Os Estranhos Casos da Rua Snoke - CLTS 07

I

Já não neva há alguns dias, mas ainda está muito frio, e um pouco de neblina resiste. Idney está com pressa, de modo que dirige bem mais rápido do que é seguro nessas condições. Ele é um advogado em uma empresa que lida com acidentes de trabalho ou de carro, homicídio involuntário, seguros, coisa do tipo. Trabalha na cidade principal da ilha e está doido para voltar para sua casinha no interior, onde cresceu. Apesar de dirigir com farol alto, conforme avança, a visibilidade piora. Quando ele meramente começa a pensar em diminuir a velocidade, o celular toca. Mais um ato inseguro: atende.

O homem do outro lado parece em pânico. Nada que o abale, está acostumado a receber esse tipo de ligação. Ele se envolveu em algum tipo de acidente de carro. Idney aguarda o sujeito respirar para poder perguntar seu nome, como sempre, mas a voz do outro lado da linha para de repente. Sente que há algo errado, então aguarda alguns segundos antes de perguntar:

– Amigo, tudo bem? Aconteceu alguma coisa?

De repente, um sacolejo. Acabou de passar por cima de alguma coisa, ouve um grito de dor. Isso é mau. Estava dirigindo rápido demais, em uma pista sem visibilidade, falando ao celular. Sua empresa lida com casos como esse, mas tudo que ele podia fazer era tentar diminuir os danos.

Para o carro, dá meia-volta, retorna alguns metros e, ainda com o celular na mão, desce preocupado para ver sobre o que passou por cima. Enquanto procura, sem olhar para o celular, encerra a ligação em que estava e tenta ligar para o seu sócio. Está em pânico, pode ter matado alguém. Atendem. Ele tenta explicar desajeitadamente o ocorrido, em pânico.

No exato momento em que vê o corpo, tem uma sensação de déjà-vu. O que ele estava dizendo à pessoa que o atendeu era exatamente aquilo que o sujeito que havia ligado para ele há pouco dizia. Agora, parando para pensar, era sua própria voz no telefone. O corpo no chão veste exatamente as suas roupas. Ofegante, aproxima-se dele e vira-o, para ver que o homem no chão é ele próprio. Imediatamente, ouve sua própria voz no celular:

– Amigo, tudo bem? Aconteceu alguma coisa?

II

Naquela ilha nórdica, muitas lendas ainda sobrevivem. Não aquelas histórias de contos de fadas sobre jotuns, anões, doppelgangers, cavalos mágicos, lobos monstruosos ou corvos mensageiros. Essa é uma mitologia já morta. Entretanto, histórias novas surgiram e ganharam o crédito do povo.

Uma delas é sobre a aurora boreal. O mito é basicamente que não se deve olhar para a Aurora por mais de dez minutos. As vezes isso é contado como uma piada, mas dizem que toda lenda tem um fundo de verdade. O povo acredita que as luzes são reflexos de espíritos, transformando-se devido à chegada de novas almas. Dizem que se você olhar para as luzes por muito tempo, os espíritos pensarão que você tem inveja deles. Eles descerão e tirarão tua vida, levando-te para dançar nos ares também.

Por causa dessa lenda, mesmo Kari tendo vinte anos, sua mãe sempre diz para ela não ficar olhando para as luzes por muito tempo. Certo dia, entretanto, ela se julgou velha o suficiente. Então chamou alguns amigos para acamparem na floresta e assistirem a aurora boreal. Seria o maior ato de rebeldia de suas vidas nessa cidadezinha pacata.

Kari, o quase-namorado Rolf e um casal de amigos foram de jipe até a floresta no fim da tarde, caminharam por uma trilha até uma grande clareira e ali montaram acampamento, tendo suprimentos para um dia inteiro. Montaram duas barracas, uma para Kari e Rolf e uma para os outros dois.

