Os fãs incondicionais de futebol sabem como é ficar sem televisão no dia do jogo mais importante do seu time. No dia em que ele está para comemorar o campeonato que há muito tempo não ganha.
Isso foi o que aconteceu com o Seu Osvaldo. Sua televisão pifou justamente naquele domingo em que seu time, depois de muitos anos, estava na bica para ser campeão. Ele esperava por isso há um longo e tenebroso tempo, em que aguentara a gozação dos torcedores adversários, vendo os rivais comemorarem títulos e mais títulos e ele, esperando, esperando, esperando que um dia aquela “zica” passasse e pudesse gritar de novo: “É campeão!”
Há muito que ele não ia aos estádios. Não só por conta do fato de que seu time, nos últimos tempos, já não frequentava mais as finais dos torneios, mas principalmente por causa da violência entre as torcidas. Seu Osvaldo era um homem pacato, que deplorava aquelas brigas entre torcidas organizadas, que volta e meia, acabavam em morte. Futebol, para ele, era esporte, era lazer, e não uma guerra, onde as pessoas descarregavam suas frustrações diárias, batendo umas nas outras.
Por isso preferia assistir aos jogos em casa, na companhia de uma cervejinha, no conforto de um sofá. Neusa, sua mulher, nem gostava de futebol. Por isso, quando ele assumia aquela postura de paxá, esparramado no sofá, com uma “braminha” na mão, ela sabia que era hora de enfurnar-se na cozinha, ou ir á cata de uma vizinha para conversar, por que, naquele momento, nem que a casa caísse, alguém conseguiria tirar o Seu Osvaldo daquele sofá.
Por isso o desespero dele naquele domingo em que seu time, finalmente, depois de tantos anos “na fila”, ia, finalmente desencantar. Bastava um empatezinho, um mero empatezinho, para que o grito de campeão, finalmente, saísse da sua garganta.
Mas e aquela agora! A televisão pifara. Sim. Poderia ir na casa da filha, mas aquele seu genro, além de folgado, era torcedor do time adversário. Além do “saco” de ter que aturá-lo, aguentar gozação, se o seu time perdesse,isso não. Podia ir também no bar do Toninho. Tinha uma TV lá no bar , e de vez em quando ele ia lá tomar umas cervejas. Mas lá também ele iria encontrar torcedores rivais. Não estava a fim de dividir seus momentos de alegria, ou tristeza, com bêbados debochados e de hálito pestilento, com aquele cheiro de pinga barata sendo soprado na cara dele.
Lembrou-se de um cartão que alguém lhe entregara um dia na rua. Revirou a gaveta do criado mudo á procura dele e achou.
“ Zanatas- Técnico em Eletrônica. Conserto qualquer tipo de televisão . Serviço rápido e garantido. 24 horas por dia.”
Pegou o telefone e ligou. Quinze minutos depois o sujeito estava batendo á sua porta. Era um sujeito grandão, de cara rosada e bochechas inchadas. Tinha cabelos cor de cenoura, e falava com um estranho sotaque que parecia alemão. Carregava uma enorme caixa de ferramentas que mais parecia uma mala de caixeiro viajante.
─ Minha televisão pifou justamente hoje, no dia do jogo mais importante do meu time ─ disse Seu Osvaldo. ─ Se você conseguir consertá-la, eu pago o preço que você pedir ─ completou.
─ Pagarr mesmo? ─ perguntou o técnico, com sua voz de erres arrastados.
─ Pago. Mas por favor, conserte essa merda ─ disse Seu Osvaldo.
O alemão era bom mesmo. Abriu a caixa de ferramentas e começou a trabalhar. Puchou umas placas de circuitos impressos para fora e trocou alguns componentes. Seu Osvaldo ficou impressionado com a competência do cara. Parecia que ele tinha naquela mala tudo que precisava para consertar uma TV. Como ele podia adivinhar o que tinha queimado e trazer exatamente o que precisava para consertar?
Faltava uns cinco minutos para começar o jogo quando ele ligou a televisão e as imagens do estádio apareceram na telinha. Seu Osvaldo olhou para ela e soltou um suspiro de satisfação como se tivesse acabado de ganhar um prêmio de loteria.
─ Prrronto ─ disse o alemão. ─ O senhorr está satisfeito?
─ Mas claro ─ disse seu Osvaldo. ─ Me diz aí quanto foi o seu serviço, para eu fazer o cheque.
─ Não aceitarr cheque─ disse o alemão.
─ Mas então como vamos fazer? Eu não tenho dinheiro em casa. E hoje é domingo. Os bancos estão fechados ─ disse seu Osvaldo.
