Aproveitando a postagem para agradecer as 45 mil leituras nestes 4 anos completados este mês (dia 08) no recanto. Vcs, amigos leitores, são maravilhosos. Um grande abraço.
- O PREÇO -
Ela estava chegando... Ele havia tido aquele sonho outra vez: A moça vinha subindo pela areia da sepultura. Separando a terra negra e úmida até chegar à superfície. Andando, pálida e suja, mas resoluta em direção a ele... Emmanoel Olhou para o relógio com aflição. Ia por dentro da velha casa em passos ligeiros, verificando cada tranca, uma, duas, três vezes.... Encheu as frestas das janelas emparedadas com retalhos encharcados no barro mole. Por fim, e não restando mais nada a fazer, trancou-se na pequena despensa da cozinha e esperou.
O almoço entrava pela tarde, e as bandejas não paravam de circular entre os convidados. O solar dos Duarte trazia as portas abertas de par em par. Era dia de festa. A filha única do casal completava anos e o amantíssimo e dedicado pai se empenhava em tornar tudo perfeito.
A mocinha loura corria pelo jardim junto com as outras. Da casa, bebendo com os amigos que vieram para a festa de seu décimo quinto aniversário, o pai olhava para o grupo lá embaixo e sorria quando localizava a filha entre as meninas de cabelos escuros. Pouco tempo depois ouviu sua mulher gritando da cozinha, pedindo sua ajuda para provar o ponto e o tempero das comidas.
Não levou mais de dez minutos para atender aos seus chamados. Voltou com os criados, levando bandejas de carne assada e batatas, que foram depositadas sobre as pesadas mesas de madeira. Passou os olhos pelo jardim para procurar Marisa no meio das amigas, mas ela não estava mais lá. Desceu os batentes, gritou o nome dela, depois perguntou para as outras meninas sobre a filha. Ninguém soube dizer.
Voltou para a casa e perguntou à esposa.
- Aqui não apareceu. – Respondeu a mãe.
Começou a se desesperar e se juntou aos demais convidados e serviçais para procurar a menina.
Separou-se dos grupos e tomou um caminho para os lados do ribeirão. Seguia o fio contrário ao da corrente com o coração pequeno pelo pavor de que a filha tivesse se afogado.
Havia andado menos de cinquenta metros pelas margens quando a viu, boiando de bruços na água não muito longe da beira. Uma perna havia enganchado nas rochas impedindo que o corpo descesse rio abaixo. O cabelo dourado flutuava, movendo-se como se tivesse vida própria, mas era só o leve ondular do rio.
O homem retirou o corpo encharcado de Marisa da água e se ajoelhou chorando com a menina em seus braços. O rosto azulado da filha retirava qualquer esperança de que ainda estivesse viva. Ficou ali abraçado à garota, pensando em como iria contar à esposa sobre a sua morte. Foi então que sentiu uma mão quente tocando o seu ombro e uma voz muito grave lhe fazendo uma proposta.
- Quer ter a sua filha de volta?
Emmanoel Duarte faria qualquer coisa para que o tempo voltasse. Se tivesse uma outra chance, se pudesse voltar ao momento em que a filha viera ao mundo, teria sido um pai mais atencioso, não se preocuparia tanto em encher os cofres de dinheiro e a barriga dos amigos de comidas fartas em tantas festas que dera.
Quando sentiu a mão suave na pele, uma onda de calor atravessou seu corpo, um calor que lhe proporcionava um estranho alívio em oposição a dor extrema causada pela consciência de ter a filha morta em seus braços.
A mão que tocava seu ombro pertencia a um homem. Um sujeito alto e bem vestido com um sorriso acolhedor.
Emmanoel não sabia o que pensar ou falar. Passou alguns instantes tentando compreender o que era tudo aquilo. Muitas emoções se atropelando e confundindo seu raciocínio. Ter a filha de volta? Não seria impossível?
O homem continuava ali, sorrindo, imperturbável. Olhando a mocinha encharcada nos braços do pai. Aguardando uma resposta.
Emmanoel segurava a filha nos braços. Os cabelos molhados num tom um pouco mais escuro por causa da umidade, pingavam na areia lavada do rio, fazendo desenhos abstratos. Os segundos se arrastavam esperando uma decisão, como se a vida tivesse parado, expectante, no aguardo de sua resposta. Mesmo sendo impossível, aquela era a única chance que a filha teria. As palavras dançavam em sua cabeça enquanto ele pensava no que responderia.
- Quer a sua filha de volta? Está disposto a pagar o preço?
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Depois de passar várias horas dormindo, a filha de Emmanoel finalmente despertou. Para todos os outros a garota ficara apenas desacordada. O pai, todavia, ciente de tudo o que de fato ocorrera, resolveu acompanhar o processo de recuperação de perto. Chamou o cunhado de quem era sócio e entregou a administração dos negócios para ele, pelo tempo que fosse necessário.
