Soller
Enviado por Régis Di Soller em 29/06/2019
Reeditado em 06/07/2019
Código do texto: T6684788
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