TENDA DE ANÚBIS
Era uma dessas tendas místicas, sabe? E pior que nem era de verdade. Foi no parque da cidade, aconteceu há uma semana atrás e desde então não para. Tá me enlouquecendo.
Tá bem, vou começar do início. Hum, pelas apresentações? Eu digo meu nome, acho que é assim que funciona. Podem me chamar de Danny, é um nome fictício, não vou dar meu nome de verdade. Eles virão atrás de mim, eu sei. Como eu tava falando, foi nessa parte que a atração misteriosa apareceu pela primeira vez. Chamava-se Tenda das Maravilhas do Egito Antigo e quando se entra tem duas estatuas douradas dos deuses egípcios Anúbis e Seth e eu só sabia disso porque tinham os nomes nelas. Aí depois fiquei sabendo, quando pesquisei na Wikipédia, que Seth, entre muitas atribuições, era o Deus da trapaça e cara, por Deus, que ironia bizarra. Puta que o pariu. Não tem jeito disso ficar pior, não.
A coisa toda começou assim que entrei na tenda. Sabe, quando você sente aquele vento que começa do nada e de repente pára? Um calafrio que bateu no calcanhar e fui sentir na nuca. Aí alguém sussurrou essas palavras, que gelaram minha alma e tocaram meu coração como se o próprio diabo tivesse dito: Mooooorrrrrrteeeee! E só então eu vi ela sentada séria, com as mãos sobre a mesa, dedos entrelaçados. Uma expressão pétrea e fria.
–O que a juventude dos novos tempos pode deixar para Ísis que a interesse?
–O que? Eu só estou aqui porque, porque… Ah, eu nem sei por que mas tô indo, tchau! E já tava dando meia volta pra sair, quando uma coisa aconteceu. A cadeira que estava à frente virou-se, assim como meu corpo e não por vontade própria fui assentado sobre ela e arrastado para perto daquela mulher estranha. Suas vestes eram egípcias até onde sei, me baseando no filme da Cleópatra com a lindíssima Elizabeth Taylor, embora a história diga que a Cleópatra verdadeira nem era bela. Tinha uma coroa esquisita na cabeça, um pássaro de pescoço longo, com as asas extendidas nas têmporas e em cima tinha ainda o que parecia ser um trono.
–Você não tem nada de interessante pra fazer hoje, tem Danny? –Ela disse o meu nome, não Danny, claro, como já disse é um nome fictício, mas sim o meu nome de verdade, que eu substituí aqui por Danny. Acho que fumar maconha com seu amigo Jessie e depois se masturbar assistindo vídeos no youporn não te farão aprender nada. Mas se ficar e ouvir o que tenho a dizer, você terá uma experiência única. -Ah, o nome do meu amigo também não era Jessie, como já devem supor.
–E o que alguém mais velha que o tempo pode ter pra me ensinar que me interesse? –Provoquei. A mulher não era velha, mas o lugar cheirava a flores putridas, embalsamamento, sei lá. Ao contrário, ela parecia uma deusa. Sua pele parecia tão sedosa, deu até vontade de tocar. A boca era delicada, os lábios finos, quando ela falava parecia nem meche-los. Usava maquiagem nos olhos no estilo egípcio, como vemos nas pinturas antigas. E depois do que eu falei ela se enfureceu e girou a mão esquerda na forma de semi-círculo, de dentro para fora, num leque, e soprou areia nos meus olhos. Quando voltei a enxergar vi uma chispa quase imperceptível de luz. Tremia como se fosse se extinguir e foi se intensificando até cair na forma de uma gota e quando essa gota caiu formou-se um oceano, que começou a se agitar e dele outra forma indefinida surgiu e rodopiou em volta de si mesma e criou todas as outras coisas, como as areias do mar, os desertos, as florestas e montanhas e então tudo se apagou como havia iniciado, do nada.
