Ela Habita em Espessas Trevas - DTRL 35
Santoro levanta ainda zonzo, e cambaleia até a porta. Não lembra o que aconteceu. Está muito frio, fumaça sai da sua boca quando ele respira, e a pesada roupa de inverno não consegue aquecê-lo apropriadamente. Não sabe onde está, sua última lembrança é de ter desembarcado no Condado de Columbia (onde começariam as gravações de um novo filme), pegado um táxi e o motorista ter se perdido.
Quando, enfim, fica totalmente desperto, percebe que está em um grande apartamento que nunca viu na vida. Abre a porta diante de si, e ela dá em um corredor, com quadros nas paredes. No meio ele é mais amplo, com um espaço maior à direita onde há um rádio-relógio marcando 23:59. Ele termina em uma janela pequena, bloqueada pela neve. Perto da janela uma estante com fotos, livros, um telefone que não funciona e muitos remédios e doces abertos.
Ao virar, há outro corredor menor com duas portas dos lados e uma no final, que termina em um lance de escadas para baixo. Chama por alguém, mas só o eco lhe responde. Ao chegar ao meio do segundo corredor, entretanto, a porta diante de si se fecha sozinha, fazendo-o paralisar.
– Tem alguém aí?
Após alguns instantes, ele dá dois passos em direção à porta no final do corredor, passando por uma das portas à direita, que se abre levemente assim que ele passa, fazendo-o dar um pulinho. Ao olhar para trás, vê uma dúzia de baratas fugindo. Temeroso, ele se aproxima da porta, olhando pela fresta, mas o cômodo está bem escuro. Quando toca nela, vê de relance o rosto de uma mulher surgir de repente do cômodo, sendo iluminado pela luz do corredor, provocando-lhe um grito de susto; a porta se fecha e se tranca por dentro.
– Merda, merda... – Ele caminha rápido em direção ao final do corredor, desce o lance de escadas, dando em uma pequena sala de concreto, vazia, com uma única saída. Ao abri-la, entretanto, toma um susto ao chegar a um corredor exatamente igual – nos mínimos detalhes – àquele primeiro maior que ele havia estado antes.
Santoro dá uma olhada em volta, mas tudo o que vê de diferente iluminado pelas diversas lâmpadas no teto são as baratas correndo de um lado para o outro. Avança, no espaço mais largo do corredor um rádio-relógio que, como o anterior, marca ainda 23:59. Ao dobrar no final do corredor, encontra-se em um menor, idêntico àquele com três portas. A porta da direita, entretanto, onde havia visto a mulher, está aberta, e há uma luz lá dentro.
Ao se aproximar daquele cômodo escuro, Santoro vê uma lanterna piscando, com cara de que vai pifar. Vê-se dentro de um banheiro bastante sujo, a lâmpada queimada, várias baratas circulando, o espelho tão velho e sujo que não reflete nada. O que mais chama sua atenção, entretanto, é um feto na pia, com cerca de dez centímetros, muito bem formado e... vivo.
Apontando a lanterna para o chão, Santoro vê sangue seco. O feto está mexendo os braços e as pernas, sem olhos. Horrorizado, ele sai com a lanterna na mão, olhando para um lado e para o outro, de olhos arregalados, sem saber o que fazer. Vai até o final do corredor, dando em outra sala de concreto idêntica à primeira, abre a porta e... mais uma vez um corredor longo igual ao anterior.
Avançando, entretanto, ele percebe alguns detalhes diferentes. Há algumas garrafas de cerveja Snow, verdes, jogadas pelos cantos. Na estante com porta-retratos, todos eles desapareceram, exceto um, com um buraco do tamanho de um dedo humano. Mais adiante, ao chegar na sala de concreto, ele vê que há várias marcas vermelhas de sangue seco nas paredes, no formato de mãos, pequenas como de uma criança ou uma mulher miúda. Ao abrir a porta, outra vez aquele corredor maior. As garrafas ainda estão lá, as fotos desapareceram mesmo, o rádio-relógio continua marcando 23:59.
Ao chegar no corredor menor, alguma coisa arremessa um dos quadros na nuca dele, por trás, com muita força, deixando-o sonso por alguns instantes. Ao olhar para trás, não havia nada lá.
Santoro tenta, no corredor menor, abrir a porta da esquerda. Ao tocar na maçaneta, está terrivelmente gelada. Ele olha por baixo da porta, tudo que enxerga é neve. Tenta chutá-la com toda força, se joga contra ela para derrubá-la, mas ela nem se move. Ao avançar para a sala de concreto, as marcas de mão desapareceram da parede, mas bem pequeno, em cima da porta, é possível ler: “She dwells in thick darkness” (ela habita em espessas trevas).