─ Não terrr prroblema─ disse o alemão. ─ Pode assistirrr seu jogo. ─ Eu voltarr amanhã para pegarr pagamento.
─ Então tudo bem. Mas o senhor não disse quanto foi.
─ Não se preocuparr. Eu cobrarr barratinho.
E lá se foi o alemão, com sua enorme mala de ferramentas. Seu Osvaldo foi á cozinha, abriu a geladeira e pegou uma cerveja. Depois voltou para o sofá e começou a assistir o jogo.
O time do seu Osvaldo ganhou o jogo e foi campeão. Ele tomou umas seis garrafas de cerveja por conta da festa. Não aguentou o sono que deu nele e acabou dormindo logo após o término da partida. Nem assistiu a festa que a torcida fez.
Acordou lá pela meia noite, com a boca seca e a língua parecendo uma lixa. A TV tinha sido desligada. Provavelmente Dona Neusa tinha feito isso. Levantou-se, foi á cozinha e bebeu um litro de água. Não se lembrava de ter sentido tanta sede na vida. “Até parece que acabei de atravessar o deserto”, pensou.
Voltou á sala. Lembrou-se que a televisão tinha sido consertada. Eta alemão batuta, aquele. Salvara seu domingo. Não se perdoaria se justo no dia em que seu time do coração saia da fila, ele não tivesse podido assistir. Não cabia em si de contente. Amanhã era ele quem iria gozar os adversários.
Estava sem sono. Seria capaz de passar a noite inteira acordado, gozando aquela euforia de campeão. Resolveu ligar a TV. Lembrou-se que na madrugada costumava passar bons filmes.
Achou um velho filme em preto em branco. Lembrou-se que já vira aquela fita quando era adolescente. Era um filme de suspense que contava a história de um sujeito, casado há quarenta anos com a mesma mulher, que de repente descobre que a odeia, porque ela vive criticando seus modos de homem largado, sempre esparramado no sofá, só assistindo velhos filmes e jogos de futebol. Rememora, em poucos segundos, todas as vezes que ela o aborreceu, o humilhou, o espezinhou por causa disso, e ele, por conta de uma rotina e de uma vida construída ao longo de tantos anos, relevou essas humilhações, sem dar muita importância a todos esses pequeninos incômodos. Mas um dia, como numa explosão instantânea e inesperada, sua raiva vaza como água represada em uma barreira que de repente racha. Então ele pega uma faca, vai até o quarto onde sua esposa dorme a sono solto e retalha a infeliz, como se ela fosse uma peça de carne no açougue.
Ele se lembrava daquele filme. Por conta daquele assassinato, o personagem teve que cometer uma série de outros mais para encobrir o primeiro. Primeiro foi o porteiro do prédio que viu ele saindo de madrugada, com a mala onde ele havia escondido o cadáver da esposa. Depois foi vizinho que desconfiou do sumiço da esposa e porteiro. Depois o policial que começou a investigar o caso, e daí por diante.
Seu Osvaldo lembrava-se da terrível impressão que levou para casa depois de assistir aquele filme. A fauna que um homem cria no seu inconsciente sem se dar conta disso podia ser mais pavorosa e perversa do que alguém poderia imaginar. E de repente, sem nenhum aviso, sem qualquer sintoma, ela se manifestava numa explosão de insanidade. Foi o que acontecera com o personagem do filme. " Se você brigar com sua mulher porque o café da manhã está frio e o motivo for esse mesmo, então está tudo bem na sua vida", dizia o personagem, com um brilho estranho nos olhos e um sorriso diabólico nos lábios. Quer dizer: uma pessoa nunca mata outra por um motivo qualquer. Há sempre um monte de motivos que a leva a isso. Mas como todos estão encobertos na camada de lama do nosso inconsciente, a gente pensa que há um motivo específico para o nosso desvario. Mas ele é apenas a gota dágua. Ele é a âncora que detona a tragédia. Pense nisso na próxima vez que brigar com o vizinho, com a mulher ou com o sujeito que o fechou no trânsito...
Mas havia uma coisa estranha naquele filme, que o Seu Osvaldo não se lembrava de ter notado antes. Durante toda projeção, o ator não mostrava o rosto. As cenas eram filmadas em flash back, em tomadas de perfil, com mudanças rápidas de ambiente. Só no final, o rosto do ator era mostrado em um close especial, com todas as nuances de um semblante onde a loucura se estampava numa expressão tão cruel quanto assustadora. Porém, o que mais impressionou Seu Osvaldo foi ter reconhecido naquela horripilante máscara de demência o seu próprio rosto! Sim. Não tinha dúvidas. Aquele sujeito era ele!