Quando o fenômeno finalmente começa, eles assistem em silêncio. Um sabor de transgressão preenche o momento. Kari se aconchega mais perto de Rolf, deitados em um colchonete no chão. Após sete minutos, os seus companheiros alegam não estar se sentindo bem e decidem ir para dentro da barraca. Claro que Rolf e Kari não acreditam, eles só estavam com medo.

Finalmente, após quinze minutos, ao verificarem que está tudo bem, o casal resistente se beija para comemorar. Sentem apenas uma leve dormência no corpo, mas é por causa do frio. Provada a mentira do mito, foram para dentro da tenda se proteger. Dormiram rapidamente, como anjinhos.

Às três da manhã, entretanto, Kari acorda com algo se mexendo. Rolf está deitado ao seu lado, de olhos bem abertos.

– O que houve? – Ela pergunta.

– A fogueira apagou. Está muito escuro. Não gosto de escuro.

Kari não discute. Apenas ri, fecha os olhos e volta a dormir. Já ao amanhecer, acorda com gritos da outra mulher do quarteto. Rolf não está ao seu lado. Quando sai para ver o que está acontecendo, vê–lo completamente nu, mesmo fazendo bastante frio (tão frio que ela nem sequer pensou em fazer qualquer coisa além de dormir dentro daquela tenda, nada nesse mundo a faria tirar as calças).

Mas não é por causa da nudez que a mulher grita: é pelos seus olhos. Estão completamente brancos, e não piscam. Rolf parece um zumbi. Está como morto, mesmo de pé. Não fala, não se comunica, apenas faz movimentos mecânicos. É como se sua alma tivesse sido removida, e ele ainda está vivo.

III

É uma noite calma e fresca. Soren trabalhou duro e está pronto para uma boa noite de sono. Sobe até seu quarto no segundo andar (a casa que recebeu de herança é grande demais para quem vive sozinho). Há três noites, na hora de dormir, uma estranha sensação de paranoia preenche o silêncio escuro da noite. Sua casa é a terceira de cinco que formam a pequena rua Snoke. Na casa número 1, o advogado Idney desapareceu; somente seu carro foi encontrado, ainda ligado, no meio da estrada. Na número 2, o jovem Rolf entrou em um misterioso estado catatônico. Soren acredita, portanto, ser o próximo.

Deita–se e fecha os olhos, tentando dormir. Uma visão estranha invade sua mente de repente, como um choque. Em um flash, vê sua própria casa, como se a estivesse observando do lado de fora. Não foi um sonho, ele ainda não estava dormindo, e foi muito mais real.

Mais uma vez fecha os olhos e tenta relaxar para dormir. E novamente tem uma visão daquelas, por 1 segundo, só que da porta da frente da sua casa. Revira sua memória recente para se certificar de que realmente a trancou. A cidade é muito pacata, é muito comum as pessoas esquecerem de trancarem sua casa, simplesmente porque não há motivo real para isso. Ele não trancou.

Agora, mesmo sentado, ele tem outra visão. Dessa vez vê suas escadas, como se estivesse lá embaixo, prestes a subir, tendo como única iluminação a luz do corredor do segundo andar. Ele tenta se convencer que isso é coisa da sua cabeça e se deita, mas antes que encoste a cabeça no travesseiro, ouve o inconfundível som dos degraus da madeira da escada rangendo.

A paranoia leva a melhor e ele pula da cama, tranca a porta do quarto e tira uma pequena pistola da sua mesa de cabeceira. Essa arma também foi herança, e ele nem sabe se funciona. Por via das dúvidas, carrega-a. Ainda pode ouvir os degraus rangendo, como se alguém estivesse subindo bem lentamente.

Finalmente, o barulho para. Soren ainda permanece alguns minutos ouvindo, tentando identificar qualquer som que denuncie um invasor. Quando começa a se convencer que foi só sua imaginação, é surpreendido por mais uma visão. Dessa vez da porta do seu quarto, como se olhasse pelo lado de fora. Precisa fazer alguma coisa, senão, seja lá o que for que estiver ali, vai atacá–lo quando estiver desprevenido.

