Cadê Todo Mundo? - CLTS 07

— Fica com Deus, filho — disse o sr. De Ávila. — E se comporta, hein!

— Tá bem, papai. Tchau!

O garoto adentrou a escola e, já do lado de dentro do portão, acenou para seu pai, que seguiu caminhando pela grande e arborizada praça em frente à escola, rumo a seu trabalho.

O dia transcorria normalmente. Tudo meio parado no trabalho. O sr. De Ávila fumava um cigarro confortavelmente aconchegado em sua cadeira e com os pés esticados sobre a mesa. O relógio marcava 17h15 quando ele se deu conta de que estava atrasado para buscar seu filho na escola, "Nossa! O Ícaro sai às 17h! Preciso correr." Despediu-se da secretária e saiu.

Ainda da praça, pôde ver que não havia ninguém no portão da escola. "Hum... será que o garoto foi embora sozinho?", pensou. Conforme foi se aproximando, percebeu que não havia ali outras crianças, pais de alunos, professores, ônibus escolares ou mesmo os vendedores de pipoca que sempre estavam presentes nos horários de entrada e saída dos alunos. Estava tudo muito deserto. "Não é possível que estou tão atrasado assim." Verificou o relógio novamente e este marcava 17h29.

Tentou, sem sucesso, o interfone da escola, que estava quebrado. Tentou ligar para a casa mas o telefone não dava linha. Já estava preocupado. Bateu no portão no intuito de obter alguma resposta. Nada. Forçou o portão, que não se encontrava, de fato, trancado. Entrou.

Alcançando o interior da escola, viu que não havia ninguém. Para seu espanto, as coisas no lugar estavam um tanto quanto decrépitas. O pátio, abandonado e com mato alto crescido pelos vãos do envelhecido concreto; a pintura, gasta e descascada; a quadra, com as traves enferrujadas e completamente rachada; bem diferente do que se via do lado de fora. Ao entrar no prédio principal, passou pelo que parecia um dia ter sido uma secretaria. Cadeiras velhas, paredes emboloradas e sem reboco. Estarrecedor. À medida que percorria os corredores, mais apavorado ficava. Era uma escola abandonada. Mas como poderia ser? Deixara seu filho ali hoje mesmo...

Uma névoa branca pairava sobre o chão dos corredores. O que há minutos era um dia de sol, era agora um dia nublado, cinzento e frio. O silêncio incomodava. Não se ouvia pessoas, não se ouvia o cantar dos pássaros, não se ouvia a movimentação costumeira nas ruas circundantes. Tão grande o silêncio, que o barulho dos próprios passos soava ensurdecedor. Nunca prestara tamanha atenção em sua respiração como agora.

As coisas estavam confusas. Precisava encontrar seu filho. Acendeu um cigarro enquanto milhares de pensamentos passavam pela sua cabeça. "Ícaro vem a esta escola já há três anos. Todos semestres eu participo das reuniões de pais aqui. Como tudo ficou assim de repente?", se questionou. Mas, independentemente da estranheza da situação, tinha que encontrar seu filho.

Saindo da escola, viu que a praça estava deserta, assim como as ruas. A sorveteria que vizinhava a escola estava fechada. A banca de jornais da praça, idem. Notou que havia um carrinho de pipoca ao relento, do outro lado da rua. Se perguntou se aquilo ficara assim enquanto ele estava na escola ou se já estava anteriormente. Ele, tão envolto em seus pensamentos, nem mesmo percebeu seu arredor enquanto, atrasado, corria para buscar Ícaro.

Um carro estacionado próximo ao carrinho de pipoca abandonado lhe chamou a atenção. Além de ser o único nos arredores, o veículo figurava-se bastante familiar. Ao se aproximar, teve a impressão de ser o seu próprio carro, porém envelhecido, quebrado e largado ali. Abriu uma das portas e certificou-se: era mesmo seu possante. De qualquer forma não tinha as chaves consigo e não podia ficar perdendo tempo. Uma situação esquisita a mais não faria muita diferença a essa altura.