A verdade é que Emmanoel se sentia culpado. Parecia-lhe uma blasfêmia ter submetido a filha morta a reviver contra a ordem natural e espiritual do mundo. A ideia de que algo terrível estava prestes a acontecer obsidiava seus pensamentos.
Sentava na mesma varanda em que costumava vê-la com as amigas, e ficava olhando a menina de longe, mas atentamente. Marisa quase nunca falava, os risos e brincadeiras de outrora haviam sido trocados por tardes vagando pelo jardim ou sentada num tronco perto do bosque, onde ficava por longos minutos observando os animais.
Foi por esta época que os criados começaram a se queixar de que havia fantasmas no casarão. Falavam que, durante as madrugadas, algo sobrenatural se movimentava pelos cômodos. Ouviam portas batendo e os cães latiam loucamente lá fora. Emmanoel perguntou à esposa se ela descia à cozinha ou para outro canto da casa para fazer algo, mas ela negou. Resolveu fazer, ele mesmo, uma vigília durante algumas noites.
Nos primeiros dois dias nada ocorreu.
Emmanoel chamou um empregado antigo e ficavam aguardando pela aparição juntos, na cozinha, conversando e bebendo café sob a luz de um lampião.
Na terceira noite pensavam que iria se repetir a mesma tranquilidade dos outros dias. Não ouviram os pequenos pés descalços saindo do quarto e atravessando o corredor, para depois descer a escada como se flutuasse. Só conseguiram ouvir a presença do suposto fantasma quando a porta que dava para a larga varanda começou a bater.
Os dois correram até lá e encontram a filha do dono da casa arranhando a porta e movendo a maçaneta sem conseguir abri-la. Parecia uma pessoa em crise de sonambulismo. Emmanoel colocou o indicador sobre os lábios para que o criado fizesse silêncio e retirou do bolso do colete a chave correspondente. Assim que a porta foi aberta, a menina saiu correndo. Passou, sem se deter, pela varanda e pelo jardim, em pouco tempo alcançou o bosque e sumiu das vistas dos homens que seguiam em seu encalço.
Ficaram procurando a menina pelas veredas e o pai não tardou a encontrá-la. A primeira coisa que Emmanoel viu entre as folhagens foi o cabelo, os fios dourados brilhavam sob o facho de luz dando à moça um aspecto quase angelical. Ela estava de costas para ele e agachada. Parecia bastante ocupada com alguma coisa que segurava entre as mãos. O criado devia estar longe pois os únicos barulhos que se ouviam no bosque eram os da agitação dos bichos. Emmanoel se ajoelhou por trás dela e tocou em suas costas delgadas.
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Naquela noite ele não conseguiu dormir. A angústia, todavia, se dissipou um pouco quando o dia amanheceu e a filha acordou disposta, com boas cores, falante e sorridente.
Parecia até que tudo o que havia acontecido desde o aniversário tivesse sido somente um pesadelo.
Manter a aparência de normalidade, porém, estava cada vez mais difícil. Quase todas as noites pai e filha entravam pela floresta, agora sem a companhia do criado. Não era raro que Cristina, grávida novamente, acordasse de madrugada pelo alvoroço dos animais lá fora e se desse conta que o marido não estava ao seu lado na cama.
Não demorou para a esposa descobrir as saídas do marido atrás de sua filha, durante as madrugadas, e os cochichos dos criados da casa começaram a alimentar terríveis desconfianças sobre o que acontecia entre os dois.
Desde o nascimento de Marisa, havia se ressentido com a atenção excessiva que o pai nutria pela filha. Quando reclamava do marido, Emmanoel lhe dizia para não pensar bobagens. Amava a filha e a mulher com a mesma intensidade.
Cristina fazia sua parte como mãe. Trazia a menina limpa, alimentada, e até lhe fazia carinhos, mas o amargo recalque se insinuava em seu coração, reprimido e inconfessável.
As coisas pioraram deveras quando Marisa floresceu como uma linda moça, insuportavelmente sensual em sua inocência sem máculas.
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Para a jovem filha do casal, pouco importava o que pensassem dela. A verdade é que a cada dia passado em sua nova condição, perdia um tanto a mais de sua humanidade e de sua memória, mas lembrava perfeitamente da música irresistível que lhe chamava para mergulhar.
A agua morna e convidativa que a fez ir entrando, nadando ao encontro da música hipnótica, seduzida pelo seu encanto. Foi quando sentiu que algo lhe puxava para baixo. Lutou, gritou e se debateu, mas a coisa era muito mais forte do que ela, por mais que tentasse, não conseguia chegar à superfície. Os pulmões se encheram de água e a vista foi desfocando, por fim o coração parou de bater e tudo ao redor ficou escuro e gelado.