Leva um minuto ou mais para tomar coragem e se aproximar da porta. Gira a chave devagar, mas é muito difícil não fazer barulho em um ambiente tão silencioso e com uma fechadura tão velha, então desiste de ser sorrateiro. Tira a chave, com a porta ainda trancada, e olha pelo buraco para ver o que está lá. Apenas o corredor vazio.

Respira alguns segundos para tomar coragem, coloca a chave novamente na porta e abre devagar, com a arma em punho. O corredor está vazio. Coloca a cabeça para fora, olha para um lado, para o outro, nada. Respira fundo. Se chegasse a atirar, causaria uma confusão histórica no bairro, teria que se explicar para a polícia, seria um "problemão".

Ao se virar, vê a si mesmo deitado na cama, dormindo profundamente.

IV

Depois do desaparecimento do vizinho Soren, Skipp passou a ter uma estranha sensação de que estava sendo observado o tempo todo. Não importava onde estivesse ou o que estivesse fazendo, mesmo que tivesse certeza de estar sozinho, sentia a pressão de olhos o encarando. Ele nunca conseguia ver quem era ou avaliar de onde vinha, mas a sensação se tornou já familiar, embora não menos assustadora.

O estresse começou a se instalar pouco depois. Começou a dormir cada vez menos noite após noite, pois sempre sentia que havia alguém o observando da escuridão. Chegou a se consultar com médicos da cidade grande sobre isso, tomar remédios, mas nada adiantava. Sua mulher, Mikaela, logo sentiu a pressão de ter que cuidar dele em meio ao crescente aborrecimento e frustração.

Quando ele começou a se acostumar com a sensação e passou a voltar a dormir, a coisa piorou. De vez em quando, ele olhava para alguma direção e via alguém o encarando. Quer fosse na mercearia, no parque, ou mesmo em restaurantes movimentados, vira e mexe ele pegava alguém olhando fixamente para ele com os mesmos olhos totalmente esbranquiçados, sem vida. O mais perturbador era nunca ser a mesma pessoa. O primeiro foi o vizinho do número 2, Rolf. Depois era sempre uma pessoa diferente a cada vez.

Uma vez, de noite, a rua deserta, viu pela janela um velho olhando para ele da rua, os mesmos olhos sem íris. Ele ficou vários minutos lá, mesmo depois que Skipp saia da sala e voltava para verificar. Finalmente, chamou sua mulher para ver, mas quando ela chegou, o velho havia desaparecido. O mesmo acontecia toda vez que ele perguntava para alguém se estava vendo, ou ia até a pessoa que o observava para tirar satisfações, ela sempre sumia de repente.

O pânico crescente fez com ele pedisse demissão do emprego, e não quisesse mais sair de casa. Ainda assim, ocasionalmente olhava pela janela e via aquele mesmo olhar estampado em algum vizinho ou alguém que passava na rua. Nesse ponto, entretanto, o observador já não ficava apenas olhando-o sem expressão, mas exibia um sorriso maldoso que se estendia por todo o rosto, mais largo do que um ser humano comum é capaz de sorrir.

Decidiu não se aproximar da janela por algum tempo. Sua mulher ficava cada vez mais chateada com a situação. Enfim, após alguns dias, tomou coragem para olhar de novo para fora, e nada de ruim aconteceu. Das próximas vezes que olhou, não havia mais ninguém o observando de modo estranho. Estava livre, finalmente.

Após algum tempo de tranquilidade, conseguiu voltar ao seu emprego, visitar amigos e familiares, e pouco a pouco retornar à vida normal, fazendo tudo o que podia para agradecer a Mikaela pelo que ela fez no tempo em que ele esteve fragilizado. Uma noite, Skipp acordou com sua mulher se mexendo na cama. A luz do banheiro estava acessa, mas ela estava sentada ao seu lado.