Ele caminha apressadamente. O coração batendo forte, o medo o impede de sentir o frio intenso. Ao virar o corredor, novamente, dá de cara com uma mulher extremamente pálida, a qual ele mal consegue perceber os detalhes, pois ela, com uma força descomunal, o joga no chão e rapidamente desaparece.
Santoro se levanta, zonzo, e decide fazer diferente, voltando na direção contrária. Contudo, ao atravessar a porta pelo qual acabou de passar, ao invés de chegar em uma sala de concreto como antes, alcança novamente um corredor longo. Olha para trás e para frente, os dois corredores parecem exatamente iguais, como se ele estivesse bem no meio de um espelho. Retorna.
Ao se aproximar do rádio-relógio, que ainda marca 23:59, ele ouve uma voz – sua própria voz – falando em português, vinda do aparelho:
– Eu não fiz nada a não ser caminhar para frente, mas não era eu de verdade. Cuidado! O batente da porta é um portal para uma realidade paralela. O único eu sou eu. Você tem certeza de que o único você é você?
Ele tenta mexer no aparelho quando este para de emitir som, tenta ligar o rádio, obter alguma informação, mas nada. Segue em frente, as baratas correm por debaixo dos seus pés. Finalmente, percebe que um dos quadros na parede foi rasgado. Era uma foto, parece de uma mulher, só é possível vê-la do pescoço para baixo, com um colar de pérola; mais do retrato desapareceu. Enquanto ele para apreciar, percebe que está fazendo mais frio agora do que antes; enquanto se movia ele nem notou. Prestando atenção nisso, ele vai perceber que quanto mais andar, mais frio ficará, até o limite do insuportável.
– Quem é você? O que você quer de mim? – Ele grita, após andar mais um pouco, ouvindo sua própria voz ecoar. – O que está acontecendo?
No próximo loop, ele ouve o som do rádio-relógio funcionando novamente. É uma notícia de um homem que matou toda sua família, enterrou na neve e depois se suicidou com uma mangueira de jardim. No corredor menor, a seguir, outra diferença: a luz das lâmpadas agora é vermelha. Quando chega à sala de concreto e atravessa para o corredor longo, vê que agora todas as luzes adiante são vermelhas.
Outra diferença que ele logo nota é que os corredores parecem mais sujos agora, não apenas com garrafas de cerveja, mas latas e cigarros também. Decide entrar no banheiro novamente, com sua lanterna na mão. Lá está o feto, vivo, se retorcendo, tremendo de frio. Ao senti-lo, o bebê de 10 cm abre sua boquinha e começa a chorar. Olha em volta, a única coisa diferente no banheiro é um buraco do tamanho de um olho. Aponta a lanterna para dentro dele, mas não consegue enxergar nada.
Segue adiante, acredita realmente que é possível alguma hora encontrar uma saída. Outro loop, mas ao chegar ao próximo corredor menor (esse que tem três portas), percebe que o teto acima dele está bem mais alto do que antes, apenas nesse trecho. Ao olhar para cima, vê uma geladeira branca pendurada por uma corda, como uma armadilha de desenho animado preparada para ser jogada em cima de um pobre coitado. O mais assustador dela, entretanto, é que está suja de sangue fresco, que pinga em seu rosto.
No próximo loop, o único detalhe diferente é a palavra “Hello” escrita na parede, de preto, próximo à estante com o porta-retrato e os remédios e doces espalhados. No próximo, ele vê pedaços de uma foto rasgada espalhada pelo chão. Junta-as, leva até aquela versão do retrato na parede rasgado. Isso deve ter algum significado. Naquela estante, encontra um pequeno vidro de cola, que usa para juntar os pedaços do retrato. Ele fica quase completo, a imagem é de uma mulher loira de cabelo cacheado. A foto é em preto-e-branco, parece bem antiga. Santoro certamente nunca viu essa mulher na vida.
Ao passar pela sala de concreto novamente, outra mudança: no corredor longo, agora, o rádio-relógio marca 23:58. As luzes vermelhas piscam. Quando atravessa os corredores, ao chegar no próximo loop, as luzes estão apagadas agora, e ele precisa se guiar pela lanterna.
Avançando, ouve um pingo, cujo som ecoa pelo corredor. No próximo loop, começa a ouvir um choro de criança bem distante. Conforme avança e vai voltando para o ponto de partida, esse choro vai ficando cada vez mais forte e mais desesperado, como se a criança estivesse sendo espancada.