Ninguém soube explicar o que aconteceu na casa do Seu Osvaldo na madrugada daquele dia em que o time de maior torcida do país conseguiu, finalmente, ganhar um campeonato que não vencia há mais de vinte anos. Tudo foi levado na conta da bebedeira. As seis garrafas vazias de cerveja, que foram encontradas na sala, justificavam tudo. Seu Osvaldo, que não era dado a beber muito, deve ter ficado embriagado e brigado com a esposa. Enlouquecido pela bebida, pegou uma faca e retalhou a mulher, como se ela fosse uma peça de carne no açougue.
Dona Neusa fora encontrada por volta das duas horas da tarde do dia seguinte, na cama, , praticamente sem uma gota de sangue no corpo, tanto eram os cortes e os furos que haviam sido feitos no seu corpo. Fora morta por volta das duas horas da manhã, surpreendida na sua própria cama.
Ninguém descobriu o que houve com o Seu Osvaldo, que parecia ter sumido do mundo. Foram inúteis todas as diligências feitas pela polícia para encontrá-lo. A única testemunha que o viu depois disso foi um vizinho, que afirmou tê-lo visto sair, pela manhã, por volta das seis horas, junto com um sujeito alto e forte. Era um sujeito grandão, de cara rosada e bochechas rechonchudas. Tinha cabelos cor de cenoura e falava com um estranho sotaque que parecia ser alemão. Carregava, pendurada nos ombros, uma enorme caixa de ferramentas que mais parecia uma mala de caixeiro viajante.
A polícia achou o cartão do técnico em eletrônica em cima da televisão. Era a única pista que tinham e ela foi atrás. Mas logo descobriram que o endereço e o telefone que constavam do cartão não existiam. Ninguém foi capaz de informar absolutamente nada sobre o tal senhor Zánatas, técnico em eletrônica, que se dizia capaz de consertar qualquer aparelho de televisão, rapidamente e com serviço garantido, atendendo 24 horas por dia. Nem foi encontrado qualquer registro do indivíduo, na Junta Comercial, na Receita Federal, na Prefeitura ou qualquer outro lugar onde as pessoas precisam se registrar para provar que existem. Parecia que o cara nunca existira. O caso foi arquivado, e o mistério do homem que consertava televisores e o sumiço do Seu Osvaldo, ainda causam espanto na cidade até os dias de hoje.
Isso foi o que aconteceu com o Seu Osvaldo. Sua televisão pifou justamente naquele domingo em que seu time, depois de muitos anos, estava na bica para ser campeão. Ele esperava por isso há um longo e tenebroso tempo, em que aguentara a gozação dos torcedores adversários, vendo os rivais comemorarem títulos e mais títulos e ele, esperando, esperando, esperando que um dia aquela “zica” passasse e pudesse gritar de novo: “É campeão!”
Há muito que ele não ia aos estádios. Não só por conta do fato de que seu time, nos últimos tempos, já não frequentava mais as finais dos torneios, mas principalmente por causa da violência entre as torcidas. Seu Osvaldo era um homem pacato, que deplorava aquelas brigas entre torcidas organizadas, que volta e meia, acabavam em morte. Futebol, para ele, era esporte, era lazer, e não uma guerra, onde as pessoas descarregavam suas frustrações diárias, batendo umas nas outras.
Por isso preferia assistir aos jogos em casa, na companhia de uma cervejinha, no conforto de um sofá. Neusa, sua mulher, nem gostava de futebol. Por isso, quando ele assumia aquela postura de paxá, esparramado no sofá, com uma “braminha” na mão, ela sabia que era hora de enfurnar-se na cozinha, ou ir á cata de uma vizinha para conversar, por que, naquele momento, nem que a casa caísse, alguém conseguiria tirar o Seu Osvaldo daquele sofá.
Por isso o desespero dele naquele domingo em que seu time, finalmente, depois de tantos anos “na fila”, ia, finalmente desencantar. Bastava um empatezinho, um mero empatezinho, para que o grito de campeão, finalmente, saísse da sua garganta.
Mas e aquela agora! A televisão pifara. Sim. Poderia ir na casa da filha, mas aquele seu genro, além de folgado, era torcedor do time adversário. Além do “saco” de ter que aturá-lo, aguentar gozação, se o seu time perdesse,isso não. Podia ir também no bar do Toninho. Tinha uma TV lá no bar , e de vez em quando ele ia lá tomar umas cervejas. Mas lá também ele iria encontrar torcedores rivais. Não estava a fim de dividir seus momentos de alegria, ou tristeza, com bêbados debochados e de hálito pestilento, com aquele cheiro de pinga barata sendo soprado na cara dele.