Acordou atordoada depois de um longo sono. Demorou a reconhecer as pessoas. Sentia-se perdida na casa onde um dia nascera. Os pensamentos eram desorganizados e as palavras se formavam com dificuldade, por isso preferia ficar a maior parte do tempo calada.
Tudo era estranho e difícil para ela, a única certeza que tinha era a fome avassaladora e premente que sentia. Aceitava tudo o que lhe davam, porém nada a deixava satisfeita. A casa, as paredes, as pessoas, eram como barreiras a separando do seu objetivo. Sabia que precisava sair, mas ainda não entendia para que. Numa das vezes quando estava no jardim, viu alguns coelhos próximos ao limite onde iniciava o bosque e então compreendeu...
A partir do dia em que se entregou aos próprios instintos, sentiu que a verdadeira vida se descortinava para ela. Era uma caçadora. O sangue e a carne vivos ampliavam seus sentidos, a deixavam mais eficiente e sua mente funcionava com clareza e rapidez. Conseguia passar alguns dias entre uma caçada e outra, mas estes intervalos se tornavam cada vez menores. Mesmo se sentindo muito melhor desde que descobrira novos sabores e sensações, sentia que faltava algo. Só descobriu a resposta quando soube que a sua mãe estava esperando um novo bebê.
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Emmanoel não estava feliz. Sua vida agora se resumia ao medo que sentia da própria filha, das coisas que ela poderia fazer contra ele mesmo e contra as demais pessoas. Sabia que muito pouco a separava de cometer um crime. Sentia que todos viviam ameaçados pela sua presença ainda que apenas ele tivesse consciência do perigo que ela representava.
Os negócios iam de mal a pior sob a administração do seu cunhado. A mulher desconfiava do que havia por trás da vigilância e dos cuidados que ele tinha com a filha. Nem desconfiava que Emmanoel ficava perto dela apenas para impedir que fizesse algo com a esposa e o filho que estava a caminho.
O homem vivia extenuado e sem esperanças. O amor de pai se diluía, se transformava gradualmente em um sentimento de repulsa e culpa, e somente então ele entendeu o peso do preço que a criatura havia exigido para salvar a filha.
- Quer a sua filha de volta? Está disposto a pagar o preço?
Naquele momento, com a filha morta nos braços, ele faria qualquer coisa. Daria a sua própria vida e até sua alma se a pedissem, mas nunca estaria preparado para o que ouviu a seguir.
- Trago sua filha de volta se prometer que jamais tentará matá-la...
No dia do afogamento, Emmanoel achou aquela exigência absurda e despropositada, estava claro que nunca iria desejar matar a própria filha. Dois anos depois, entretanto, ele já não tinha mais esta certeza.
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Os meses transcorreram muito rápido, como se a vida conspirasse para o fim daquele tormento. Emmanoel pensava sempre na solução que daria para evitar uma tragédia maior. A esposa só falava o necessário com o marido. Tinha como certo que ele estava tendo um relacionamento com a própria filha, a quem também passara a odiar.
A presença da mocinha deixava o ar mais tenso. Sua nefanda presença, seus olhares insidiosos, sua natureza pérfida, se não era plenamente percebida, era sentida, adivinhada por cada um dos moradores da casa.
Quando o marido propôs fazer uma viagem com a menina, a única pessoa que não ficou feliz foi a sua própria mãe, não porque amasse ainda a filha, mas porque teve certeza de que suas suspeitas estavam corretas. Na verdade, e agora não lhe custava admitir, sempre tivera ciúmes do apego entre pai e filha. Nunca imaginaria que o homem tinha outros planos.
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Cristina acordou com uma gastura pelo corpo, o parto se avizinhava e algumas providências deveriam ser tomadas. Agora era inadiável. Apesar dos protestos da esposa, Emmanoel mandou que lhe preparassem uma mala com apenas duas mudas de roupa. Uma para ele e outra para a filha. Ninguém fez perguntas, especialmente o motivo pelo qual ele pedira um carro de rua ao invés de usar a carruagem da família. De certa forma, os criados se sentiam aliviados vendo a menina partir.
Foram calados pelo caminho. Emmanoel já tinha tudo arquitetado em sua cabeça. Levaria a filha até a cidade onde ele havia nascido. Ali ainda havia uma pequena casa na periferia que um dia pertencera aos seus avós e havia passado para suas mãos com o falecimento dos pais. A casa estava sem uso e, por ser isolado, seria o lugar perfeito para colocar seu plano em prática. Viajava tenso. Ainda recordava o tempo antes de todo aquele pesadelo ter iniciado, um tempo em que a filha era uma criança normal e encantadora.
