Ontem, no funeral do Haroldo, todos comentavam a mesma coisa: a causa mortis dele. O Nilton, que é médico, era o mais inconformado. “Hoje em dia”, dizia ele, “ninguém morre mais desse tipo de doença. Se morreu foi por desleixo. Dele e da família”.
Ele estava falando da tuberculose. O Haroldo havia morrido justamente dessa doença que já foi, em outros tempos, a maior parceira da morte. Era chamada de o "Mal do Século." Lembro-me de velhas charges dos meus tempos de criança em que alguns postos de saúde estampavam cartazes que mostravam uma velha esquelética, vestida com uma bata negra, portando uma foice nas mãos, com os dizeres: cuide-se: senão ela vai pegar você.
Se fosse hoje esses cartazes informativos seriam considerados de muito mau gosto e politicamente incorretos. Já eram nessa época, mas ninguém se dava conta disso, pois o objetivo da propaganda era mesmo causar impacto. Estávamos saindo da era Goebbels, e a publicidade não era uma ciência com consciência, como hoje se pretende que seja. Não é, nem nunca será, mas sempre se pretende colocar alguma racionalidade na irracionalidade humana.
De qualquer forma, aquele tipo de publicidade impressionava, não tanto pelos cartazes sinistros e mefistofélicos, mas sim pela quantidade de artistas e intelectuais que a tuberculose matava. Ela fazia com eles a mesma coisa que a AIDS andou fazendo há alguns anos atrás. A impressão que dava era que todas as “cabeças” e “sensibilidades” da época eram tuberculosos. Noel Rosa, Manuel Bandeira, Cruz e Souza, Castro Alves...
E havia as pessoas que a gente conhecia, que também acabavam morrendo dessa doença. Lembro-me especialmente da Dona Benedita. Eu tinha cinco ou seis anos, mas nunca esqueci a figura esquelética e pálida que todo dia de manhã ficava na janela do seu quartinho, esperando algum dos meninos do cortiço onde morávamos, passar em frente da janela dela. Então ela pedia para um deles ir na padaria comprar pão para ela. E quando o menino voltava com os pães, ela sempre oferecia um pãozinho para o garoto. Apesar de a maioria dos meninos daquela infecta vilinha não ter sequer um pãozinho para o café da manhã, ninguém aceitava o que ela oferecia. Era o medo de pegar a doença.
Ás vezes a Dona Benedita pedia para um dos meninos comprar picolé. Sempre dava dinheiro para trazer dois. Um para ela, outro para o garoto. Mas ninguém aceitava o picolé que ela tivesse botado a mão. Diziam, maldosamente, que ela gostava de lamber o sorvete antes de entregá-lo ao garoto. Ninguém nunca viu se ela fazia mesmo isso, mas todos juravam que fazia.
Dona Benedita era uma espécie de zumbi naquele cortiço. Havia cerca de dez casinhas de dois cômodos na vila, e cinco tanques para os moradores lavar as roupas. Mas quando Dona Benedita saia do seu cubículo para lavar as suas, dava a impressão que só ela morava na vila. Ninguém se atrevia a compartilhar os tanques quando ela estava lá. Ela talvez até gostasse disso, pois no fim das contas acabava tendo um tanque só dela, já que aquele que ela normalmente usava, a maioria dos habitantes da vila evitava usar depois. Principalmente porque diziam que ela costumava despejar no tanque, todos os dias de manhã, um urinol cheio do sangue que ela vomitava de noite.
Com os banheiros era a mesma coisa. Banheiro é forma de dizer. Na verdade eram privadas. Infectos quartinhos de um metro por um, com um buraco no chão, onde as necessidades eram feitas de cócoras. Algo assim como as privadas das cadeias que a gente vê hoje na televisão. A privada que a Dona Benedita usava era só dela. Ninguém ousava compartilhar.
Nunca vi uma pessoa mais solitária, mais triste e mais infeliz que a Dona Benedita. Aos meus olhos de criança, ela parecia a própria figura do cartaz que fazia a propaganda da prevenção da tuberculose. Esquálida, pálida, com aquele olhar sinistro e assustador, que nos fazia passar, pelo menos um cinco metros longe da sombra dela, com medo de pegar a doença.