Lembrou-se de um cartão que alguém lhe entregara um dia na rua. Revirou a gaveta do criado mudo á procura dele e achou.
“ Zanatas- Técnico em Eletrônica. Conserto qualquer tipo de televisão . Serviço rápido e garantido. 24 horas por dia.”
Pegou o telefone e ligou. Quinze minutos depois o sujeito estava batendo á sua porta. Era um sujeito grandão, de cara rosada e bochechas inchadas. Tinha cabelos cor de cenoura, e falava com um estranho sotaque que parecia alemão. Carregava uma enorme caixa de ferramentas que mais parecia uma mala de caixeiro viajante.
─ Minha televisão pifou justamente hoje, no dia do jogo mais importante do meu time ─ disse Seu Osvaldo. ─ Se você conseguir consertá-la, eu pago o preço que você pedir ─ completou.
─ Pagarr mesmo? ─ perguntou o técnico, com sua voz de erres arrastados.
─ Pago. Mas por favor, conserte essa merda ─ disse Seu Osvaldo.
O alemão era bom mesmo. Abriu a caixa de ferramentas e começou a trabalhar. Puchou umas placas de circuitos impressos para fora e trocou alguns componentes. Seu Osvaldo ficou impressionado com a competência do cara. Parecia que ele tinha naquela mala tudo que precisava para consertar uma TV. Como ele podia adivinhar o que tinha queimado e trazer exatamente o que precisava para consertar?
Faltava uns cinco minutos para começar o jogo quando ele ligou a televisão e as imagens do estádio apareceram na telinha. Seu Osvaldo olhou para ela e soltou um suspiro de satisfação como se tivesse acabado de ganhar um prêmio de loteria.
─ Prrronto ─ disse o alemão. ─ O senhorr está satisfeito?
─ Mas claro ─ disse seu Osvaldo. ─ Me diz aí quanto foi o seu serviço, para eu fazer o cheque.
─ Não aceitarr cheque─ disse o alemão.
─ Mas então como vamos fazer? Eu não tenho dinheiro em casa. E hoje é domingo. Os bancos estão fechados ─ disse seu Osvaldo.
─ Não terrr prroblema─ disse o alemão. ─ Pode assistirrr seu jogo. ─ Eu voltarr amanhã para pegarr pagamento.
─ Então tudo bem. Mas o senhor não disse quanto foi.
─ Não se preocuparr. Eu cobrarr barratinho.
E lá se foi o alemão, com sua enorme mala de ferramentas. Seu Osvaldo foi á cozinha, abriu a geladeira e pegou uma cerveja. Depois voltou para o sofá e começou a assistir o jogo.
O time do seu Osvaldo ganhou o jogo e foi campeão. Ele tomou umas seis garrafas de cerveja por conta da festa. Não aguentou o sono que deu nele e acabou dormindo logo após o término da partida. Nem assistiu a festa que a torcida fez.
Acordou lá pela meia noite, com a boca seca e a língua parecendo uma lixa. A TV tinha sido desligada. Provavelmente Dona Neusa tinha feito isso. Levantou-se, foi á cozinha e bebeu um litro de água. Não se lembrava de ter sentido tanta sede na vida. “Até parece que acabei de atravessar o deserto”, pensou.
Voltou á sala. Lembrou-se que a televisão tinha sido consertada. Eta alemão batuta, aquele. Salvara seu domingo. Não se perdoaria se justo no dia em que seu time do coração saia da fila, ele não tivesse podido assistir. Não cabia em si de contente. Amanhã era ele quem iria gozar os adversários.
Estava sem sono. Seria capaz de passar a noite inteira acordado, gozando aquela euforia de campeão. Resolveu ligar a TV. Lembrou-se que na madrugada costumava passar bons filmes.
Achou um velho filme em preto em branco. Lembrou-se que já vira aquela fita quando era adolescente. Era um filme de suspense que contava a história de um sujeito, casado há quarenta anos com a mesma mulher, que de repente descobre que a odeia, porque ela vive criticando seus modos de homem largado, sempre esparramado no sofá, só assistindo velhos filmes e jogos de futebol. Rememora, em poucos segundos, todas as vezes que ela o aborreceu, o humilhou, o espezinhou por causa disso, e ele, por conta de uma rotina e de uma vida construída ao longo de tantos anos, relevou essas humilhações, sem dar muita importância a todos esses pequeninos incômodos. Mas um dia, como numa explosão instantânea e inesperada, sua raiva vaza como água represada em uma barreira que de repente racha. Então ele pega uma faca, vai até o quarto onde sua esposa dorme a sono solto e retalha a infeliz, como se ela fosse uma peça de carne no açougue.
