O MOTORISTA DA UBER
Gente do céu! Meu nome é Roberta e semana passada eu tive a experiência mais assustadora da minha vida. Estou preocupada com o que aconteceu até agora. Ninguém acredita no que eu estou dizendo. Todos me dizem que eu estou louca ou estava bêbada demais. Mas o que vi foi tão real quanto as palavras que eu vos digo com assombro e horror.
Fui convidada pra ir numa festa, dessas que tem de tudo, mas ainda é semelhante a um “pancadão” de comunidade. Era na casa de um aluno bem de vida chamado Eduardo e ele combinou com todo mundo para comemorarmos o fim do último semestre da faculdade e a nossa breve formatura que se daria um mês depois.
Eu não era muito de ir nessas baladas, mas dessa vez a festa prometia, porque o Felipe estava louquinho pra ficar comigo e eu... é claro, não dispensaria um gato daquele nunca na minha vida.
Marquei de me encontrar com minhas amigas, Ágata, Beatriz e Carol, lá na festa. As três populares, como se dizem nos filmes adolescentes, porém essas eram super gente boa e me quebraram o maior galho na ultima regimental passando as respostas com nossos códigos de olhares, acenos, tossidas e balançar de cabelo.
Cada uma estava a fim de beber muito, e ficar com vários naquela noite. Só a Carol que levou o namorado dela, Gustavo, que, achava eu, já tinha traído ela com a Ágata, aquela cachorra. Só eu que não estava muito a fim de beber. Porém a noite é uma criança e pensei comigo mesma: “Me matar de estudar igual uma condenada para agora que tenho chance de curtir a vida e usufruir o que conquistei com meus próprios méritos eu vou dar uma de santa? Nem ferrando!” E fui.
A festa começava às 19h. Eu sairia de casa às 17h30 pra não me atrasar, pois era um pouco longe da minha casa. Mandei um zap pra Carol pra saber como ela faria pra ir e sua resposta foi que iriam pegar a Ágata e a Beatriz de carro com o Gustavo que tinha acabado de tirar a carta, mas já dirigia a Captiva do pai há tempos, e de lá iam direto para a festa. A Ágata, segundo minha amiga, já parecia chapada; e ela ficava insuportável quando usava.
Como eu morava mais distante eu decidi ir de busão mesmo. ‘Tava nem vendo. O negócio era apenas curtir. E como o passe livre estudantil ainda tinha crédito, aproveitei o benefício.
Chegando à festa eu fiquei um tempo procurando minhas amigas naquela mansão com piscina do Eduardo, mas não achei ninguém, exceto o Felipe, que estava um gato com aquela camisa polo bege e aquela calça jeans rasgada em algumas partes. Ele fazia meu tipo.
Estivemos juntos a noite toda. Ele me convidou pra beber e acabei entrando na onda. Muito pouco para minhas amigas, mas para mim foi o suficiente pra ficar um pouco aérea.
Não sei o que aconteceu que as horas voaram, porém foram momentos maravilhosos ali com o Felipe que me apresentou para uma galera que estava com ele. Acabei me esquecendo das minhas amigas e curtindo a festa. Conversamos muito e trocamos uns amassos.
Quando lá para as bandas da madrugada meu celular começou a tocar. Era minha mãe. Eu não estava afim de ouvir sermão do monte pra tomar cuidado, não chegar tarde; e como estava meio bêbada, desliguei o celular e continuei dançando, bebendo um pouquinho mais e a hora voou.
Perto do fim da festa eu já estava querendo ir embora quando o Felipe perguntou se eu não queria dormir na casa dele. A oferta foi tentadora, mas recusei. Ele entendeu e nos despedimos. Fui até à calçada procurar as meninas e liguei o celular. Tinha várias ligações da
minha mãe e eu nem olhei. Liguei para a Carol. Nada. Ágata, nada. Nem tentei pra Beatriz porque ela era meio tonta e sempre deixava no silencioso.