A menina nada falou por todo o caminho. Ia com uma mantilha negra sobre os cabelos e se recostou no banco da carruagem ficando parcialmente oculta pela sombra. Esperava, paciente. Agora faltava pouco.
Logo que chegaram a menina avisou ao pai que iria dormir. Sabia o que estava prestes a acontecer e queria que terminasse logo. Percebeu quando o homem saiu de casa para pegar a pá. Ouviu seus passos chegando pelo corredor. Continuou imóvel enquanto Emmanoel levantava e abaixava o braço atingido sua cabeça e seu rosto com a ferramenta.
Deixou que arrastasse o seu corpo para o terreno dos fundos e que a jogasse numa cova rasa. Sabia que não estava viva, mas também não sentia a paz prometidas aos mortos, somente um torpor a fazia deslizar para um sono longo e reparador, até que estivesse pronta, novamente.
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Emmanoel se sentia leve como nunca antes. Matar a própria filha trouxe muito mais alívio do que remorso ou saudade. Finalmente tudo voltaria para os seus devidos lugares. Achava que assim como ele, ninguém iria sentir falta da menina, principalmente a mãe dela.
Nem bem amanheceu e saiu à procura de uma caleça para levá-lo até sua casa, queria chegar a tempo de receber o filho que nascia. Era domingo e havia poucos cocheiros disponíveis, por sorte encontrou um desocupado e foi logo subindo e indicando o caminho.
Naquele mesmo instante, na mansão dos Duarte, o pequeno Luiz abria os olhos claros para o mundo. Um menino lindo, saudável e inocente que traria de volta a felicidade para aquela casa. Cristina estava exultante. Sempre quisera ter um menino e o nascimento da filha não a havia satisfeito como mãe.
Do seu quarto, pedia para a criada olhar a todo instante para a janela, para ver se o marido retornava. A tarde caía com preguiça, o céu rosa escuro a lembrava que logo a noite cairia e era necessário mandar servir o jantar. Pediu que fizessem a comida que o marido mais gostava, ainda que nada indicasse que ele fosse retornar naquela noite.
As horas se passavam e Emmanoel não aparecia. A ama trouxe o bebê com o berço para perto da cama da mulher, para o caso dela querer amamentá-lo durante a madrugada. Quando foi acender o lampião, Cristina disse a mulher que pusesse apenas uma vela, não queria muita luz no quarto por causa do recém-nascido. Fazia calor e a esposa de Emmanoel pediu que a moça deixasse a janela aberta.
Durante a madrugada um vento fresco começou a soprar. Um vento que fez com que o chapéu do cocheiro voasse e ele precisasse parar a caleça para apanhá-lo, um vento que derrubou a vela que estava ao lado do berço e encostasse a chama quase se extinguindo no rico cortinado.
Faltava pouco para que Emmanoel chegasse e ele estava impaciente. Ia perdido em seus pensamentos quando percebeu que o carro parava e o cocheiro se preparava para apear.
- O que houve, cocheiro?
- Meu chapéu, senhor! Já volto!
Emmanoel sentiu um frio subir pela sua coluna. Tinha certeza que já ouvira aquela voz, mas não achava possível que fosse ele... Não podia ser...
- Não me falou o seu nome, cocheiro – perguntou sentindo medo da resposta.
- Me chamo Natanael, senhor.
- Já nos vimos antes?
- Acredito que não, senhor.
De longe enxergou a claridade alaranjada que devorava as árvores do bosque. Chegou o máximo que o cocheiro permitiu da casa em chamas. Fez o resto do trajeto a pé, sem conseguir acreditar que toda a sua vida ardia, sem perdão, ali na sua frente. Ao seu lado o cocheiro sorria. O destino daquela gente estava cumprido. Já estava indo embora quando lembrou de falar.
- Devia ter pago o preço, senhor. Avisei que nunca tentasse matar sua filha. E nem adiantaria, ela nunca morre...
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Cinco anos se passaram desde o incêndio que destruíra a mansão e as pessoas que a habitavam. Sem ter para onde voltar, Emmanoel deixou que acreditassem que havia morrido no incêndio. Vivia atormentado por sonhos premonitórios onde Marisa vinha atrás dele para se vingar. Desde então vagava pelo mundo e não havia uma única noite em que ele não temesse um reencontro com a sua filha.
Muito distante dali, Eugenio, um jovem pastor recém-casado, colocou suas poucas coisas na carroça e partiu para assumir o sítio que havia comprado por procuração. O terreno ficava no alto de uma montanha e era distante o suficiente da cidade para que pequenos animais morassem a poucos metros da casa. Trazia com ele a jovem e bela esposa. Conhecera a moça durante uma festa na igreja.
