O tecido da cicatriz – DTRL 35

 
 
     Várias vezes achei que não dava mais. Mas não podia simplesmente jogar a toalha. E eu estava me divertindo bastante para interromper... Sempre com muito cuidado, prevenida. Sempre limpa. Sempre, para que as coisas acontecessem direito! E, dar um tempo extra para garantir...Seguir as regras, básico.

 
        Aquela era a noite. Tinha de acontecer. Exatamente como aconteceria de novo e de novo. E dessa vez seria o goleiro. Chamava-se Igor. Era campeão naquele time famoso. Os torcedores adoravam-no. E, naturalmente ele adorava festas, álcool e mulheres. Eu o estava observando nessa noite, como em tantas outras anteriores. Vi quando parou em frente à boate para mais uma orgia.
 
         O processo contra o craque correra lento em razão de recursos apresentados pela defesa, retardando o julgamento. Quando finalmente foi para a prisão, o ministro considerou o fato de o jogador possuir bons antecedentes, além de destacar que os recursos ainda não haviam sido apreciados em todas instâncias. Depois, ele foi autorizado a sair da cadeia durante o dia para dar aulas de futebol em uma entidade, o que reduziria um pouco a sua pena. Aproveitou bem cada oportunidade. Mais requerimentos dos advogados, prescrição de algumas condenações... e ali continuava ele na farra. Oferta de emprego e queridinho da mídia.
 
          Ficou na agitação da noite por horas. Quando finalmente saiu, eu estava equipada para atacar. Ainda não... Um homem com cigarro na boca se aproximou de Igor e lhe entregou uns papelotes. Sorte. Não havia visto o traficante, e ele teria me visto. Respirei fundo. Foi só um detalhe. Tinha feito tudo certo, tudo igual, como devia ser. Ia dar certo.
 
          O campeão ficou procurando as chaves, abriu a porta do carro e entrou.  Ouvi a chave entrar na ignição. O motor ligar. Eu já me acomodara atrás do banco traseiro. A agulha estava preparada e enfiei-a em seu pescoço como era para fazer. Os músculos rígidos resistiram um pouco, mas o atleta, não. Empurrei o êmbolo e esvaziei a seringa, fazendo com que ele ficasse imediatamente bem calmo. Em instantes, ficou com a cabeça flutuando e só então virou a cara para mim. Pequeno movimento de pânico e pronto. Será que entendia o que estava acontecendo? Para me garantir, passei ,em seu pescoço, uma linha resistentes, para peixes de quinze quilos. Uma volta rápida, escorregadia e perfeita. 

          — Você agora é meu — eu disse e ele ficou paralisado com precisão e perfeição, como se tivesse ensaiado.

          — Faça só o que eu mandar — falei. A cara dele estava ficando roxa. Desapertei. Ele soltou uma exclamação e olhou no retrovisor onde meu rosto se refletia, envolto na máscara de seda branca, que só deixava à mostra os olhos. A seda mexia, quando eu falava.

       — Entendeu? — perguntei. Ele concordou com a cabeça e seguiu obedecendo minhas ordens, sem trapaças nem indecisões. Empurrei-o para a direita e tomei a direção.

 
     Mal dava para ver a pequena estrada suja.  Os faróis iluminaram a casa da afastada chácara que herdei de meus pais adotivos. Desci do carro e fui até a porta do passageiro. Ainda estava grogue, sobretudo depois que o fiz inalar o conteúdo de parte da mercadoria que havia adquirido.

     — Faça o que eu mandar — os olhos dele estavam vermelhos, escorriam lágrimas. Puxei bem o laço e o prendi na maçaneta, mais do que achava que poderia aguentar. As veias saltaram na testa e ele deve ter pensado que ia morrer. Ainda não... Abri a porta e puxei-o, afrouxando a armadilha.

