Monte Castelo
Mário acordou num sobressalto. Rapidamente, sentou-se na cama e deixou a cabeça cair entre as mãos. Será uma noite difícil, pensou. Olhou para a mulher, Anne, que roncava. É, ela parecia mesmo não se importar. Porém, Alicia dormia tranquilamente em seu quarto rosa, cujas paredes compartilham as mesmas figurinhas da Barbie há mais de um ano.
Voltou a deitar-se, mas não dormiu. Pelo contrário, ficou encarando o teto e pensando na vida. Estava mesmo difícil, desde que Multi havia quase se quebrado com as novas negociações e por isso ele havia quase perdido o emprego.... Imagine, eu sem emprego! Como irei sustentar essa maldita casa??
Maldita.... Pensou muito sobre estas palavras. Não deveria falar isso. Era sua casa, sua esposa, sua filha! Estava sendo ingrato, de certo. Virou-se e desta vez fitou a sacada. Parecia mesmo tentador se jogar do 5° andar, mas o medo o deteve. Aliás, tinha a rede de proteção e..... Ah! A droga da rede de proteção. Ela que vá a merda! Aliás, odeio esta maldita família. Morram! Morram!
Um misto de sensações invadiu Mário rapidamente. Tomado pela fúria, ele pareceu decidir todo o seu destino em segundos. Se levantou bruscamente, no entanto, sem acordar Ane, e saiu em direção à cozinha. Voltou com uma tesoura bruta de ferro, com um sorriso no rosto e com o olhar de quem faz planos e mais planos para sua estadia no além.
Rindo baixinho, se dirigiu até a sacada. Com uma precisão qual nunca havia tido em anos de escritório, cortou a rede. O sorriso no rosto era evidente. Abriu um buraco de cerca de trinta centímetros de diâmetro. Feliz, colocou a cabeça para a fora do buraco. Iria apenas fazer isso e cortar o restante, mas algo o segurou por mais tempo na sacada do que ele jamais pensaria.
- Olá!
O sorriso irradiante agora era da pequena mulher, que se segurava na sacada com seus bracinhos aparentemente frágeis.
- Eu vim te ver!
A cara de Mário era mais de susto do que de decepção por não ter conseguindo se matar. Fitou pelo o que parecia horas e horas o rosto da sorridente anã, sem responde-la. A anã vestida em roupas rosas e com o que parecia ser um chapéu em bico de palhaço (mais tarde ele descobriu que, na verdade, era um chapéu de fada) tomou consciência de que Mário não havia entendido ou tinha mal compreendido a visita, por isso fechou o sorriso e se prontificou a buscar a carteira que sempre escondia debaixo dos pés, no sapatinho delicado de bailarina.
Mário gritou. A anã pareceu não se incomodar.
- Ora, me ajude a subir! – Ela se contorcionava para alcançar o sapato com apenas uma mão, mas o objetivo parecia impossível.
- Quem é você?
A anã riu. Ah, sempre a mesma pergunta! Pensou. Desistiu de pegar sua carteira e, fazendo muita força com os dois bracinhos, tão fininhos que pareciam de criança, até conseguir apoiar o joelho na beira da sacada. Finalmente se levantou. Parecia bastante aliviada.
- Ufa!- Exclamou, tirando a poeira de sua camisa rosa como se estivesse realmente suja. – Deixe eu entrar!
- Vá embora daqui!
- Mas eu...
Mário tentou chamar a esposa para que pudesse ajuda-lo. Nunca lhe passou pela a cabeça a possibilidade de tudo aquilo ser uma alucinação e Anne perguntar quem diabos havia cortado a rede de proteção da sacada. Seria doses e mais doses de remédio receitadas pelo doutor da família. Bastante previsível.
- Anne! Ann.. – Gritou, mas não pode terminar a frase, pois uma pequena e ágil mão havia tapado sua boca. Agora, os lábios pareciam grudados por uma supercola.
Mário virou-se e fitou a anã cara a cara. Ela não parecia feliz. Calmamente, fazia o sinal de “na-na-ni-na-não” com a mão livre. O grito de Mário abafou-se na pequena mão jovial.
- Agora sim! – Disse a mulherzinha, parecendo tão aliviada quanto da última vez. Rapidamente, puxou algo por debaixo da sola do pé esquerdo. Logo, mostrava com orgulho sua carteira. – Fada Alicia! Fada espiritual de crianças e Informante de Monte Castelo!
Mário não parecia entender absolutamente nada. Ouvira todas essas palavras prestando atenção em cada uma das silabas, mas o significado não parecia entrar em sua mente. Enquanto isso, olhava para a carteira azul e o rosto feliz da Sra. Fada Alicia, sorridente, nela. Alicia! É o nome da minha filha, pensou.
- Claro! – Falou a Fada. Mário parecia hipnotizado pelo absurdo do momento. Ela continuou: - Sou a fada espiritual de sua filha, Alicia. Obrigatoriamente, pelas regras do reino, devo ter o mesmo nome que ela. Agora, deixe-me entrar. – Disse, empurrando a cabeça despenteada de Mário para dentro do quarto. Ele entrou sem hesitar.