De repente surgiram saindo de toda aquela multidão a Carol de mãos dadas com o Gustavo e as meninas. Meu Deus! Como elas
eram loucas! Disseram que me procuraram a festa inteira, mas pela cara da Beatriz e a roupa das outras duas eu desconfio que estiveram procurando outra coisa e acharam.
- Mulher, por onde você andou? – perguntou prestativa a Carol olhando pra mim.
- Meniiinaaaaa – disse a Ágata com aquela voz escrota dela de chapada – hoje eu to tão louca que se deixar eu durmo na ruaaaaa.
- Se toca, menina. Deixa de ser galinha. – Falou Beatriz com as debochado – Só hoje acho que você cometeu os sete pecados capitais de uma vez só. E com mais de uma pessoa.
- Berta, você veio de busão mesmo? Você é corajosa de verdade, hein menina. – Carol falava um pouco mais sóbria – Eu amei a festa, pessoal muito top, o Edu é um cara super bacana, mas to morta e não aguento mais um minuto. Hoje parece que até o Gustavo vai ter que dormir lá em casa.
- Me deixa dormir contigo, Ca? – titubeava a fala da Ágata.
- Gente, agora não tem mais ônibus. Esqueceram que amanhã é feriado e nosso busão não passa? – eu falei já sentindo a cabeça doer um pouco. – Se o Gustavo não estiver bêbado eu ia pedir uma carona pra ele até minha casa e...
- Xiiiii... nem rola, Berta – respondeu Gustavo que não aparentava estar tão sóbrio. – Eu nem pude vir de carro. Deu um problema no meio do caminho, tivemos que voltar, deixar o carro na Carol e pegar um Uber pra chegar aqui.
- Ah, gente! – Falei chateada. – Mancada né. Eu to sem dinheiro aqui e vocês sabem que no Uber não pode mais de cinco pessoas.
Após olhar a expressão facial de cada uma delas e cogitei muito a proposta do Felipe.
Até que a Carol se prontificou:
- Faz assim, miga. Pode chamar o Uber. O pessoal tá meio louco aqui. Pede um Uber no seu celular. Deixa que a gente paga. Aí se o motorista embaçar, como estamos chamando do seu perfil, você vai na frente e a gente se amontoa lá atrás. Qualquer coisa eu e o Gustavo pedimos dois e a gente arca com tudo, fechou?
- Pode ser, Ca. Ai... Obrigada, amiga. Depois te pago, tá. Vou chamar aqui.
- Relaxa. Tá de madrugada, numa festa aqui nesse bairro bonito, afastado da favela... duvido que os motoristas não estejam na fome de ganhar dinheiro. Se deixar eles colocam até no porta-malas, mas perder dinheiro eles não perdem. – dizia a Beatriz.
Cliquei no aplicativo, colocamos o endereço, uma parada onde eu desceria e o destino final, que seria perto da casa da Carol, porque as meninas moravam perto uma da outra, e solicitei um motorista.
Apareceu um nome que na hora minha cabeça doeu e eu nem vi direito. Eu juro que eu li Carlos Fontes. Nem me importei. Só sei que o carro seria um Voyage.
Mandamos mensagem para o motorista sobre nossa condição e ele só respondeu com um:
“Estou chegando. Levarei apenas quem eu posso nessa única viagem.”
Já estávamos imaginando o caô que seria quando estacionou do outro lado da rua um Voyage 2016 azul lindo que parecia ter saído da concessionária naquela hora. Ele abriu o vidro e buzinou.
Quando iríamos conversar com ele sobre o numero de passageiros ele disse:
“Boa noite! Fiquem à vontade. Pagando, a viagem será bem sucedida. Entrem.”
As meninas abriram a porta da frente pra mim e eu sentei do lado do motorista, enquanto elas se amalocaram lá atrás. Gustavo e Carol começaram a se beijar ali e a Beatriz e a Ágata que não falavam nada com nada, uma no colo da outra, estavam quase dormindo. Só eu estava atenta à viagem naquela hora. Abri a janela do meu lado da porta para entrar um vento fresco.