Ele se lembrava daquele filme. Por conta daquele assassinato, o personagem teve que cometer uma série de outros mais para encobrir o primeiro. Primeiro foi o porteiro do prédio que viu ele saindo de madrugada, com a mala onde ele havia escondido o cadáver da esposa. Depois foi vizinho que desconfiou do sumiço da esposa e porteiro. Depois o policial que começou a investigar o caso, e daí por diante.
Seu Osvaldo lembrava-se da terrível impressão que levou para casa depois de assistir aquele filme. A fauna que um homem cria no seu inconsciente sem se dar conta disso podia ser mais pavorosa e perversa do que alguém poderia imaginar. E de repente, sem nenhum aviso, sem qualquer sintoma, ela se manifestava numa explosão de insanidade. Foi o que acontecera com o personagem do filme. " Se você brigar com sua mulher porque o café da manhã está frio e o motivo for esse mesmo, então está tudo bem na sua vida", dizia o personagem, com um brilho estranho nos olhos e um sorriso diabólico nos lábios. Quer dizer: uma pessoa nunca mata outra por um motivo qualquer. Há sempre um monte de motivos que a leva a isso. Mas como todos estão encobertos na camada de lama do nosso inconsciente, a gente pensa que há um motivo específico para o nosso desvario. Mas ele é apenas a gota dágua. Ele é a âncora que detona a tragédia. Pense nisso na próxima vez que brigar com o vizinho, com a mulher ou com o sujeito que o fechou no trânsito...
Mas havia uma coisa estranha naquele filme, que o Seu Osvaldo não se lembrava de ter notado antes. Durante toda projeção, o ator não mostrava o rosto. As cenas eram filmadas em flash back, em tomadas de perfil, com mudanças rápidas de ambiente. Só no final, o rosto do ator era mostrado em um close especial, com todas as nuances de um semblante onde a loucura se estampava numa expressão tão cruel quanto assustadora. Porém, o que mais impressionou Seu Osvaldo foi ter reconhecido naquela horripilante máscara de demência o seu próprio rosto! Sim. Não tinha dúvidas. Aquele sujeito era ele!
Ninguém soube explicar o que aconteceu na casa do Seu Osvaldo na madrugada daquele dia em que o time de maior torcida do país conseguiu, finalmente, ganhar um campeonato que não vencia há mais de vinte anos. Tudo foi levado na conta da bebedeira. As seis garrafas vazias de cerveja, que foram encontradas na sala, justificavam tudo. Seu Osvaldo, que não era dado a beber muito, deve ter ficado embriagado e brigado com a esposa. Enlouquecido pela bebida, pegou uma faca e retalhou a mulher, como se ela fosse uma peça de carne no açougue.
Dona Neusa fora encontrada por volta das duas horas da tarde do dia seguinte, na cama, , praticamente sem uma gota de sangue no corpo, tanto eram os cortes e os furos que haviam sido feitos no seu corpo. Fora morta por volta das duas horas da manhã, surpreendida na sua própria cama.
Ninguém descobriu o que houve com o Seu Osvaldo, que parecia ter sumido do mundo. Foram inúteis todas as diligências feitas pela polícia para encontrá-lo. A única testemunha que o viu depois disso foi um vizinho, que afirmou tê-lo visto sair, pela manhã, por volta das seis horas, junto com um sujeito alto e forte. Era um sujeito grandão, de cara rosada e bochechas rechonchudas. Tinha cabelos cor de cenoura e falava com um estranho sotaque que parecia ser alemão. Carregava, pendurada nos ombros, uma enorme caixa de ferramentas que mais parecia uma mala de caixeiro viajante.
A polícia achou o cartão do técnico em eletrônica em cima da televisão. Era a única pista que tinham e ela foi atrás. Mas logo descobriram que o endereço e o telefone que constavam do cartão não existiam. Ninguém foi capaz de informar absolutamente nada sobre o tal senhor Zánatas, técnico em eletrônica, que se dizia capaz de consertar qualquer aparelho de televisão, rapidamente e com serviço garantido, atendendo 24 horas por dia. Nem foi encontrado qualquer registro do indivíduo, na Junta Comercial, na Receita Federal, na Prefeitura ou qualquer outro lugar onde as pessoas precisam se registrar para provar que existem. Parecia que o cara nunca existira. O caso foi arquivado, e o mistério do homem que consertava televisores e o sumiço do Seu Osvaldo, ainda causam espanto na cidade até os dias de hoje.