Era loira como um anjo e só não era perfeita por causa de uma cicatriz que se iniciava na cabeça e descia pela testa até o meio da bochecha. Teve curiosidade de saber o que havia acontecido, mas sempre que tocava no assunto, a moça desconversava. Jamais falava do passado.
Acabou casando e a felicidade compensava tudo o que não sabia sobre o passado dela. Os dados na certidão de casamento indicavam a data, o local de nascimento e seu nome: Marisa Duarte, filha de Emmanoel e Cristina Duarte - falecidos.
Para MARISA COSTA, DIOGO EMMANOEL, EUGENIO, LUIZ CLAUDIO SANTOS e CRISTINA GASPAR.
Não levou mais de dez minutos para atender aos seus chamados. Voltou com os criados, levando bandejas de carne assada e batatas, que foram depositadas sobre as pesadas mesas de madeira. Passou os olhos pelo jardim para procurar Marisa no meio das amigas, mas ela não estava mais lá. Desceu os batentes, gritou o nome dela, depois perguntou para as outras meninas sobre a filha. Ninguém soube dizer.
Voltou para a casa e perguntou à esposa.
- Aqui não apareceu. – Respondeu a mãe.
Começou a se desesperar e se juntou aos demais convidados e serviçais para procurar a menina.
Separou-se dos grupos e tomou um caminho para os lados do ribeirão. Seguia o fio contrário ao da corrente com o coração pequeno pelo pavor de que a filha tivesse se afogado.
Havia andado menos de cinquenta metros pelas margens quando a viu, boiando de bruços na água não muito longe da beira. Uma perna havia enganchado nas rochas impedindo que o corpo descesse rio abaixo. O cabelo dourado flutuava, movendo-se como se tivesse vida própria, mas era só o leve ondular do rio.
O homem retirou o corpo encharcado de Marisa da água e se ajoelhou chorando com a menina em seus braços. O rosto azulado da filha retirava qualquer esperança de que ainda estivesse viva. Ficou ali abraçado à garota, pensando em como iria contar à esposa sobre a sua morte. Foi então que sentiu uma mão quente tocando o seu ombro e uma voz muito grave lhe fazendo uma proposta.
- Quer ter a sua filha de volta?
Emmanoel Duarte faria qualquer coisa para que o tempo voltasse. Se tivesse uma outra chance, se pudesse voltar ao momento em que a filha viera ao mundo, teria sido um pai mais atencioso, não se preocuparia tanto em encher os cofres de dinheiro e a barriga dos amigos de comidas fartas em tantas festas que dera.
Quando sentiu a mão suave na pele, uma onda de calor atravessou seu corpo, um calor que lhe proporcionava um estranho alívio em oposição a dor extrema causada pela consciência de ter a filha morta em seus braços.
A mão que tocava seu ombro pertencia a um homem. Um sujeito alto e bem vestido com um sorriso acolhedor.
Emmanoel não sabia o que pensar ou falar. Passou alguns instantes tentando compreender o que era tudo aquilo. Muitas emoções se atropelando e confundindo seu raciocínio. Ter a filha de volta? Não seria impossível?
O homem continuava ali, sorrindo, imperturbável. Olhando a mocinha encharcada nos braços do pai. Aguardando uma resposta.
Emmanoel segurava a filha nos braços. Os cabelos molhados num tom um pouco mais escuro por causa da umidade, pingavam na areia lavada do rio, fazendo desenhos abstratos. Os segundos se arrastavam esperando uma decisão, como se a vida tivesse parado, expectante, no aguardo de sua resposta. Mesmo sendo impossível, aquela era a única chance que a filha teria. As palavras dançavam em sua cabeça enquanto ele pensava no que responderia.
- Quer a sua filha de volta? Está disposto a pagar o preço?
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Depois de passar várias horas dormindo, a filha de Emmanoel finalmente despertou. Para todos os outros a garota ficara apenas desacordada. O pai, todavia, ciente de tudo o que de fato ocorrera, resolveu acompanhar o processo de recuperação de perto. Chamou o cunhado de quem era sócio e entregou a administração dos negócios para ele, pelo tempo que fosse necessário.
A verdade é que Emmanoel se sentia culpado. Parecia-lhe uma blasfêmia ter submetido a filha morta a reviver contra a ordem natural e espiritual do mundo. A ideia de que algo terrível estava prestes a acontecer obsidiava seus pensamentos.
Sentava na mesma varanda em que costumava vê-la com as amigas, e ficava olhando a menina de longe, mas atentamente. Marisa quase nunca falava, os risos e brincadeiras de outrora haviam sido trocados por tardes vagando pelo jardim ou sentada num tronco perto do bosque, onde ficava por longos minutos observando os animais.