     — Entre no barracão — mandei, com minha suave voz de comando. Duas noites antes, as paredes foram pintadas de branco, o piso varrido, escovado, lavado. Completamente limpo. No meio do cômodo, com as janelas fechadas com grossos emborrachados brancos, sob as luzes, estava uma reforçada maca, que eu mesma tinha construído. Num canto, caixas de saco de lixo branco, as garrafas de produtos químicos e pequena fileira de serrotes, alicates e facas. Será que o craque viu tudo? O que lhe passou pela cabeça?
 
        Eu tinha arrumado o lugar para ele. Não apenas para mim. Não apenas para o Passageiro das Trevas. Era para ele. Eu me esforcei para fazer direito, mas só se pode usar o que há. Eu limpara quase toda a sujeira, forrara tudo de plástico, usava luvas de borracha dupla, um esmerado avental, além da máscara e dos cabelos presos em coque na touca branca. O asseio tomava tempo, claro, mas valia a pena. Fazer tudo direito e limpo.  Esperei que se acalmasse e tirei o plástico da boca dele.
 
        — Agora é para dizer toda a verdade — deixei-o choramingar um pouco antes de puxá-lo para cima da mesa. Ele estava inquieto e agitado. Os cabelos estavam bem puxados para trás e os olhos, naturalmente arregalados; respirava rápido pelo nariz. Perdera, cedo, o controle da bexiga e uma baba escorria pelo queixo. — Onde está o corpo da moça que você torturou e assassinou?

          — Quem é você? — sussurrou o às do futebol que encarava a agressora com um ar meio ofendido e um sorriso forçado, braços e pernas fixados por compridas e grudentas tiras de fita adesiva.   Pensei em dizer alguma coisa, mas estava com a boca seca demais, então, apenas olhei.

          — Falando sério, quem é você? — repetiu.

        — Sou o começo e o fim — acabei respondendo com um sorriso Gata-da-Alice no País das Maravilhas.  — E hoje nem é noite de lua cheia, não? Nem minguante ou crescente...

      Eu tinha umas oito horas até ter de ir embora. Precisaria delas para fazer direito. Prendi o goleiro com fita adesiva e cortei suas roupas. Fiz as preliminares rapidamente: escovei, barbeei... (Epa! Escaparam uns cortezinhos.) Como sempre, sentia a maravilhosa, lenta e longa sensação de alivio. Aquela sensação iria palpitar dentro de mim enquanto eu trabalhava, aumentando e se apossando de mim até o final.
 

       E pus mãos à obra...

      — Pode começar a piar — deixei meu paciente mais relaxado com outro Diazepan na veia.

         — Por favor, ah, por favor... — ele respirou um instante — Não me arrependo — disse ele, enfim.

      — Claro que não. Eu também não — disse — percebeu o lampejo de aço.

         — Não fiz nada com Naná, nem a nenhuma outra garota como ela... — bati no rosto dele com uma velha lista de telefones. Pesada.

       — Como assim? Por ser garota de programa é diferente? Pode espancar à vontade??? — Olhei aquele imundo insetinho e tive muito nojo. Ranho e sangue escorriam do nariz atingido e ao mesmo tempo, uma feia poça de sangue formava bolhas em sua cara. Um medonho fio vermelho saía da boca. — Vamos! Não é isso que quero ouvir! Como a conheceu, eu já sei... Jogadores como você, deslumbrados com o novo dinheiro, churrascada, moças bobinhas encantadas, nenhum compromisso sério. A bebedeira o fez esquecer a camisinha ou ela furou? Desculpas velhas, manjadas... — a machadinha foi decepando os dedos da mão direita. Totalmente dopado, ele não sentia muitas dores, mas ia apreciando o estrago...

        — Eu, assumir o bebê? Custear toda despesa não estava bom? Não podia estragar minha carreira, nem o casamento. Marquei o encontro para acertar as coisas — um coro de gemidos estrangulados e suspiros angustiados. — Fui terrivelmente acusado, caluniado — o braço direito, em três nacos, já estava embrulhado— eu não era cirurgiã para ser pega de surpresa, desorganizada; ia controlando cada um dos sangramentos: pontos de sutura, ligaduras, até selantes químicos.