O motorista era um moço alto, aparentava ser muito bonito, com um cavanhaque, vestia uma jaqueta de couro preta, uma camisa branca da Nike, uma calça de sarja preta e um sapatênis. Era quase 4h30 da madrugada, tudo escuro, mas o que me chamou a atenção era que ele estava de óculos escuros. Eu iria perguntar o porquê dos óculos e ele apenas sorriu sem me dar resposta. Continuou viagem. A viagem seria longa, porque ele andava à cinquenta km despreocupado. Silencio total.
Não sei vocês, mas viajar em silencio sempre foi muito desconfortável pra mim. E naquela madrugada deserta e escura então, pior ainda. Minhas amigas dormindo, Carol e Gustavo quase transformando o carro num motel e eu estava calada ao lado de um estranho que usava óculos em plena madrugada.
De repente ele começou a falar:
- Gosta de ler, Roberta?
Eu me atrapalhei toda para responder um “Sim, sim. Gosto.” Já que não é todo o dia que um Uber vai falar com você do nada sobre um assunto tão distante do qual você sequer está esperando. Antes ele falasse do governo que eu poderia enrolar sobre minha opinião. Mas ler? O que aquilo tinha a ver?
- Legal. - ele respondeu num tom seco.
Silencio novamente.
Ele voltou a falar:
- Que tipo de livros?
- Ah. Literatura de preferência. Li muitos autores legais na faculdade. – decidi abrir caminho para um dialogo literário já que era a única via de acesso, mesmo que esquisita, para minha dor de cabeça ser esquecida.
- Você quer dizer POR CAUSA da faculdade, certo?
Eu jurava que ele falou como se fosse um avô.
- É. Também. Não vou mentir. Mas você também gosta de ler?
- Gênero?
- Oi?
- Gênero? Eu perguntei que tipo de genero você mais gosta.
- Olha... Romance, fantasia, mitologias, ficcção cientifica eu curto de vez em quando...
- Terror? – ele perguntou com uma voz muito baixa. Esse tom me instigou estranhamente a responder automaticamente sussurrando também.
- Sim. Curto um pouco.
- Autores?
Eu sinceramente já não sabia se estava voltando de Uber ou terminando o trabalho de literatura mundial.
- Edgar Allan Poe, H. P. Lovecraft, Mary Shalley, Stephen King. São meus preferidos.
- O que acha de histórias de terror?
- Não acho nada. São legais. Roteiros bem escritos. Dão um medo enquanto se lê, mas nada que fuja da normalidade. Afinal, é só história. Ficção.
Ele riu de leve. Aquilo me pertubou.
- Sabia que a ficção se baseia na realidade, certo?
A viagem que era pra ser desconfortável pelo silêncio estava agora desconfortável por causa do som das palavras ditas num tom muito bem falado do motorista que puxou um assunto maluco. “Ele devia estar na festa também”, pensei.
- Olha – respondi – até tem casos que realmente são inspirados na vida real, mas Juan Carlos Onetti já dizia: “minta sempre” Então tudo pode ser apenas invenção da cabeça do...
- “O poeta é um fingidor...”
Ele começou a recitar Autopsicografia de Fernando Pessoa pra mim de cor. Eu tentando fugir dos assuntos da faculdade, mas ela me perseguia. De óculos.
- Vejo que o senhor gosta de literatura também. Isso é... isso é legal.
Entramos numa rodovia.
De repente ele aumentou um pouco mais o tom de sua voz:
- O que acha de O Corvo, de Poe?
- Muito bom.
- Lembra no que ele se baseou?
- Nos dois temas mais pungentes. A morte como mistério e a mulher amada como base. - falei no automático.
Silêncio. Ele volta a falar.
- A morte é algo estranho, não acha?
Meus pés começaram a se mexer freneticamente como se meu corpo pinicasse com aquela conversa. Senti um coçar nos olhos e a cabeça voltava a doer de vez em quando. Porém o que mais perturbava é que eu estava numa rodovia em plena madrugada com um motorista falando da morte.