O sr. De Ávila correu por entre a praça, mirando chegar em casa o mais rápido possível e, lá, encontrar seu filho. Entretanto, a praça estava diferente, não era mais a mesma: agora, um lugar maior, com árvores grandes e secas, névoa pairando o chão, e muita neblina em volta. Os caminhos no interior da praça não mais existiam. Um chão de terra coberto por folhas secas e névoa pavimentava a superfície. Incapaz de decifrar onde estava, ele se perdeu. “O melhor é tentar seguir reto até encontrar a saída deste lugar” decidiu.

O silêncio angustiante o torturava. Os passos sobre as folhagens e a respiração ofegante eram seus companheiros.

Em meio ao absoluto silêncio, ouviu folhagens se mexendo à sua direita, há uma certa distância. A esperança e o medo se confrontaram internamente naquele momento. Titubeou por um instante, mas logo partiu em direção ao som que ouvira, afinal, era o único som, com exceção dos produzidos por si mesmo, que ouvira desde que apercebeu-se naquela situação insólita.

"Ei, quem está aí?", gritou. Nenhuma resposta. "Tem alguém aí? Estou perdido. Preciso achar meu filho." Nenhuma resposta. Se curvou com as mãos sobre os joelhos, em completo desalento. Então, novamente houve uma ação em meio as folhagens, dessa vez mais perto dele. Olhou para o lado, onde havia um leve declive, e avistou um gigantesco tronco de árvore caído, coberto for folhagens e trepadeiras que o tomaram ao longo do tempo e formaram uma espécie de abrigo. "Estou vendo você!", gritou o homem, de novo sem obter resposta. Ele caminhou vagarosamente até o tronco caído, e antes que pudesse decidir o que fazer, uma criatura saiu correndo do “abrigo”. Era um ser de baixa estatura, com pele roxa e em grande parte coberta por pêlos; as pernas pareciam ser ao contrário, como se os joelhos fossem virados para trás, e tinha pequenos chifres no alto da cabeça.

O sr. De Ávila não pôde ver o rosto da criatura, mas o que viu foi o suficiente para que seu coração pulasse uma batida com o susto. Ele se pôs a correr atrás do bizarro ser, que mas bizarro se tornou quando se curvou para frente e passou a correr usando pernas e braços — suas pernas invertidas faziam que se sentisse confortável correndo de quatro — conseguindo despistá-lo.

Após caminhar alguns metros, o homem pôde contemplar a rua novamente. Estava de volta ao mesmo lugar de onde partira, em frente à escola abandonada. Sentiu-se preso, como se não pudesse sair dali, como se não pudesse fazer algo para encontrar seu filho — e não estava errado. Sentou-se em um banco da praça, e antes que pudesse lamentar sua má sorte, notou alguém na sorveteria, em uma das mesinhas que ficavam do lado de fora — era um velho. Achegou-se e perguntou:

— Ei, você! Sabe o que está acontecendo aqui?

O velho não disse nada, somente o fitou com um olhar triste e sem vida.

Percebendo o olhar triste do velho, insistiu:

— Meu senhor, meu filho desapareceu... Todo mundo desapareceu. O que houve com a escola? O que houve com tudo por aqui!? O senhor não sabe?

— Meu amigo, isso é obra dele — respondeu calmamente o velho, apontando para o portão da escola. A criatura, a mesma que o sr. De Ávila havia perseguido há pouco, estava lá encarando os dois.

Agora ele pôde ver o rosto daquele ser bizarro. A própria encarnação do demônio! Os olhos amarelos fitavam os dois na sorveteria, enquanto o nariz de javali soltava fumaça. Os dentes para fora da boca ensaiavam um riso.

— Mas como? Por quê? O que ele fez exatamente? O que ele é exatamente? — questionou o sr. De Ávila — Estou confuso, isso...

— Olha, meu amigo — interrompe o velho —, se quiser voltar para o seu mundo e ter seu filho de volta, destrua-o! Ele é o mal, é o que tira as coisas de sua devida ordem.

No mesmo instante a criatura gritou com desdem, "Tchau, pai!", e acenou exatamente como Ícaro havia feito quando se despediu do pai mais cedo. Em seguida, deu uma risada monstruosamente provocativa e, à sua maneira estranha de correr, entrou na escola. O homem soube o que deveria fazer. Voltou o olhar para o velho, que lhe fez o sinal positivo com a cabeça e disse:

— Leva isso, meu amigo. Vai te ajudar — disse passando-lhe uma corda com sua mão deformada, como se tivesse sido corroída. — Agora vai, meu amigo. Vai e faz o que eu não fui capaz de fazer...

