Óculos Escuros

Meu gato é bastante arisco, como qualquer outro. Parece desconfiar de tudo, teme a própria sombra. O que me assusta, entretanto, é que de vez em quando ele está dormindo, enquanto eu estou de madrugada no computador, e acorda de repente, olha para o nada e fica em posição de ataque, ameaçando sabe-se lá o quê. Pescoço estendido, pelos eriçados, miado. É perturbador, mas sempre achei super comum, já que o gato consegue enxergar pequenos animais no escuro que nós não vemos. Bem, o problema é que eles também enxergam outras coisas além de pequenos animais, e me arrependi de ter descoberto isso.

No Centro do Rio de Janeiro, onde trabalho, perto da Praça da Cruz Vermelha, tem uma rua chamada Carlos de Sampaio onde há o que chamo carinhosamente de "shopping chão". São moradores de rua que, sentados na calçada, colocam pra vender quaisquer tralhas que encontram por aí. De vez em quando, se vejo algo interessante, eu compro (por 2, 5 ou 10 reais) só para ajudá-los, já que, pelo menos, essa é uma forma digna de trabalho. Outro dia estava olhando o tapete do Dorme Sujo (um dos simpáticos vendedores), e a única coisa nova era um par de óculos escuros no formato de gatinho. Por parecer muito feminino, nem passou pela minha cabeça comprar.

- Mas esse óculos é especial! - Ele defendeu sua mercadoria. - Faz a gente enxergar no escuro!

- Ah, é? - Ri, imaginando que era uma das conversas de bêbado com as quais ele sempre vem pra cima de mim. - Um óculos escuro que enxerga no escuro? Que tecnologia haha.

- Experimenta. - Disse, já pegando os óculos e tentando colocar no meu rosto. Como suas mãos estavam pretas, eu hesitei, mas não quis parecer rude. Ao permitir que me pusesse os óculos, entretanto, tomei um susto. Ao invés de escurecer a minha visão, os óculos de sol deram ao mundo um tom dourado, como se tudo estivesse mais iluminado. Mais do que isso, a minha visão se tornou muito mais nítida, e pude ver pequenos detalhes a uma grande distância enquanto dava uma olhada em volta. Além disso, as coisas pareciam se mover mais devagar, de modo que eu poderia acompanhar o movimento dos mosquitos, por exemplo, muito facilmente.

Achei super incrível e fiquei doido pra testar essa maravilha em casa. Poder enxergar o corredor quando fosse no banheiro à noite sem precisar acender as luzes, nem dar aquela topada gostosa na parede, parecia maravilhoso. Dei vinte reais para o Dorme Sujo e levei a mercadoria. Tive vontade de ir para casa usando aquilo, mas realmente não tive coragem de andar com um óculos em formato de gatinho, então deixei pra testar mais tarde.

À noite, coloquei os óculos no meu apartamento e, mesmo com todas as luzes apagadas, pude enxergar tudo nitidamente. Eu me perguntava por que alguém jogaria uma coisa dessas fora, mas não demorou para que eu descobrisse da pior forma possível.

Depois de um tempo a brincadeira cansou, então deixei os óculos de lado e fui para o computador. Por volta da meia-noite, a sala iluminada apenas pela tela luminosa, pude ver um vulto negro e pequeno correndo pelo chão. Era Luize, minha gata. Ela estava em posição de caça, o corpo tenso, as orelhas em pé, olhando para a escuridão, ameaçando alguma coisa. Fiquei curioso para saber para que ela estava olhando. Aqueles óculos me permitiam enxergar como um gato, então certamente eu veria o que ela estava vendo. Coloquei-os e mirei para onde Luize olhava.

- O que você está vendo, garota? - Perguntei, e fiquei procurando. De princípio, não via nada além de uma estante de livros, que eu mal enxergaria sem os óculos, mas com eles era capaz de ler o nome dos exemplares. Alguns instantes depois, como se minha visão estivesse se acostumando, vi aquela Coisa. Era um homem (ou algo parecido com um homem) de dois metros de altura, pele bastante pálida e enrugada, muito magro, buracos no lugar dos olhos, garras afiadas nas mãos, a bocarra enorme e tão aberta que a mandíbula parecia quebrada. Não tinha pés, mas flutuava a meio metro do chão, o que fazia sua cabeça chegar próximo ao teto.

A Coisa percebeu que eu estava olhando para ela, e agiu como um rato acuado, atacando ferozmente. A última coisa que vi foi Luize pulando para cima dele antes de eu virar o rosto e ficar em posição de defesa, colocando os braços em volta da minha cabeça. Os óculos caíram. Quando tive coragem de olhar novamente, só via Luize lá, de pé, seu corpo tremia. Eu sentia que a Coisa ainda estava ali, mas eu não podia enxergá-la sem os óculos. Fiz o que qualquer ser humano normal faria nessa situação: peguei os óculos no chão e sai correndo.

Só parei de correr, chorando como uma criança, quando desci os vinte andares e cheguei até a rua. O porteiro ficou me olhando, preocupado, e perguntou se havia acontecido algo. Tremendo, olhei para a janela do meu apartamento pela rua. Respirei fundo para tomar coragem. Coloquei os óculos para ver se a Coisa havia me seguido. Em um primeiro momento, depois que o mundo ganhou aquela tonalidade dourada, não enxerguei nada demais. Mas, após alguns segundos, pude ver, não uma, mas centenas - milhares - daquelas criaturas, flutuando por todos os lados, indo e vindo, entrando e saindo pelos apartamentos dos prédios ao redor. Para onde eu olhava, via aquelas coisas navegando pela noite. Então algumas olharam para mim, notando que eu as podia enxergar. Joguei os óculos fora e sai correndo.

Desde então, nunca mais usei óculos escuros na vida, e todas as luzes de casa ficam sempre acessas. Luize morreu, mas arranjei outros gatos. Agora, toda vez que eu os vejo agindo estranho, nem me questiono mais. Simplesmente saio de perto e, assim que possível, arranjo mais um gato.

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Esse texto está relacionado a outro conto que escrevi anos atrás. Confira:

https://www.recantodasletras.com.br/contosdeterror/6430588