- Olha, senhor. Não sei aonde quer chegar, mas não gosto de falar da morte. Vamos falar da vida... viver a vida, não é. Viver é bom.
- Eu... já perdi meu irmão. Ele foi morto. – interrompeu-me bruscamente o homem.
- Oh. Moço... eu sinto muito.
- Faz tempo. Briga de família. Já passou.
- Espera. Como assim?
Ele apenas virou-se rapidamente para mim e sorriu sem mostrar os dentes e voltou a focar no trajeto. Meu coração começou a bater mais acelerado.
- Se importa se eu lhe contar de onde vim?
- Não, moço. Fica a vontade. – minha cabeça voltava a doer quando eu dizia essas palavras.
- Eu sou originário da Europa. Amo o mar.
Minha cabeça começou a doer mais.
- Moço, acho que minha cabeça está doendo um pouco. Não sou acostumada a beber.
Ele ignorou. Acelerou um pouco o carro. A rodovia estava muito escura e o vento forte pela janela aberta do carro estava começando a parecer que sussurrava pequenas vozes no meu ouvido:
- A morte é um mistério belo. Inevitável. Incompreensível. Mas ela vem uma hora ou outra para todas as pessoas. Sem avisar. Independente de quão boas ou quão más elas foram. Sempre os poetas gostavam de falar sobre a morte. Os românticos idealizavam a morte. Os modernos. Até os góticos.
- Cara, do que você está falando? Que papo de morte é esse? Você é algum sadboy? – falei irritada pela dor de cabeça.
De repente ele falou meu nome. E aquela voz ecoou dentro do meu peito como se eu estivesse em uma caverna:
- Roberta!
Aquilo me foi um baque. Todo o meu corpo se arrepiou:
- Si... si... sim, moço?
Ele sorriu:
- Voce sabe por que eu acho que a realidade inspira a ficção?
Uma tontura começou a me tomar. Minha visão ficou um pouco mais embaçada. O barulho do vento estava parecendo uma mão de ar frio cortante que segurava minha cabeça e a rodovia mal iluminada tornou-se mais escura ainda.
Ele prosseguiu no discurso:
- Porque todos sabem, mesmo que tenham medo de admitir, que a realidade é bem pior que a ficção!
Do nada ele acelerou o carro e começamos a ir bem mais rápido naquela rodovia envolta em trevas. Cerca de 130 km por hora. Meus olhos entreabertos não sabiam mais o que estava acontecendo. Se estava bêbada ou sonhando. Uma coisa é certa: Quando saímos da rodovia e entramos numa curva de acesso à uma avenida, as coisas começaram a ficar mais aterrorizantes ainda.
Ele acelerou um pouco mais o veículo. Olhei para trás e os quatro passageiros de trás estavam inebriados de sono. Apenas eu estive acordada durante todo esse momento horripilante.
O motorista tocou em meu ombro:
- Veja como é belo tudo isso, Roberta. Abra os olhos e veja.
Eu estava ainda meio zonza e de cabeça baixa no momento em que a voz suave e sombria dele me fizeram despertar.
Quando levantei meus olhei, vi que a estrada pegava fogo. As casas estavam queimando e o céu se tornara tão negro quanto uma sombra da morte. Os ventos agora faziam sons fantasmagóricos e era possível ouvir gemidos e gritos de pessoas.
Fiquei paralisada de medo com aquela visão dos infernos. Eu tentei gritar, mas a voz não saía. Foi quando eu olhei para ele novamente. Ele estava sem óculos. O seu aspecto ficou esqueletico, seu rosto parecia uma caveira e dava pra que sua boca ficou enorme e num sorriso perverso pude ver seus dentes enormes como facas. Porém não olhou para mim. Ele começou a falar com uma voz grave como se viesse de dentro de um fosso:
- Ficção! Ficção! Ficção! Mortais que vivem uma vida de ficção querendo resultados reais! Mentem para si mesmos; anseiam pela verdade, mas ainda são fascinados pela mentira. Porém no fundo eles sabem que tudo aquilo é real, porque se veio da mente deles, o íntimo dos seus corações guardam um medo... medo de serem ELES a ficção e tudo o mais da ficção ser real!!!