Foi por esta época que os criados começaram a se queixar de que havia fantasmas no casarão. Falavam que, durante as madrugadas, algo sobrenatural se movimentava pelos cômodos. Ouviam portas batendo e os cães latiam loucamente lá fora. Emmanoel perguntou à esposa se ela descia à cozinha ou para outro canto da casa para fazer algo, mas ela negou. Resolveu fazer, ele mesmo, uma vigília durante algumas noites.
Nos primeiros dois dias nada ocorreu.
Emmanoel chamou um empregado antigo e ficavam aguardando pela aparição juntos, na cozinha, conversando e bebendo café sob a luz de um lampião.
Na terceira noite pensavam que iria se repetir a mesma tranquilidade dos outros dias. Não ouviram os pequenos pés descalços saindo do quarto e atravessando o corredor, para depois descer a escada como se flutuasse. Só conseguiram ouvir a presença do suposto fantasma quando a porta que dava para a larga varanda começou a bater.
Os dois correram até lá e encontram a filha do dono da casa arranhando a porta e movendo a maçaneta sem conseguir abri-la. Parecia uma pessoa em crise de sonambulismo. Emmanoel colocou o indicador sobre os lábios para que o criado fizesse silêncio e retirou do bolso do colete a chave correspondente. Assim que a porta foi aberta, a menina saiu correndo. Passou, sem se deter, pela varanda e pelo jardim, em pouco tempo alcançou o bosque e sumiu das vistas dos homens que seguiam em seu encalço.
Ficaram procurando a menina pelas veredas e o pai não tardou a encontrá-la. A primeira coisa que Emmanoel viu entre as folhagens foi o cabelo, os fios dourados brilhavam sob o facho de luz dando à moça um aspecto quase angelical. Ela estava de costas para ele e agachada. Parecia bastante ocupada com alguma coisa que segurava entre as mãos. O criado devia estar longe pois os únicos barulhos que se ouviam no bosque eram os da agitação dos bichos. Emmanoel se ajoelhou por trás dela e tocou em suas costas delgadas.
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Naquela noite ele não conseguiu dormir. A angústia, todavia, se dissipou um pouco quando o dia amanheceu e a filha acordou disposta, com boas cores, falante e sorridente.
Parecia até que tudo o que havia acontecido desde o aniversário tivesse sido somente um pesadelo.
Manter a aparência de normalidade, porém, estava cada vez mais difícil. Quase todas as noites pai e filha entravam pela floresta, agora sem a companhia do criado. Não era raro que Cristina, grávida novamente, acordasse de madrugada pelo alvoroço dos animais lá fora e se desse conta que o marido não estava ao seu lado na cama.
Não demorou para a esposa descobrir as saídas do marido atrás de sua filha, durante as madrugadas, e os cochichos dos criados da casa começaram a alimentar terríveis desconfianças sobre o que acontecia entre os dois.
Desde o nascimento de Marisa, havia se ressentido com a atenção excessiva que o pai nutria pela filha. Quando reclamava do marido, Emmanoel lhe dizia para não pensar bobagens. Amava a filha e a mulher com a mesma intensidade.
Cristina fazia sua parte como mãe. Trazia a menina limpa, alimentada, e até lhe fazia carinhos, mas o amargo recalque se insinuava em seu coração, reprimido e inconfessável.
As coisas pioraram deveras quando Marisa floresceu como uma linda moça, insuportavelmente sensual em sua inocência sem máculas.
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Para a jovem filha do casal, pouco importava o que pensassem dela. A verdade é que a cada dia passado em sua nova condição, perdia um tanto a mais de sua humanidade e de sua memória, mas lembrava perfeitamente da música irresistível que lhe chamava para mergulhar.
A agua morna e convidativa que a fez ir entrando, nadando ao encontro da música hipnótica, seduzida pelo seu encanto. Foi quando sentiu que algo lhe puxava para baixo. Lutou, gritou e se debateu, mas a coisa era muito mais forte do que ela, por mais que tentasse, não conseguia chegar à superfície. Os pulmões se encheram de água e a vista foi desfocando, por fim o coração parou de bater e tudo ao redor ficou escuro e gelado.
Acordou atordoada depois de um longo sono. Demorou a reconhecer as pessoas. Sentia-se perdida na casa onde um dia nascera. Os pensamentos eram desorganizados e as palavras se formavam com dificuldade, por isso preferia ficar a maior parte do tempo calada.
Tudo era estranho e difícil para ela, a única certeza que tinha era a fome avassaladora e premente que sentia. Aceitava tudo o que lhe davam, porém nada a deixava satisfeita. A casa, as paredes, as pessoas, eram como barreiras a separando do seu objetivo. Sabia que precisava sair, mas ainda não entendia para que. Numa das vezes quando estava no jardim, viu alguns coelhos próximos ao limite onde iniciava o bosque e então compreendeu...
