O HÓSPEDE DO JAZIGO 98.
Valdomiro achou um pacote de bolachas Trakinas no banco da praça. Alguma criança o deixara ali. A chuva era fina. Um frio de rachar. Teria alguma coisa pra comer naquela noite. Ele se aproximou de uns jovens que ouviam música num volume ensurdecedor. Som potente nos carros parados ao lado da catedral. Adorava Bon Jovi. -" Sai pra lá, farrapo fedorento!!! Lixo!!" Um dos jovens deu um chute em Valdomiro. Eles riram quando o pacote de bolachas caiu no chão. O morador de rua saiu pegando as bolachas. Valdomiro foi procurar um lugar pra dormir. Sabia onde tinha papelão. Andou por seis quadras. Olhava as vitrines das lojas chiques. Olhava as pessoas com sacolas. Olhava o movimento dos carros. Apenas olhava pois era como se ele fosse invisível. Uma viatura policial estacionou. Dois guardas desceram. Um deles de arma em punho. -" Mão na cabeça, vagabundo!!! De costas. Vai!!!" Valdomiro obedeceu. -" Bolachas, Fernando!!! Foi ele que assaltou o mercadinho!!" Valdomiro foi algemado. Levou um tapa no rosto. Um golpe de cassetete na coxa direita o fez ver estrelas. Um dos policiais pegou a identidade de Valdomiro. -" Vamos puxar a capivara, ficha policial dele!" Disse um dos guardas. Chamou a central pelo rádio amador. -" Valdomiro das Neves Cruz e Silva! Puxou cana de vinte anos por assalto seguido de morte. Latrocínio!!!" O policial repetiu o que ouvira da central. Valdomiro abriu a boca. -" Eu já paguei, meu senhor! Não roubo mais!!" Os policiais o revistaram. Estranharam o fato dele portar apenas um pacote de bolachas. -" Deve ter escondido os maços de cigarro, o celular e o dinheiro, Nascimento!!!" Valdomiro foi colocado na viatura. Fernando atendeu seu celular. -" Capitão!! Pegaram o sujeito que assaltou o Extra Rebouças???!? Pardo, bigode e branquelo!!! Grato, senhor!!!" Fernando olhou para seu colega. Valdomiro não tinha bigode. Era moreno. Tinham cometido um engano. Valdomiro era inocente. Ele ficou livre das algemas. -" Vai em paz, irmão!! Vai embora!!" Eles entram na viatura e se foram. Valdomiro colocou a mão na perna. Mal podia andar. Raios. Uma chuva forte se aproximava. Valdomiro viu o cemitério da Ressurreição. Contornou a guarita, na entrada principal. O vigia assistia o jogo entre Palmeiras e Rio Branco, de Americana, numa tevê pequenina. Havia uma parte do muro que estava em obras. Valdomiro entrou. Não gostava de roubar bronze das sepulturas, como outros moradores de rua. Respeitava os mortos!!! A chuva caiu, intensa. Aquele local dava medo. Valdomiro tinha medo da fome apenas. Da polícia também!! Raios iluminavam as cruzes e estátuas de anjos de mármore. Um jardim. Um rico e grande jazigo ornado com imagens de Cristo no Horto das Oliveiras e no monte Tabor. Jazigo 98. Família Arruda de Albuquerque. Valdomiro puxou pela memória. Onde tinha ouvido aquele sobrenome???? Deu socos na sua cabeça. O crack devia mesmo ter comido seus miolos!!! Sempre escutava isso. Retirou a pedra da entrada da sepultura. Estava solta. Era naquele lugar que seu amigo Juliano escondia os cobertores e as garrafas de pinga. O velho Juliano morrera há um ano, atropelado no sinal. Valdomiro rastejou e deixou-se cair dentro do túmulo. Um local gelado. Concreto. Abafado. Estava protegido da chuva. -" Vai embora!!!!!!" Valdomiro olhou pra fora. Alguém o mandava embora!!! Estava acordado ainda. Estranho. Um rato passou em cima de sua perna. -" Vai embora, maldito!!!" Ele escutou direitinho dessa vez. Achou que era coisa de sua imaginação. A imagem dos amigos Piolho e Alexandre e de seu padrinho Osmar. Tudo veio em sua mente. Sua matriarca veio de Alagoas e trabalhou muitos anos de cozinheira numa casa de uns ricaços paulistanos. Delzuite morreu de dengue. O pequeno Valdomiro, com oito anos, foi criado por Osmar, na favela da Serrinha. Osmar era apenas vizinho de Delzuite