–Sou mais velha que o tempo, sim eu sou. Filha de Geb e Nut, mãe de Hórus. Mãe e protetora, esposa fiel que juntou e colou os pedaços de Osíris, o trazendo de volta a vida com a sua ajuda, Anúbis.
–Desculpe, do que você me chamou? Fiquei confuso. –Ela me chamou de Anúbis? Já ouvi falar desse cara. Era um desses deuses egípcios. Como ela, Ísis. Aquela louca se auto-proclamava uma deusa.
–Você é a reencarnação de meu sobrinho Anúbis, filho de Néftis e Seti, Deus dos mortos, senhor do submundo. Infelizmente no mundo de hoje os deuses antigos não são mais necessários e desde então, sem as orações dos mortais ficamos sem serventia. Rá, o pai de todos, em sua sabedoria, uma vez a cada 100 anos nos faz reencarnar como mortais, para que possamos nos sentir úteis novamente. É assim que sabemos como vocês vivem hoje, seus rituais, os deuses que adoram e como se esqueceram de tudo que os tornam divinos, como sendo parte da criação.
Depois de ouvir essas coisas sem sentido, de uma lunática, eu virei as costas e a deixei falando sozinha. Deuses que reencarnam, nunca vi nada mais absurdo. Qual Deus ia querer viver como um ser humano, escravo dos desejos e do tempo. Que conversa furada. Estava certo que queria me convencer disso e conseguir alguns trocados depois que pedisse pra ler minha mão.
Passei na loja de conveniência em que Jessie trabalhava. Já tava no fim do turno dele. Ficamos no estacionamento fumando unzinho. Contei todo que aconteceu na tenda mais cedo. Demos muitas risadas.
–Cara, qual barato você começou a usar? Que isso, maluco? Que piração! Aí, vamos comprar uns salgadinhos e jogar video-game na casa do Clóvis. A Sessie e a Rihanna vão tá lá. Depois a gente curte uma balada.
–Vamo nessa, cara. Talvez eu só precise fumar uma erva boa e transar. Quero esquecer aquela tenda do diabo.
As familiaridades ficam por aqui, amigos. Mas muita gente que eu conheço fuma maconha, joga video-game e vai pra baladas. Então não vejo como isso pode me identificar, mas se eu me estender e narrar os detalhes desses eventos, aí sim poderão suspeitar.
Pra vocês só interessa que eu fui pra casa, dormi até as duas horas da tarde e depois fui comer alguma coisa no Jerk.
–Garoto, quando você vai se arrumar, hein? Acha que pode viver essa vida pra sempre?
–Cara, não cansa de bancar o meu pai? Me deixa, porra! Eu sou como sou. Parece que você nunca foi adolescente, merda! Eu disse, levantei e empurrei o prato, deixando a comida pela metade. O Jerke era um cara legal, mas quando tirava pra pegar no meu pé, benze a Deus. Ele deu a volta no balcão e ficou na minha frente me encarando. Eu encarei de volta.
–Me preocupo porque te amo, seu folgado. Olha pra você. –Dizia ajeitando a minha roupa. –Qual o problema de usar casaco largo, boné, tênis. Era meu estilo. Me erra!
–Eu tive um filho da sua idade, ele morreu, mas você sabe disso. Ele era muito diferente de você. Eu não quero que você substitua ele, mas cara, um pouco de amor próprio não faz mal pra ninguém. Pensa nisso.
–Falou, vou nessa. Lembranças pra Ana, aquela gostosa da tua sobrinha.
–Olha, cara. Ela não é pro seu bico.
Fui comprar erva com meu fornecedor, o Ted. O cara tinha uma coleção de LP's de rock e a gente sempre ficava ouvindo. Me chapava ao som de Young Lust do Pink Floyd, curtindo um barato. Isso é como uma recarga. Você se renova. Na volta passei pelo parque. Aquele era o último dia da Tenda do Egito e fiquei naquela, entro não entro. Entrei. Mas agora estava tudo diferente. Tinha as pirâmides e outras estátuas. Rá, Aton e Nut, que era uma deusa que se arqueava sobre os demais deuses, formando um arco, tendo estrelas no seu corpo.