      — Ah! Melhorando... E os primos? — mesmo com meus cuidados, as manchas de seiva rubra eram incríveis, vívidas e inúmeras, nas paredes, brilhantes. Ainda bem que ao tirar o estofo plástico, viria junto o eletrizante horror de sangue voador.

        — Eles não se conformavam em arriscar nosso sucesso — o braço esquerdo ia sendo consumido...

         — Então levaram meu filho para a tia cuidar e deram uma surra em Naná. Tentaram convencê-la a ir embora; esquecer de mim... — A perna direita já havia sido cortada em determinadas partes: coxa, joelho e tornozelo. Mas a esquerda, não.

         — Você não estava junto? A doutora aqui já sabia até aí; dê-me uma novidade — minhas mãos, em perfeita sintonia, levantavam-se formando arcos e abaixavam para dar um corte perfeito...
 
      — Não... Ai! Pelo amor de Deus. Sim. De longe — A vez da esquerda, cortada só em duas partes, cuidadosamente embrulhadas.

       — Hammm! Então participou... Fale mais, mais... — membros cortados, limpos e secos, embalados; era como se eu fosse uma águia vendo nacos de carne para arrancar com o bico.

      — Eles a estrangularam. Depois cortamos as partes do corpo para que os rottweilers conseguissem mastigar — de vez em quando, os gritos abafados e o louco debater faziam com que eu voltasse a mim.

        — Ah, Jesus. Ah, meu Deus. Ah, Jesus — ele disse fraco. — Estava de olhos fechados e achei que podia ter morrido um pouco ante da hora. Finalmente, abriu os olhos e me viu. Coloquei a mão em seu braço. Foi um lindo instante!...

            — Por que os exames não detectaram nenhum sinal?

        — Mandamos outros cães para examinarem. Sumimos com aqueles que comeram Naná — enfiei, de volta, o plástico na sua boca e voltei ao trabalho. Mas eu tinha apenas retomado o meu ritmo, quando, veio-me um súbito ataque de irritação. Os pelos se eriçaram na minha nuca, ri de leve, um som mecânico que não vale a pena citar... só que a voz de lagarto do fundo do meu cérebro combinava perfeitamente com ele, nota por nota.  Quis baixar a faca, tentei mesmo, mas só consegui uns poucos centímetros... O desejo me dominou: rasguei a garganta do imbecil.

        Imediatamente, arrependi da precipitação, fora da minha índole normal. Apareceu uma fonte horrível de sangue, seguida por um resmungo frio e arrogante do meu Passageiro das Trevas. Senti-me suja e insatisfeita.  O bandido nem era vil o bastante para estar no alto da minha lista de coisas a fazer. Era apenas uma repulsiva lesminha que matou uma mulher para economizar dinheiro, não mudar o estilo de vida. Quase fiquei com pena... Ele realmente não estava preparado para enfrentar times maiores. Sem trocadilhos! Ah, bom. Voltei ao trabalho. Ao menos, agora, o animal não se debatia mais.
 
          Lá pelas quatro e meia da manhã, a galpão estava todo limpo. Foi um trabalho muito bem-feito. Cortes cirúrgicos. Eu me senti bem melhor.  Os nós do esmerado esquema sombrio se desfaziam: suave relaxamento, válvulas hidráulicas internas abertas. E não se tratava apenas de um assassinato comum, claro. Feito do jeito certo, na hora certa, com a pessoa certa. Menos sujeira espalhada por aí...

        Os sacos de lixo. Cada um com pedaços do corpo. Embrulhados como se fossem um presente. Levei-os para o carro do jogador e dirigi para o pequeno canal lateral onde tinha deixado a embarcação. Empurrei o Audi para dentro do canal, atrás da minha lancha e embarquei. No centro do lago, fiquei olhando o carro afundar e sumir na água. O sol estava nascendo e a luz batia nas partes metálicas da lancha. Fiz minha cara mais feliz, eu era apenas mais uma madrugadora voltando para a casa.