– O que houve? – Ele pergunta, bem sonolento.

– Acendi a luz do banheiro porque não gosto do escuro. – Ela sussurra.

– Por quê? Está com medo de escuro agora?

– Não tenho medo do escuro, só não gosto.

Ela se vira para olhá-lo, e sorri. Ao ver sua face, Skipp pula da cama assustado e dá um berro. Ela está com aqueles mesmos olhos esbranquiçados e sorriso largo. Ele se levanta e sai correndo, ela vai atrás. Gritando, ele pega as chaves, sai porta a fora, entra no carro e parte sem destino, dirigindo até não conseguir ficar mais acordado.

Fica quase uma semana na cidade grande, sem dar notícias para ninguém. Quando finalmente toma coragem e volta para casa, olhar para o rosto de sua mulher novamente torna-se uma das coisas mais difíceis que ele teve que fazer na vida, mas ela está normal, apenas chocada e preocupada. Dá nela o maior abraço e faz o mais sincero pedido de desculpas da vida, explicando-lhe a situação. Ela, porém, fica sem entender. Mikaela não estava na cama com ele quando surtou e saiu gritando, ela estava no banheiro. Seja lá o que ele viu aquele dia, não era sua mulher.

V

Uma menina está brincando em seu quarto na rua Snoke número 5, quando ouve seu pai chamar por ela na cozinha. Moram apenas os dois. Rapidamente, ela sai para o corredor e caminha em direção à voz do pai. No meio do caminho, entretanto, uma porta se abre e uma mão masculina agarra-a pelo braço, dando-lhe um susto. É seu pai, que sussurra:

– Não vá para a cozinha. Eu também o ouvi.

VI

– Pai, o que é um doppelgänger? – A menina da casa 5 pergunta, quando o pai fecha a porta do elevador e os dois começam a subir. Esse é um daqueles elevadores velhos, que a maioria das pessoas acha que não é muito seguro. Bastante minúsculo, mal cabendo umas quatro pessoas magras. Como havia uma porta de metal que deveria ser fechada e aberta manualmente, o elevador em si não tinha portas. Assim, conforme ele sobe, é possível estender a mão e passá–la ao longo da parede enquanto se movimenta.

– Onde você ouviu isso?

– As pessoas disseram que o desaparecimento dos nossos vizinhos foi causado por um doppelgänger.

– Isso é bobagem, lendas que as pessoas inventam.

– Se é bobagem, por que nós nos mudamos?

O pai ficou sem resposta.

– Bem... Doppelgänger é uma criatura mitológica que consegue se transformar em uma cópia perfeita de uma pessoa.

– Ah, entendi. Ele também consegue se transformar em outras coisas?

– Tipo...?

– Tipo um gato?

– Ah, sim, acho que sim.

– Ele pode se transformar em uma árvore?

– Sim, eu acho...

– E em uma porta? Em vento? Um livro? Um computador?

– Sim, filha, eu acho que ele pode se transformar em qualquer coisa. – Ele diz, começando a ficar preocupado com o fato do elevador estar demorando demais para chegar ao destino. A cada andar ele passa por uma porta de metal, com o número do andar escrito. Eles moravam no oitavo agora. Só nesse momento o pai percebe que estava passando por portas sem nenhuma marcação. Começa a sentir um calor estranho emanando das paredes. O homem esticou a mão para tocar na parede que se movimentava, e antes que ele tocasse, o elevador parou. Sentiu-a bastante quente, macia e molhada, com a consistência de uma língua enorme.

– E um elevador, papai? Ele consegue se transformar em um elevador? – Ele ouviu a voz da sua filha soar levemente mais grave que o normal.

– O que você disse? – Ele se virou para encarar a menina, que tremia.

– Eu... eu não disse nada, papai. Não fui eu que falei.

Então as paredes começaram a se fechar sobre os dois, úmidas, quentes e macias.

TEMA: MITOLOGIA