A partir do dia em que se entregou aos próprios instintos, sentiu que a verdadeira vida se descortinava para ela. Era uma caçadora. O sangue e a carne vivos ampliavam seus sentidos, a deixavam mais eficiente e sua mente funcionava com clareza e rapidez. Conseguia passar alguns dias entre uma caçada e outra, mas estes intervalos se tornavam cada vez menores. Mesmo se sentindo muito melhor desde que descobrira novos sabores e sensações, sentia que faltava algo. Só descobriu a resposta quando soube que a sua mãe estava esperando um novo bebê.
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Emmanoel não estava feliz. Sua vida agora se resumia ao medo que sentia da própria filha, das coisas que ela poderia fazer contra ele mesmo e contra as demais pessoas. Sabia que muito pouco a separava de cometer um crime. Sentia que todos viviam ameaçados pela sua presença ainda que apenas ele tivesse consciência do perigo que ela representava.
Os negócios iam de mal a pior sob a administração do seu cunhado. A mulher desconfiava do que havia por trás da vigilância e dos cuidados que ele tinha com a filha. Nem desconfiava que Emmanoel ficava perto dela apenas para impedir que fizesse algo com a esposa e o filho que estava a caminho.
O homem vivia extenuado e sem esperanças. O amor de pai se diluía, se transformava gradualmente em um sentimento de repulsa e culpa, e somente então ele entendeu o peso do preço que a criatura havia exigido para salvar a filha.
- Quer a sua filha de volta? Está disposto a pagar o preço?
Naquele momento, com a filha morta nos braços, ele faria qualquer coisa. Daria a sua própria vida e até sua alma se a pedissem, mas nunca estaria preparado para o que ouviu a seguir.
- Trago sua filha de volta se prometer que jamais tentará matá-la...
No dia do afogamento, Emmanoel achou aquela exigência absurda e despropositada, estava claro que nunca iria desejar matar a própria filha. Dois anos depois, entretanto, ele já não tinha mais esta certeza.
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Os meses transcorreram muito rápido, como se a vida conspirasse para o fim daquele tormento. Emmanoel pensava sempre na solução que daria para evitar uma tragédia maior. A esposa só falava o necessário com o marido. Tinha como certo que ele estava tendo um relacionamento com a própria filha, a quem também passara a odiar.
A presença da mocinha deixava o ar mais tenso. Sua nefanda presença, seus olhares insidiosos, sua natureza pérfida, se não era plenamente percebida, era sentida, adivinhada por cada um dos moradores da casa.
Quando o marido propôs fazer uma viagem com a menina, a única pessoa que não ficou feliz foi a sua própria mãe, não porque amasse ainda a filha, mas porque teve certeza de que suas suspeitas estavam corretas. Na verdade, e agora não lhe custava admitir, sempre tivera ciúmes do apego entre pai e filha. Nunca imaginaria que o homem tinha outros planos.
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Cristina acordou com uma gastura pelo corpo, o parto se avizinhava e algumas providências deveriam ser tomadas. Agora era inadiável. Apesar dos protestos da esposa, Emmanoel mandou que lhe preparassem uma mala com apenas duas mudas de roupa. Uma para ele e outra para a filha. Ninguém fez perguntas, especialmente o motivo pelo qual ele pedira um carro de rua ao invés de usar a carruagem da família. De certa forma, os criados se sentiam aliviados vendo a menina partir.
Foram calados pelo caminho. Emmanoel já tinha tudo arquitetado em sua cabeça. Levaria a filha até a cidade onde ele havia nascido. Ali ainda havia uma pequena casa na periferia que um dia pertencera aos seus avós e havia passado para suas mãos com o falecimento dos pais. A casa estava sem uso e, por ser isolado, seria o lugar perfeito para colocar seu plano em prática. Viajava tenso. Ainda recordava o tempo antes de todo aquele pesadelo ter iniciado, um tempo em que a filha era uma criança normal e encantadora.
A menina nada falou por todo o caminho. Ia com uma mantilha negra sobre os cabelos e se recostou no banco da carruagem ficando parcialmente oculta pela sombra. Esperava, paciente. Agora faltava pouco.
Logo que chegaram a menina avisou ao pai que iria dormir. Sabia o que estava prestes a acontecer e queria que terminasse logo. Percebeu quando o homem saiu de casa para pegar a pá. Ouviu seus passos chegando pelo corredor. Continuou imóvel enquanto Emmanoel levantava e abaixava o braço atingido sua cabeça e seu rosto com a ferramenta.
