Negando o inferno
“A magia boa provinha do esforço humano, mas a magia adversa podia vir de qualquer lugar”
Peter Straub
Natasha e eu estávamos a fim de transar pela terceira vez na mesma noite. Por isso, paramos àquela hora da madrugada numa farmácia vinte e quatro horas em uma rua histórica do centro. Tudo cheirava a passado e Natasha exalava álcool e preocupação.
-Não gosto desse lugar. Vai lá e não demora, tá?
Desci do carro e senti o ar mais frio do que uma câmara fria de um necrotério sem alma. Uma neblina compacta começou a cair sobre a cidade. Era a mais solitária das horas. Aquela hora em que os trabalhadores não acordaram ainda e os patrões já foram dormir.
Fui andando com as mãos nos bolsos e no momento em que adentrei a farmácia me senti fechado do lado de dentro ou para o lado de fora, não sei ao certo.
Atrás do balcão o atendente - um jovem imberbe - estava petrificado e com o olhar perdido no vazio da parede. Havia outra pessoa, um possível cliente, sentado em um tamborete alto próximo ao balcão. Ele estava de perfil, com a perna direita cruzada sobre a esquerda, e as mãos descansando no joelho. Vestia um tenho reluzente e muito comprido. Os dedos longos, brancos e translúcidos estavam carregados de anéis.
Os anéis brilhavam tanto que a farmácia toda reluzia. Era como a janela de um quarto de cristal iluminada pelo clarão da lua. O desconforto tomou conta de mim. Senti um arrepio que veio do interior do meu corpo como se houvesse uma garra enorme e fria, mas feita de pelúcia, que estivesse massageando meu estômago. Parei. Tentei voltar para a porta, no entanto uma vontade mais forte e mais cruel do que a minha saía dos olhos daquele homem e me grudava ao chão.
De onde estava senti seus olhos se agigantarem para mim. Era como se o rosto dele estivesse colado ao meu, embora seu corpo estivesse a, aproximadamente, quatro metros de distância. Quando o homem do tamborete abriu a boca o seu hálito frio e mentolado tomou conta do salão, atravessou minhas roupas e congelou minha pele. Fiquei extático como o atendente. Apenas meus olhos se mexiam descontrolados. Seguiam contra a minha vontade os olhos do homem que reviravam na órbita e faziam a maçaneta da porta e os frascos de perfume girarem também. Percebi que estava, em todos os sentidos, preso. Dentro do medo que sentia ouvi uma voz perguntar:
-O que procuras?
Não havia nada estranho na voz, nem na pergunta, mesmo assim fui pego de surpresa. Diante da simplicidade da pergunta me senti obrigado a dizer a verdade porque, afinal, é o mais sensato a fazer para enfrentar o medo.
-Procuro proteção.
A gargalhada foi seca, estridente e curta. O homenzinho afetado girou no tamborete com tanta velocidade que parecia um carrossel descontrolado. Em vez de pôr os pés no chão para cessar o movimento, ele se jogou para frente e pousou de quatro no assoalho. Levantou a cabeça e ficou me olhando, por um segundo, com um sorriso louco no rosto. Foi só por um segundo, pois no momento seguinte veio correndo como um cavalo, ou um cão e pôs suas duas mãos frias sobre os meus sapatos mornos. Depois, sem se levantar, alongou o pescoço numa manobra assombrosa até sua cara ficar à altura da minha. Pude ver de perto que a beleza pode ser cruel. Seus olhos brilhavam de maldade e astúcia. De sua boca, retorcida e sorridente, saiu uma voz fina e debochada:
-E você a terá.
Olhando para aquele ser grotesco a meus pés senti meu estômago revirar e a escuridão do mundo todo invadir os meus olhos. Comecei a cair quando vi duas mãos frias e fortes como os vergalhões de uma ponte sustentar-me pelo pescoço. Não pude esquecer a frase sibilina que saiu daquela boca:
-Se você ama alguém implore para viver.
É óbvio o que fiz em seguida, já que estou digitando este texto agora, enquanto Natasha caminha descalça e nua pelo quarto tomando água para aplacar sua sede infinita. Só escrevo porque ela me pediu. Disse que um dos remédios para esquecer um trauma é relembrá-lo nos mínimos detalhes. Eu, sinceramente, prefiro me esquecer com a ajuda do álcool. Natasha também me faz esquecer muitas outras coisas. Como, nesse momento, me faz esquecer tudo quando diz:
-Quer água ou quer um beijo primeiro?
Salvei o conteúdo, desliguei o computador e a enlacei pela cintura. Ela me observou com olhos suplicantes e o rosto redondo recheado de promessas. A beleza de Natasha não é cruel. É uma beleza órfã como a beleza de uma criança abandonada. Nós dois somos crianças, mas não somos inocentes e isso é uma grande alegria. Pouca coisa basta para nos deixar contentes: uma cama, um passeio, uma garrafa. Ou simplesmente uma frase:
-Balança o quadril meu bem, é melhor desse jeito.
Por mais que eu escreva, transe ou beba, algo ainda não está claro para mim. Por exemplo, a possibilidade do que ocorreu naquela noite, pois três semanas mais tarde ao passar pelo mesmo local junto com Natasha -para meu espanto - não avistei a farmácia que deveria estar ali. No lugar dela havia uma boate, uma espécie de cassino. O medo sacudiu novamente meu corpo, do dedão do pé até as orelhas onde eu sentia a voz amável de Natasha me pedindo:
-Vamos entrar lá, meu amor?
Eu não respondi de imediato. Fiquei pensando no que aconteceu naquela noite. Eu me recordo perfeitamente, como se fosse mais real do que a realidade. Até agora me lembro do sopro frio no rosto que me fez atravessar quase voando pela porta de vidro que - para minha surpresa - estava aberta. Lembro ainda de Natasha me puxando pelo braço e me conduzindo até o carro e de sair dirigindo, depois de jogar todos os nossos comprimidos pela janela. Por isso, a sua pergunta me deixa angustiado.
-E então, entramos ou saímos?
Ela falou como se jamais houvesse passado no local. Como se o lugar fosse, para ela, inédito e agradável. Eu, dando um breve e nervoso sorriso, disse que numa outra ocasião talvez. Enquanto isso, reduzi a velocidade do carro e olhei. O que vi me fez entrar em pânico. De pé, na entrada, um homenzinho de terno reluzente, com um charuto entre os dedos repletos de anéis, tragava e soltava longas baforadas para o alto. E a fumaça descia tomando conta de tudo. Como se fosse uma névoa ou uma neblina. Eu estava hipnotizado até que ouvi a voz de Natasha:
-Nós vamos ficar aqui parados?
Natasha disse olhando para frente. Em seguida, abaixou-se, puxou uma garrafa de uísque de debaixo do banco e um comprimido de ecstasy do bolso e, com um longo trago, engoliu a frustração. Não estava mais triste quando falou:
-Beba, amor, só uma dose!
Olhando pelo retrovisor, para frente e para os lados, engatando uma primeira e acariciando com dedos úmidos as coxas grossas de Natasha eu disse:
-Não, querida. Só por hoje, não!