Mais adiante, investigando na escuridão, Santoro encontra um pedaço de papel. Caminha até aquela foto de uma mulher loira com um pedaço faltando, e percebe que era exatamente o que restava da foto. Ao colar o pedaço, imediatamente, aquele choro de criança para. Seu corpo todo treme, em um arrepio intenso, e ele não sabe se é por causa do frio ou pela sensação de que há alguém o observando da escuridão.
A seguir, caminhando pelo corredor, nota que o rádio-relógio agora marca 23:57. O silêncio total reina. Ele pode jurar estar caminhando por quase vinte minutos, sempre voltando ao ponto de partida. Não se sente cansado, entretanto. Com o frio fica cada vez mais difícil se mover, e ele anda mais devagar, olhando para todos os lados para ver se há algo importante que não notou. Força a porta bloqueada pela neve, mas nada. Enrola seu casaco na mão – tremendo – tenta socar a janela bloqueada pela neve (será que esse apartamento está soterrado?), de novo, e de novo, e de novo (sua mão quase não dói, dormente), mas é inútil.
De repente soa um grito de mulher tão forte e desesperado que parece que sua emissora está a ponto de explodir a própria garganta. Ele cambaleia, enquanto sente que seu coração se cansou de seu lugar original e se moveu para algum lugar em sua garganta.
Da próxima vez que retorna ao corredor principal, os quadros nas paredes agora são pinturas que representam demônios horríveis, humanos e animais mutilados, chamas, instrumentos de tortura. Parecem pinturas do inferno. Em um deles Santoro nota um pequeno buraco. Ele vê aquele mesmo banheiro, com o espelho sujo, um feto se movendo na pia. O detalhe estranho é que a luz do banheiro está acessa. Avança até o banheiro e constata que ela, na verdade, está apagada, a lâmpada queimada.
– Isso significa que o banheiro que eu vejo pelo buraco não é esse aqui... – Ele sussurra para si mesmo, e retorna até aquele quadro. Olha novamente pelo buraco, não há nada de diferente. Para para examinar o quadro, é um crânio humano com asas de morcego, o buraco fica bem em seu olho direito. Embaixo da caveira, os dizeres, em inglês: “deixai toda esperança, ó vós que entrais”.
Marcha até o fim do apartamento e, ao chegar na réplica seguinte, todas as luzes estão acessas. O quadro da caveira sumiu. Mais adiante, verifica que o banheiro ainda está escuro. Avançando, no próximo loop o rádio-relógio marca 00:00. Ele coça a cabeça, furioso, e finalmente esbraveja sua raiva; enquanto xinga em dois ou três idiomas diferentes, pega o rádio-relógio e arremessa com força contra a parede, espatifando-o. Imediatamente, as luzes ficam vermelhas de novo, e um sino distante começa a tocar.
– O que isso quer dizer?! – Ele grita. – O que está acontecendo? Eu tô cansado de toda essa merda! Eu vou ficar aqui e esperar alguém me achar!
Ele berra e encosta na parede, de braços cruzados. Após alguns segundos, ouve uma risada infantil. Ela vem do banheiro. Pensa em ir verificar, mas decide se manter firme em seu propósito de ficar parado. O frio vai se tornando cada vez mais opressor. Suas mãos estão acinzentadas, e tremem incontrolavelmente, como um portador de Parkinson.
Então um telefone toca, no seu próprio bolso. É o seu celular, mas ele tem certeza que não estava ali antes.
– Saia da cidade. – Diz uma voz sussurrante.
– É O QUE EU ESTOU TENTANDO FAZER HÁ MEIA-HORA!
– A porta está aberta. Mas não se esqueça de apagar as luzes.
Ele caminha até a porta de saída – aquela que antes estava bloqueada pela neve –, e percebe que o quadro ao lado dela está torto. Atrás dele, um quadro de força. Ele abre a porta, hesitante, e uma baforada de ar quente entra pela brecha; ou melhor, um ar menos frio do que o interior do apartamento. O celular no seu bolso, mesmo desligado, emite aquela mesma voz, dessa vez gritando:
– APAGUE AS LUZES! APAGUE AS LUZES! VOCÊ PRECISA APAGAR AS LUZES!
Ele pega o celular e joga contra a parede, abrindo a porta. Antes de sair, mostra o dedo do meio para o interior do apartamento.
– Vai se ferrar!
E sai, deixando as luzes acessas. Esse foi um grave erro. Ela não vai deixar ele sair de Silent Hill.
TEMA: INVERNO.