          No meu apartamento, peguei a plaqueta no bolso, um vidro simples e limpo, com uma só gota de sangue de Igor. Bela e limpa, já seca, pronta para colocar no microscópio. Deixei a lâmina junto às outras, em um estojo vermelho. Cor favorita.
 
      Tomei um banho mais que demorado, deixando a água escaldante tirar o resto da tensão, desfazer os nós dos meus músculos e lavar o pouco que sobrava do cheiro pegajoso do goleiro e do galpão.

           Eu devia tê-lo matado duas vezes. Seja lá o que me fez ser do jeito que sou, deixou um buraco vazio por dentro, incapaz de sentir. Não parece grande coisa. Tenho certeza de que a maioria das pessoas finge bastante no convívio diário com os outros. Eu apenas finjo completamente. Finjo muito bem e jamais sinto nada, mas sou uma mulher e não posso aceitar que os homens abusem de força.
 

          Tudo acabado, a fria voz do diabo se calava e eu poderia voltar a ser eu de novo. Esperta, alegre. Não mais Morgana com a faca, a justiceira. Pelo menos até a próxima vez. Tirei do mundo um monte de porcarias. Mais asseio, mais felicidade. Um lugar melhor.
 
        Lá pelas nove, tomei café, comi pão e manteiga e fui trabalhar. Legista no necrotério do Instituto Médico Legal, ligado à Superintendência da Polícia.  Computador, estante, arquivo, celular, secretária eletrônica. Muitas macas e muitas gavetas geladas. E, sangue pegajoso, quente, confuso, rubro, horrível. Bagunça de sangue pingando, muito sangue. Profissão certeira!

 
       Fui adotada e trazida para São Paulo por um coronel. O casal me criou bem. Os dois já morreram. Deixaram-me um irmão que é a única pessoa com quem me importo. Também policial.
Ainda no Norte, meu padrasto me ensinou tudo.

        — Você é diferente — Dexter sempre repetia. — É como eu. Pode aprender a lidar com essa diferença e usá-la de forma positiva. Você não sente. Precisa refrear o seu “caos” interno. Qual é a primeira regra?

        — Não ser pega.

        — Segunda?

        — Corte em pedaços os caras ruins.

       No entanto, o idiota foi descoberto “in flagrante sangre”. Pobre trapalhão! Falhou ao tentar fazer as coisas direito e acabou despencando no profundo, escuro e, possivelmente, permanente poço, sem fim, do errado. Sumiu. Morto ou enfiado em alguma loca.
Primeira vez. Minha primeira morte foi o famoso ator, que me vestiu com uma lingerie e, em seguida, matou Rita, minha mãe biológica. Enfiei uma faca no pedófilo e libertei meus reais instintos. Apenas olhei. E vi a expressão na cara dele: tão magoado, confuso e desesperado, seria risível, se eu não estivesse tão excitada. Por alguns segundos, pareceu-me que não precisava respirar. Ele realmente não merecia nenhum esforço maior de minha parte...
 

 
        Maldita coisa. A morte do goleiro seria um final apropriado para uma vida de prazer perverso. Mas não foi assim.  Posso pedir desculpas demais, ser desnecessariamente nervosa, mas tento me controlar. Costumava rir, como uma criança. Eu me sentia bem, só por um tempo. Então, percebia que tudo o que me restava era uma cicatriz — ferida de batalha. A verdade é que preciso reiniciar... A parte mais difícil é pelejar com a cicatriz. Estou tentando...

       O que qualquer um de nós pode fazer? Indefesos como somos, nas garras de nossas próprias vozinhas, o que podemos fazer? Eu sinceramente esperava conseguir derramar uma lágrima. Sentir. Seria tão lindo! Tão lindo quanto a próxima lua cheia. E as coisas continuariam como eram, como sempre tinham sido, sob aquela adorável lua brilhante. A maravilhosa, gorda e musical lua arrumaria um lugar em seu bojo para o meu monstro?...

 

 
Tema: Figuras Populares
 
Fanfiction: Dexter (série de televisão)