Conforme a Escada Ela Subia

"Conforme a escada ela subia

No alto, havia um homem que não existia.

Ele não estava lá agora

Ela queria, queria que ele fosse embora."

William Hughes

A luz oca da lanterna a perseguia inexorável escada acima. Era branca, fria e indiferente, mas a menina sabia que no momento em que aquele olho ciclópico vazio a encontrasse, queimaria como se fosse o sol.

Não conseguia se lembrar de quem a estava perseguindo, nem como tinha chagado à escadaria a fim de chegar ao único local seguro que a esperava no topo. O brilho gelado da luz ofuscava sua visão de modo que não identificava quem ou o que estava em seu encalço. A principio julgara ser uma voz conhecida a chamando, prometendo que tudo ficaria bem e que a levaria a seus pais. Mas a forma que a entonação passeava entre varias oitavas, desafinando e engrossando. Ouvindo ruídos gorgolejantes atrás dela e o hálito fétido que agredia suas narinas pelo escuro corredor de degraus. Ela preferiu continuar subindo.

Já devia ter chegado ao topo, eram apenas três lances tinha certeza. Já estivera ali muitas vezes, mas nada estava como se lembrava. As paredes, antes brancas, agora eram ocres como ferro enferrujado. Os degraus perfeitos em mármore, agora eram feitos de telas de arame grosso e irregular.

A lamparina que a menina carregava iluminava no máximo um metro a sua volta, um circulo de luz doente que emprestava um tom ainda mais deprimente às paredes desbotadas e degraus precários. O resto era breu.

Suas pernas ardiam, o acido lático inundava os músculos fazendo-os queimar. As coxas tremiam e os tornozelos gritavam pedindo descanso. Respirar era como engolir espinhos minúsculos que dilaceravam seu esôfago. Em um lugar em que só deveria haver quatro andares já subira degraus o suficiente para escalar um arranha céu. A luz da lanterna que a perseguia iluminava vários degraus abaixo, varrendo aquele espaço opressor de parede a parede.

Ela parou de súbito, o circulo de luz da lamparina revelou um par de pernas três degraus acima. Não conseguiu ver o dono daquelas pernas, mas a apreensão se tornou esperança quando reconheceu as calças e o par de sapatos. Era seu pai, só podia ser. Quem mais usaria um par de botas com aquelas manchas especificas? Ela pulou três degraus e abraçou aquele par de coxas, o alivio arrefecendo o interior de seu peito como uma lufada de brisa num dia grudento de calor.

O pai não a abraçou, ela apenas o ouviu perguntar numa voz mecânica

– está tudo bem querida? Tud...certinho...você...agooorrr... - na ultima palavra a voz se tornou grave e enrolada, como se a energia acabasse no momento em que se está ouvindo uma fita cassete.

Subindo o olhar aterrorizado para o rosto do pai notou a expressão vítrea. Os olhos fitando o nada atrás dela com um brilho de pupilas feitas de LED vermelho, igual aos bonecos do seu irmão. Linhas finas saiam de cada canto da boca indo até o queixo. Aquilo era um boneco.

Ela largou o abraço como se tivesse sido queimada. A lanterna atrás dela já iluminava os degraus muito próximos de onde estava. Continuou a subir ignorando a pontada logo abaixo das costelas devido ao cansaço. Mais acima encontrou outro boneco, desta vez de sua mãe. Um quarto da pele do rosto não existia, revelava um medonho esqueleto de metal e uma minúscula lâmpada no lugar do olho direito. Na metade de baixo do corpo, onde deveriam estar as pernas, havia apenas um pilar de metal cromado com uma maçaroca de fios pendurados. A cabeça do boneco mãe convulsionava, primeiro vagarosamente e de repente com rapidez impossível, ai parava bruscamente e, nesse momento, fitava a menina com um olhar misto de desespero e suplica, então o ciclo de convulsões recomeçava.

Sem saber por que continuava subindo, pois queria desistir e se entregar de uma vez a qualquer destino que a aguardasse sob a luz da lanterna perseguidora, tropeçou, a lamparina escapou de sua mão e rolou três metros pra frente. Não havia mais degraus.

A lamparina parou encostada a uma parede, o pouco que iluminava revelando o que parecia ser o batente de uma porta. A menina olhou para escada de onde seu perseguidor devia surgir a qualquer momento e notou que o cone de luz leitosa estava paralisado. Não havia mais os movimentos de varredura de parede a parede, tão pouco o movimento tremulo de alguém parado apenas segurando uma lanterna esperando sua vitima. Talvez a coisa que a perseguia tivesse apoiado a lanterna em um degrau e nesse momento se esgueirasse no escuro para pega-la. Talvez estive a poucos metros dela preparando o bote que acabaria com aquele pesadelo de uma forma ou de outra. Não, de alguma forma ela sabia que o que quer que fosse que a perseguia estava paralisado lá embaixo, como o boneco pai depois de dar tilt.

Virou-se para a luz da lamparina e caminhou receosa até poder alcança-la. Ergueu a fonte de luz acima da cabeça com o braço esticado, um arremedo medonho de Dora, a aventureira explorando uma caverna assombrada. A sua frente se revelava uma porta perfeitamente branca, a despeito da luz amarela que dava um tom ictérico a tudo que tocava.

Finalmente ela chegara à salvação. Conhecia aquela porta, estava exatamente como deveria estar. Até mesmo o numero 401 em ferro de tom acobreado fixado logo abaixo do olho magico estava lá, o 1 ligeiramente torto na diagonal.

A porta abriu devagar e ela ficou aliviada ao ver um rosto conhecido. O longo cabelo preto pingando como se tivesse acabado de sair do banho, o costumeiro miado desesperado do gato de estimação. Sua tia se abaixou para recebe-la com uma abraço.

A menina notou que sua tia segurava uma lanterna e seus olhos brilhavam luminosos dependendo do modo em que mexia a cabeça. Olhou pra trás pensando em fugir escada abaixo desta vez, sem saber se o que a perseguia voltaria a ativar quando voltasse para a escada. O desespero a invadiu quando notou que, iluminados pelo triangulo de luz mais forte que se desenhava no chão vindo do apartamento da tia através da porta aberta, os degraus não mais desciam, agora levavam para cima.

Eduardo Portela
Enviado por Eduardo Portela em 04/06/2019
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