mas quis criar Valdomiro, amigo de seus filhos Piolho e Alexandre. Osmar era coletor de materiais recicláveis. Tinha um grande coração. Os filhos e Valdomiro o ajudavam no trabalho. Osmar pegou uma grave infecção na perna. Sofria de asma e bronquite. Precisava de exames e remédios caros. Passava horas na fila do Sus. Seis dias depois de completar dezoito anos, Valdomiro recebeu uma proposta de Piolho. -" Valdo, vamos melhorar as coisas para o papai!!!" Disse Piolho, decidido. -"Finalmente vamos procurar emprego???" Valdomiro levou um tapa na cabeça. -"Emprego??? Nem temos estudo, mano!!" Lucinda, namorada de Piolho, entrou no barraco abandonado. Valdomiro não simpatizava com ela. -" A Lucinda trabalha na mansão do comendador. Meu amor está lá faz dois anos. Tem um cofre cheinho de grana, a nossa espera." Valdomiro quis sair do local. Piolho lhe apontou uma arma. -" Se sair, morre!! Sabe dirigir, Valdo!! Vai ter que ir com a gente!!!" Lucinda abriu um caderno. Tinha marcado os nomes e horários dos familiares do comendador e funcionários da mansão. O velho comendador ficava sozinho durante meia hora, entre quatro e quatro e meia da tarde. Nesse tempo eles deveriam entrar e roubar a casa. Estefanie e Laurindo, filhos do comendador, estariam fora na academia de ginástica e no banco, respectivamente. O motorista sairia para buscar Nicolau, filho de Laurindo, na escola. O vigilante Souzinha, do turno da noite, entrava às cinco da tarde pois fazia bicos numa loja de esportes. O outro guarda saia sempre às quatro e meia da tarde pois estudava a noite. A cozinheira e a faxineira também saiam às quatro da tarde. Druzila e Filomena detestavam perder seus onibus!! -"Terão meia hora. Sairei com Druzila e deixarei o portão apenas encostado. O cofre fica no quarto de cima, no fim do corredor. A chave do cadeado fica atrás do quadro de dom Pedro." Explicou Lucinda. -" Anime-se, Valdomiro. Faremos isso pelo velho Osmar! Ele merece!!!" Piolho tirou um sorriso de Valdomiro. Faria pelo padrinho. Valdomiro, Piolho e Alexandre passaram pela mansão, dias antes do assalto. Analisaram tudo. Lucinda estava certa. Tudo daria certo, tudo fora bem orquestrado. Piolho, um dia antes, roubou um carro. Um Opala. Valdomiro estacionou o carro na esquina, a poucos metros da mansão. Alguns carros sairam da casa. Minutos depois, eles viram Lucinda e as outras empregadas deixarem a casa. Eles sincronizaram os relógios. Piolho retirou um revólver da cintura. Ele e Alexandre cobriram as cabeças com meias de seda. Valdomiro os deixou em frente a casa. Piolho e Alexandre entraram. Valdomiro deu a volta na quadra e retornou a esquina. O comendador estava na sala de estar. -" Quieto, velho!!!" Piolho rendeu e amarrou o comendador numa cadeira. Alexandre subiu as escadas. Tinha dois quadros de dom Pedro!! O primeiro e o segundo!!! Na dúvida, Alexandre quebrou os dois. Nervoso. Impaciente. Tenso. A chave. Abriu o cadeado. Tirou dois sacos brancos do cofre. Conferiu. Tinha muito dinheiro neles. Milhões. Desceu a escada, exultante. -" Bóra, Pi... pintassilgo!!! Tudo aqui!!!" Quase disse o apelido do comparsa. Piolho se distraiu. Sorria. Tudo certo. O comendador deu um chute na mesa. Um alarme alto disparou. Piolho viu um botão vermelho, debaixo da mesa. -" Idiota!!!!" Piolho deu um tiro no peito do comendador. Valdomiro escutou o alarme e o tiro. Ligou o carro e foi pra frente da mansão. Piolho e Alexandre entraram no carro. -" Pisa Valdo. O velho Arruda morreu!!!!" Gritou Piolho. Alexandre abriu um dos sacos e mostrou aos outros as notas cem reais. -"Ricos!!! Estamos por cima agora!!!" O carro entrou na marginal e depois seguiu pra mata da Serrinha. Esconderiam o dinheiro num buraco, debaixo de um pé de jaca. Dez minutos depois, um helicóptero voou sobre eles. -" Sujou. Os homens da lei nos acharam!!!" Disse Alexandre. Lucinda não atentou para um detalhe crucial:
havia uma delegacia a quatro quadras da mansão. O carro entrou na mata. Seis viaturas chegaram. Piolho e Alexandre fugiram em meio ao matagal. Valdomiro recebeu voz de prisão. Policiais, dezenas deles, com cães farejadores, entraram na mata. Piolho recebeu-os a bala. Atirava a esmo. Ele e Alexandre foram mortos. O dinheiro todo recuperado. O delegado Amorim conversou com os familiares e empregados da mansão. Era evidente que alguém passara informações privilegiadas aos assaltantes. Uma moradora da favela disse ao delegado que Lucinda era namorada de Piolho. A moça foi presa e confessou sua participação. Ela foi condenada a vinte anos de reclusão, por participação no latrocínio. Valdomiro recebeu a mesma condenação!!! O caso ganhou as manchetes policiais. O comendador Arruda de Albuquerque fora morto num assalto!!! Osmar ficou triste e depressivo. O coração não suportou tanta tristeza. Osmar morreu seis meses depois. Valdomiro cumpriu a pena e não voltou mais pra casa. Decidiu morar nas ruas. Enquanto se lembrava disso tudo, adormeceu dentro do jazigo. Passava de cinco horas da madrugada quando ele abriu os olhos. Tinha companhia. Um outro mendigo entrara no jazigo pra se proteger. -" Aqui é pequeno pra dois, amigo!!!" Disse Valdomiro. O outro sorria. -" Assassino!!! Maldito Piolho!! Captei seus pensamentos, Valdomiro!!!" O outro era agora um fantasma de roupas nobres. Um buraco no peito. Uma ferida sangrando. -" Não! Nem atirei, senhor. Fiz pra ajudar meu padrinho!!!!" Valdomiro tremia de medo. Não sabia se sonhava ou estava acordado!!! Tentou rezar. Fechou os olhos mas o fantasma estava ainda em sua frente. -" Sou o comendador Arruda de Albuquerque. Enlouqueci a Lucinda, que morreu na cadeia. Agora, irei possuir seu corpo e o levarei ao meio da avenida. Vai morrer como aquele outro intrometido, o Juliano!!!" Valdomiro gritava de pavor. -" Por Jesus!! Perdão, comendador!! Cumpri a pena e me arrependi!!!! Vade retro!! Socorro, mãinha Delzuite!!!!" O fantasma estacou, paralisado. -"Delzuite!! Conhece a Delzuite???? Tive uma cozinheira com esse nome!!! Delzuite das Neves Cruz e Silva!!!" Valdomiro estava incrédulo. -" É minha mãe, sim!! Ela mesma!!!" O fantasma ficou com ar tristonho. -" Finalmente achei meu filho. Eu amei muito Delzuite. Tentei contato com ela, em vão. Eu soube, bem depois, que ela estava grávida!!!! Valdomiro, você parece muito comigo!!! Vai pegar o que é seu, filho!!!" O fantasma sumiu. O dia raiou. Ele saiu do cemitério e foi andar pelo centro da cidade. O corpo doía. O fantasma do comendador o acompanhava. O rapaz estava alheio ao movimento da cidade. Aéreo. Valdomiro ficou pensando em tudo que ouvira!!! Sua mãe era muito bonita!!!Era bem provável que o comendador se encantasse por sua mãe!! Dias depois, ele procurou um jornalista. Ficou horas do lado de fora da Tribuna, aguardando a saída do repórter sensacionalista Turíbio Atanásio. O repórter deu-lhe dez minutos. Apenas isso. Valdomiro contou sua história. O jornalista, entusiasmado, lhe mostrou fotos do comendador. -" Sim, você é muito parecido com ele!!! Rapaz, você é herdeiro de um bilionário!!!" Valdomiro foi matéria de jornais. Os filhos do comendador aceitaram fazer um teste de DNA. Resultado positivo. Valdomiro era filho e herdeiro da fortuna do comendador. Após muitas conversas, os filhos do comendador chegaram a conclusão que Valdomiro estava arrependido do crime e que ele era um bom rapaz!!! Ele declinou sobre morar naquela casa rica. Comprou uma casa simples, pequena. Estudou muito, apoiado pelos outros filhos do comendador. Anos depois, concluiu os estudos básicos. Formou-se em medicina. Hoje é um clínico geral que cuida muito bem dos pobres e menos favorecidos, como seu padrinho Osmar!! Sempre leva flores ao jazigo 98!!!! FIM