Deixou que arrastasse o seu corpo para o terreno dos fundos e que a jogasse numa cova rasa. Sabia que não estava viva, mas também não sentia a paz prometidas aos mortos, somente um torpor a fazia deslizar para um sono longo e reparador, até que estivesse pronta, novamente.
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Emmanoel se sentia leve como nunca antes. Matar a própria filha trouxe muito mais alívio do que remorso ou saudade. Finalmente tudo voltaria para os seus devidos lugares. Achava que assim como ele, ninguém iria sentir falta da menina, principalmente a mãe dela.
Nem bem amanheceu e saiu à procura de uma caleça para levá-lo até sua casa, queria chegar a tempo de receber o filho que nascia. Era domingo e havia poucos cocheiros disponíveis, por sorte encontrou um desocupado e foi logo subindo e indicando o caminho.
Naquele mesmo instante, na mansão dos Duarte, o pequeno Luiz abria os olhos claros para o mundo. Um menino lindo, saudável e inocente que traria de volta a felicidade para aquela casa. Cristina estava exultante. Sempre quisera ter um menino e o nascimento da filha não a havia satisfeito como mãe.
Do seu quarto, pedia para a criada olhar a todo instante para a janela, para ver se o marido retornava. A tarde caía com preguiça, o céu rosa escuro a lembrava que logo a noite cairia e era necessário mandar servir o jantar. Pediu que fizessem a comida que o marido mais gostava, ainda que nada indicasse que ele fosse retornar naquela noite.
As horas se passavam e Emmanoel não aparecia. A ama trouxe o bebê com o berço para perto da cama da mulher, para o caso dela querer amamentá-lo durante a madrugada. Quando foi acender o lampião, Cristina disse a mulher que pusesse apenas uma vela, não queria muita luz no quarto por causa do recém-nascido. Fazia calor e a esposa de Emmanoel pediu que a moça deixasse a janela aberta.
Durante a madrugada um vento fresco começou a soprar. Um vento que fez com que o chapéu do cocheiro voasse e ele precisasse parar a caleça para apanhá-lo, um vento que derrubou a vela que estava ao lado do berço e encostasse a chama quase se extinguindo no rico cortinado.
Faltava pouco para que Emmanoel chegasse e ele estava impaciente. Ia perdido em seus pensamentos quando percebeu que o carro parava e o cocheiro se preparava para apear.
- O que houve, cocheiro?
- Meu chapéu, senhor! Já volto!
Emmanoel sentiu um frio subir pela sua coluna. Tinha certeza que já ouvira aquela voz, mas não achava possível que fosse ele... Não podia ser...
- Não me falou o seu nome, cocheiro – perguntou sentindo medo da resposta.
- Me chamo Natanael, senhor.
- Já nos vimos antes?
- Acredito que não, senhor.
De longe enxergou a claridade alaranjada que devorava as árvores do bosque. Chegou o máximo que o cocheiro permitiu da casa em chamas. Fez o resto do trajeto a pé, sem conseguir acreditar que toda a sua vida ardia, sem perdão, ali na sua frente. Ao seu lado o cocheiro sorria. O destino daquela gente estava cumprido. Já estava indo embora quando lembrou de falar.
- Devia ter pago o preço, senhor. Avisei que nunca tentasse matar sua filha. E nem adiantaria, ela nunca morre...
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Cinco anos se passaram desde o incêndio que destruíra a mansão e as pessoas que a habitavam. Sem ter para onde voltar, Emmanoel deixou que acreditassem que havia morrido no incêndio. Vivia atormentado por sonhos premonitórios onde Marisa vinha atrás dele para se vingar. Desde então vagava pelo mundo e não havia uma única noite em que ele não temesse um reencontro com a sua filha.
Muito distante dali, Eugenio, um jovem pastor recém-casado, colocou suas poucas coisas na carroça e partiu para assumir o sítio que havia comprado por procuração. O terreno ficava no alto de uma montanha e era distante o suficiente da cidade para que pequenos animais morassem a poucos metros da casa. Trazia com ele a jovem e bela esposa. Conhecera a moça durante uma festa na igreja.
Era loira como um anjo e só não era perfeita por causa de uma cicatriz que se iniciava na cabeça e descia pela testa até o meio da bochecha. Teve curiosidade de saber o que havia acontecido, mas sempre que tocava no assunto, a moça desconversava. Jamais falava do passado.
Acabou casando e a felicidade compensava tudo o que não sabia sobre o passado dela. Os dados na certidão de casamento indicavam a data, o local de nascimento e seu nome: Marisa Duarte, filha de Emmanoel e Cristina Duarte - falecidos.
Para MARISA COSTA, DIOGO EMMANOEL, EUGENIO, LUIZ CLAUDIO SANTOS e CRISTINA GASPAR.