Sem móveis, mesa, cadeira, nada. A mulher também não estava lá. Dei uma olhada em tudo e quando estava indo embora eu senti um puxão. Cai num buraco que antes não existia. Fui engolido e só caia. Parecia não ter fim. Era uma queda e tanto e não via nada em volta, só escuridão.
Quando dei de cara com o chão senti tanta dor, os ossos estalaram. Cuspi sangue, mas estava vivo. Não sabia como. Levantei e tudo ainda estava na mais completa escuridão. Cego ia tateando com os braços esticados quando senti alguém me tocar e aquela voz, como um trovão:
–Venha comigo. Sou o que conduz. Vou te levar onde tem que estar. –E eu fui com ele, sem saber quem ou o que. Só segui. Andamos na escuridão. De repente aquela coisa começou a assobiar cantarolando uma música que eu nunca tinha ouvido. Era sombria, triste. Passei a me sentir mal, pesado, com um embrulho no estômago. Em algum momento passei a enxergar a luz. Uma porta estreita e alta. Quando olhei pra dentro era a merda do meu apartamento. Olhei pra ele e disse:
–O que é isso? –O cara era um Deus. Tava ali na minha frente. Uma daquelas estátuas da tenda, com cabeça de chacal, Anúbis, de quem a mulher da primeira vez que fui lá falou. Mesmo assim olhei bem na cara dele e disse o que tinha de dizer, sem vacilar e ele respondeu:
–Estamos aqui porque você não acreditou em Ísis. Terá que ver com seus próprios olhos.
–Estou vendo. Se ela me disse que sou a reencarnação de Anúbis como você pode ser ele e estar bem aqui na minha frente? Isso faz algum sentido?
–Você se esquece que eu sou um Deus? O que não faz sentido pra vocês é brincadeira pra nós. Sinta isso. –O Deus com cabeça de chacal enfiou sua foice na minha barriga até o cabo, girando a lâmina para que ela entrasse toda e me empurrando contra o seu corpo. Eu senti minhas entranhas rasgando e o sangue se esvaindo e depois ele tirou a lâmina afiada e me deixou ali para morrer. Só que eu não morri. Em vez disso o sangue transformou-se em água e minhas tripas em palha seca e depois simplesmente não restava nada. Nem sinal de ferimento. Aquele buraco mortal ficou curado, sem explicação. Porque nem humano agora eu era para ter feridas que sangrem. Eu era um monte de feno que estava sendo comido por uma vaca. Sim, uma vaca malhada, preta e branca, que nem na capa do álbum do Pink Floyd, Atom Heart Mother, sabe? Não sei que caralho representava aquela vaca, nem estava mais com saco pra simbologias. Só que a sensação de ser comido, entrar no sistema digestivo de um ser vivo como aquele, depois ser regurgitado e engolido de novo, é táo repulsivo que te faz querer morrer, de verdade. Mas agora eu era a vaca, então, ficou ainda mais estranho tudo isso. Quando Anúbis tocou com seu cetro na minha testa eu voltei a ser humano.
–Então, sou imortal? Isso me prova que sou você? Sou Anubis? Tá certo. Vem cá, vocês não podem escolher quem vão ser? Porque, nossa, um qualquer, desocupado, maconheiro, inútil como eu? Porque?
–Eu já fui muitas coisas. São mais de 3 mil anos reencarnando. Marinheiros, reis, soldados, pais de família, cafetões. Já estava ficando sem opções.
–Então, senhor Anúbis. Senta aí, vou fazer um café pra gente. Toma café?
–Ah, sim. O que hoje em dia vocês chamam de café? Ficaria surpreso se experimentasse o gosto de café de verdade. Deixe eu preparar pra você. Sente-se e tenha a honra de ser servido por um Deus.