Eu vi o céu se abrir como uma cortina enegrecida e a lua aparecer vermelha como sangue. As nuvens ficaram negras como o piche e parecia que tudo estava começando a tremer. Foi quando vi que o vidro do carro se fechou sozinho.
Tentei abri-lo, mas ele estava travado. Me debati desesperadamente para tirar o cinto, porém ele me prendeu com mais força ainda. Nenhuma voz saía da minha garganta.
Então sombras começaram a tomar o carro vindo do assoalho; aquelas trevas espessas eram geladas e ásperas. O pânico tomou conta de toda a minha frágil existência diante daquele ser assustador.
Até que ele me disse:
- Roberta. Abra o porta-luvas. Você sabe o que tem que fazer.
Minha voz saiu.
- Mas o que tem no porta-luvas? Socorrooo!!!
- ABRA O PORTA-LUVAS E FAÇA O QUE TEM QUE FAZER! - disse com voz ensurdecedora que fez meus tímpanos fecharam com a densidade das trevas que estava no carro.
Quando olhei para ele no meio daquelas trevas só pude ver dois olhos vermelhos como chamas incandescentes sorvendo toda a atenção da minha alma como se estivesse cravando uma flecha dentro do meu coração.
- ABRA!
Tateei naquela escuridão o veículo e achei o porta-luvas. Abri. Tinha uma cartela de comprimidos lá dentro. Aqueles comprimidos me eram muito familiares.
Quando olhei para os remédios, vi que eram comprimidos semelhantes aos que eu tinha em casa. Então me lembrei que um dia, por um motivo que não me lembrei no momento, eu tentei me matar tomando todos aqueles comprimidos. Parece que eu voltei no tempo e me vi no meu quarto querendo acabar com minha vida. Aquilo me fez chorar copiosamente.
- O que você quer de mim? Me fala!
QUERO CHEGAR APENAS AO SEU DESTINO! FAÇA O QUE TEM QUE FAZER AGORA!
Eu só podia ver a cartela de comprimidos na minha mão. O ar, como um sopro rápido, começou a me faltar. Eu respirava com dificuldade. Tentei chamar por meus amigos, mas as trevas cobriam de tal forma o carro que eu já nem sabia se estava num veículo ou num limbo sombrio.
- FAÇA! CUMPRA A FICÇÃO!
Eu olhava para aqueles olhos malignos com muito medo, quando percebi que em minha mão havia um copo com água já aberto, e vários comprimidos já fora da cartela na outra mão. Estava tudo pronto. Eu iria morrer naquele carro.
Então como num sobressalto de força, semelhante ao que fiz na noite em que tentei suicídio, eu joguei a água e os comprimidos da minhão com violência.
- PARA ESSE CARRO AGORA! - gritei com todas as minhas forças.
Imediatamente eu me vi na rua que dava acesso a minha casa com o motorista olhando para mim com seus óculos escuros ainda no rosto, e minhas amigas reclamando do lado de fora:
- Vamos, Berta! Sua bêbada! Mal bebeu e já deu pt? Tá osso, hein? Já deu. Chegamos à primeira parada. Ponto desce. Vamos! – falava a Carol com voz de sono com sua roupa toda amarrotada.
Eu não sabia o que tinha acontecido. Não havia trevas, vento fantasmagórico, nada girando, nada me sufocando. Tudo estava claro e tranquilo como se nada houvesse acontecido.
Encarei meu motorista e com muita estranheza e ainda suando frio lhe perguntei:
- O que aconteceu aqui?
- Nada, ué. Por que? O que eu fiz moça? – ele me olhou com um ar verdadeiro de preocupação temendo por sua avaliação como condutor.