O velho, nesse momento, exibia um brilho no olhar.

O sr. De Ávila acendeu um cigarro, vestiu-se de coragem e determinação e partiu para sua missão. Logo que entrou no pátio da escola, ouviu a risada da criatura, que o provocava. Seguiu o som da risada e chegou na cantina. Ao cruzar a porta de entrada da cantina, percebeu a criatura correndo pelas paredes, como se fosse um lagarto. Corria de um lado para o outro, nas paredes e no teto, e fazia ruídos parecidos com o de um porco. Às vezes parava, encara o homem na porta e soltava uma de suas risadas.

A cantina, um tanto grande, só tinha uma porta de acesso. As janelas se encontravam todas fechadas com tábuas. "Vou trancar esse desgraçado aqui e pensar no que fazer. Não poderia lutar com ele...", pensou. Então, uniu as duas partes da porta de correr que dava acesso ao recinto e usou sua corda dada pelo velho para amarrá-la e mantê-la fechada, passando a corda por entre os vidros quebrados.

Depois de vasculhar a escola, encontrou uma sala de materiais, onde havia algumas ferramentas de manutenção. Num canto, entre duas prateleiras que formavam um ângulo perpendicular, avistou um pequeno galão. Estava vazio, mas lhe deu uma ideia. Pegou o galão saindo correndo dali, indo em direção à saída.

Uma vez na rua, correu até o carro estacionado do outro lado. Destampou o compartimento de combustível e constatou que o tanque estava cheio. “Boa!” Em seguida, abriu o capô do carro. “Isso!!!” exclamou. Sua ideia seria colocada em prática. Arrancou uma das mangueiras de combustível do motor do carro e a usou para encher seu galão.

De volta à escola, avançou imediatamente em direção à cantina. Se colocou em pé diante da porta e encarou a criatura, que estava no teto. Esta o fitou novamente, soltou um grunhido e lançou um vômito verde e ácido sobre uma das mesas de madeira velha, corroendo-a em grande parte.

Mostrou o galão de combustível para a criatura, que instantaneamente começou a bater nas tábuas que cobriam as janelas. Ela havia entendido bem a situação. O homem abriu a galão e espalhou o combustível por debaixo da porta. A cantina estava sendo timidamente inundada de combustível, timidamente, porém o suficiente para se incendiar.

A criatura se debatia contra as tábuas, conseguindo até arrancar algumas, mas as janelas tinham grades pelas quais nada maior que um gato seria capaz de passar.

As gargalhadas, agora, não mais vinham da criatura bizarra, mas, sim, do homem. Este acendeu um cigarro, deu uma tragada bem forte, demonstrando alívio e satisfação, e então atirou o palito de fósforo aceso dentro da cantina. O fogo foi se alastrando e ele gargalhava incessantemente. As mesas de madeira estavam em chamas, as tábuas das janelas começaram a queimar, e a criatura corria pelo teto sem direção. Grunhia feito um porco na hora do abate enquanto a fumaça a intoxicava. Fez isso até que não poder mais se segurar, caindo desacordada nas chamas que consumiam a cantina. O senhor, que agora se sentia livre para voltar para a casa e encontrar seu filho, se deleitava vendo tudo queimar.

Ao sair da escola, o dia estava claro outra vez. Atravessou rua e se sentou em um banco da praça. Ficou admirando as chamas levarem a escola abaixo.

*****************************

"Notícia de última hora! Incêndio em escola deixa dezenas de crianças mortas. O fogo teria começado na cantina, onde as crianças lanchavam. Por uma falha inexplicável, a porta, e único acesso à cantina, travou e crianças e funcionários ficaram presos. Os bombeiros conseguiram resgatar apenas uma criança com vida, o jovem Ícaro, de 9 anos."

TEMA: Dimensões Paralelas

DeVille
Enviado por DeVille em 31/05/2019
Código do texto: T6661483
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2019. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.