Lá dentro, olhou mais uma vez para sua esposa. Ela dormia como uma pessoa que realmente não havia escutado nenhum grito ou falatório minutos atrás. Logo percebeu que sua boca havia perdido o grude que tinha há pouco tempo atrás. A fada entrou com dificuldade pelo buraco na rede, e então adentrou o quarto como se já o conhecesse a muito tempo.
Mário não parava de fitá-la.
- Fale quem é você, Fa.. Seja lá quem for! Diga quem anda fazendo essa brincadeirinha e...
- Silêncio!!
O brado da Fada ecoou por toda a casa. Por um instante, ela pareceu ser bem maior do que realmente era.
- Já disse, sou a Fada Alicia. E a minha missão é com a sua filha.
- O que você quer com a Alicia sua.. – Iria falar piranha.
- Piranha? – Ela deu uma breve risada. – Ora, você não tem mesmo bons modos.
Mário calou-se. Pairou no ar um sentimento de aflição e mistério, e enquanto isso, a Fada permanecia lá, aparentemente imune a qualquer tipo de stress,
- Vamos fazer um trato. – Disse a fada, calmamente. – Sua filha está fazendo a transição para Monte Castelo. E peguei você em uma boa hora, logo iria acabar com tudo e levar o destino de sua filha por água abaixo!
- Monte o quê?
A Fada começou a andar em círculos em frente a cama, como se estivesse muito pensativa ou realmente pronta para enunciar um discurso.
- Sua filha é a escolhida. A nova rainha para o reino Monte Castelo. Precisamos leva-la!
Mário parecia não entender nada. Não sabia onde ficava Monte Castelo ou muito menos deixaria a filha se encontrar com aquela criatura raquítica e estranha. Por um momento, o mundo à sua volta soou estranho, irreal. Estou em um sonho, estou em sonho.. Pensava com toda a sua força. Quando eu abrir os olhos, ela... eu vou, quando abrir os olhos... Abriu, e lá estava a Fada, fitando toda a situação e criando uma certa impaciência diante da lerdeza do contrato.
- Por favor, me faça dormir.... – Disse Mário, quase chorando.
A fada pensou um pouco. Ergueu novamente pé e puxou algo que estava debaixo da sola do pé, mas dessa vez não era uma carteira, e sim um relógio de bolso.
- Tudo bem. Continuo me comunicando com você durante o resto do dia. Mas não se esqueça! Sua filha é...
Sua filha... Filha... Mário sentiu tudo rodar, ficou tonto. A Fada ficou translúcida, tudo ganhou um ar bêbado e tosco, pingava e pingava.... Desmaiou. Acordou com o sol alto. A mulher Anne já havia levantado. Só faltava.... Alicia! Mário saiu correndo para o quarto rosa. Rosa.,. Teve náuseas enquanto percorria pelo corredor. Alicia está... Abriu a porta. Ela parecia feliz no computador. De longe ele percebeu que jogava um daqueles velhos jogos mal feitos da Barbie.
- Filha!... – Suspirou, aliviado. – Então você não foi pra... – Parou, estatelado.
- Foi pra onde? Pai?
Ele vasculhou todo o quarto com os olhos. Parecia procurar algum sinal do irreal. Logo compreendeu. Estava tudo bem.
- Tudo bem filha, continue jogando.
Mário se arrumou para o trabalho e resolveu nunca mais tentar se matar. Havia mesmo tomado umas na rua noite passada antes de voltar para a casa. Só conseguia pensar em Alicia e se ela estaria bem. Teve a certeza de confirmar que a mulher não sairia de casa.
Passou o dia naquele ar de suspense, andando de um lugar para outro na empresa, impaciente. Digitou uma papelada como se sua vida dependesse disso, sem cessar. A noite, voltava para a casa, e estacionou o carro no estacionamento do condomínio. Seu celular vibrou no bolso. A pracinha parecia amigável, sentou-se e ligou o aparelho.
[Mensagem de: Anne] – Oi. Cuida da Alicia tá?
Ele hesitou.
[ Você] – Não está em casa?
Ficou parado, por um instante. Milhões de pensamentos vieram a sua mente. Anne respondeu rapidamente;
[Mensagem de Anne]: - Eu disse que ia sair com a Natália.
Mário largou o celular no banco e correu para o prédio.Sua mão nervosa tateava o molho de chaves, onde procurava a certa antes de subir os 5 andares. Não, não pode ser, não pode ser... Iria correu, quando tropeçou em algo. Um papel estava grudado no seu sapato e o fazia escorregar. Tomou aquilo com raiva. Era um papel rosa... Rosa... Pensou na fada. Tentou desviar o olhar para não ver a carta. Agora olhava para uma rede de plástico rasgada na janela ao lado. Janela de plástico rasga... Olhou para a carta. Gritou. No quarto de casal, Alicia se preparava para a transição. Quando Mário percebeu, foi tarde demais.
***
Para: Mario Pinheiro
De: Fada mãe
A carta é rosa, assim como a nova casa da sua filha. Ela veio, e quem sabe agora você tem um motivo para se matar (também)
[Adesivo da Tinker Bell]
.