- Mas as trevas. Você tava parecendo um monstro de filme de terror. E as trevas e o ar e o carro que entrou numa avenida estranha e...
Ele sorriu, pegou em minha mão e disse:
- Moça. Calma! A gente só estava conversando sobre literatura. Aí eu e você viemos o caminho todo conversando sobre livros de terror, ficção, etc. Se eu te ofendi em algum momento me perdoa.
Recompus meu estado natural. A cabeça ainda doía muito. Estava ainda confusa e um pouco zonza com tudo aquilo. Então saí do carro e cumprimentei minhas amigas e o Gustavo. A Ágata dessa vez foi no banco da frente. Agradeci a todas.
O motorista manobrou para prosseguir viagem com os demais, quando ele parou o carro perto de mim:
- Moço, muito obrigada mesmo. Desculpa por minha amiga ter ido no colo da outra. sei que não pode excesso de passageiros e...
Ele olhou para mim e sorriu:
- Fique tranquila. Foi você que veio a mais. Eu só iria levar quem eu podia nessa viagem. Tudo bem?
- Ok. – turbei com aquelas palavras.
Nessa hora pude ver um pequenino brilho vermelho por trás dos seus óculos. E então o carro deu partida e foi com as meninas gritando e pedindo musica.
Cheguei em casa minha mãe não estava. Estranhei. Nem liguei. Capotei na cama.
No dia seguinte acordei com minha mãe me abraçando e me beijando igual uma desesperada:
- Filha! Meu Deus! Graças a Deus! Que bom que você está bem! Eu te amo! Eu te amo! Eu te amo!
- Calma, mãe! O que foi? O Que que aconteceu com a senhora?
- Meu amor. Eu te liguei tanto pra saber se você estava bem. Você não sabe o que aconteceu. Não consegui dormir e fui atrás de você na festa.
- Mãe. Eu não acredito que a senhora foi lá me buscar! Mãe! – gritei – eu não sou mais uma menina de doze anos! Eu tenho vida e já sei cuidar de mim! Só fui numa festa e fiquei com minhas amigas. Tanto é que voltei com elas de Uber.
Ela parou por um momento como se não houvesse entendido o que eu disse.
- Filha... você não viu o jornal ontem?
- Mãe, eu fui pra uma festa me encontrar com a Ágata, a Beatriz, a Carol e o namorado dela, não ver jornal. Nós voltamos todas juntas. Pronto!
- Filha, eles morreram.
- O QUE? – todo o meu sono e raiva foi embora no mesmo instante. – Como assim?
Eles morreram na volta?
- Filha, assista a reportagem e você entenderá. Deve estar passando sobre isso hoje de novo.
Desci correndo com os cabelos desgrenhados e a cara borrada, sentei no sofá e liguei a televisão. Nela passava a reportagem que me chocou para sempre:
“Um grupo de quatro jovens, três moças e um rapaz que estava dirigindo na rodovia sofreram um acidente fatal numa colisão ontem por volta das 18h da tarde na véspera do feriado. As câmeras de vigilância mostram o momento exato em que eles colidiram com um Voyage azul, ano 2016, que vinha na contramão. Os quatro jovens foram levados no hospital, mas não resistiram. Porém, o curioso é que no Voyage não havia nenhum passageiro e nenhum sinal do motorista foi encontrado, como se o carro estivesse desgovernado.”
Meu coração começou a acelerar com muita intensidade. Minhas mãos e testa suaram repentinamente. Meus dentes e joelhos começaram a bater de modo descontrolado.
Comecei a juntar os fatos do que aconteceu;
“Voyage” é um nome francês para “viagem” e o motorista informou isso antes de chegar onde estávamos.
De repente meu celular vibra com uma mensagem no meu email notificando sobre o recibo da viagem que havia sido paga.
Então olhei o nome do motorista e vi que havia lido errado:
Muito obrigado por viajar com a Uber. Dê uma nota ao seu motorista;
Li novamente o nome:
CARONTE.
FIM.