Lembro-me do dia em que ela morreu. Foi um alívio na vila. Que eu me recorde, só uma das moradoras teve coragem de entrar na casinha dela para preparar o corpo. Foi a Dona Carmen, uma negra velha que também morava sozinha na vila. Dona Carmem era outra figura carimbada pelas pessoas do cortiço, porque todos achavam que ela era feiticeira. De fato, no quarto e sala que ela ocupava, tinha mais imagens e amuletos de candomblé que em qualquer centro de umbanda da cidade. E era sempre ela que era chamada para dar passes, fazer orações, receitar e fazer remédios para os doentes da vila. Eu mesmo ainda lembro daqueles fedorentos chás de erva-de-São João que ela me fez tomar para por para fora os meus vermes. Era cada lombriga que parecia cobra... E tinha os chás de alho para gripe, chifre de boi queimado para cólicas, picumã e teia de aranha para ferimentos, e por aí afora.
Foi a Dona Carmen que fez nascer a lenda da Dona Benedita. Pois ela espalhou pela vila que a velha tuberculosa tinha morrido com tanta mágoa dos seus vizinhos, que rogou uma praga em todos eles. Disse que todos iriam morrer de tuberculose, como ela, ou se não, ela mesma voltaria da tumba para sugar o sangue daqueles malditos que a condenaram a uma morte em vida. E como foi a Dona Carmen a última pessoa que assistiu seus últimos momentos, aliada a sua fama de macumbeira, a história pegou e as pessoas da vila perderam o sono por causa dela. Não foram poucos os que disseram ter visto uma figura pálida e esquelética rondando a vila de madrugada, e houve até quem a teria visto lavando roupa naquele mesmo condenado tanque que ela usava, dizem, para lavar suas contaminadas roupas e despejar o conteúdo fétido e virulento do seu urinol.
Essa história se perdeu no tempo e alguém que a tenha vivido certamente não se lembrará mais dela. No entanto, algumas coisas merecem ser registradas. A minha família se mudou desse cortiço cerca de um ano depois que a Dona Benedita foi enterrada. A bem da verdade, eu nunca a vi depois de morta. Também nunca acreditei que ela tivesse virado vampiro ou que a maldição que ela lançara sobre os moradores da vila tivesse algum fundo de verdade, embora tivesse sonhado várias vezes com ela, correndo atrás de mim, vestida com uma bata preta e com uma afiada foice na mão.
Acho que tudo que aconteceu depois foram apenas coincidências, daquelas que o romancista francês Emile Zola chama de significativas. Mas a verdade que o meu pai e minha mãe, ambos morreram de tuberculose. Meu irmão mais velho também. Com intervalos de vinte anos uns para os outros, em épocas que essa doença já não matava mais ninguém.
E tem outra coisa que dizem ser verdade, mas que eu não posso afiançar que seja, pois não vi e também não conheço ninguém que tenha presenciado esse fato. Eu ouvi essa história pela boca de um dos antigos meninos do cortiço, que encontrei por acaso uns quarenta anos depois. O nome dele era Geraldo. Formara-se em direito como eu e trabalhava no serviço público.
“Lembra-se da Dona Benedita, a velha tuberculosa que morava na vilinha?”, perguntou-me ele.
“Claro”, respondi. Veio-me à memória a velha história da vampira e da maldição que ela havia lançado sobre os moradores do cortiço. E também a lembrança dos meus pais e do meu irmão mais velho que morreram de tuberculose.
“ Pois dizem que quando os coveiros foram desenterrar os ossos dela para levar para o ossário encontraram o corpo da velha intacto e bem conservado, como se ela tivesse morrido no dia anterior. E o cadáver não estava pálido e esquelético como era quando ela estava viva, mas sim, com a pele rosada e viçosa, como se tivesse recebido recentemente uma transfusão de sangue.”
“ Meus Deus, que loucura as historias que essa gente inventa. Que fizeram com o corpo dela?” perguntei só para dar conversa, pois não acreditava em nada disso.
“ Dizem que chamaram um padre e ele derramou água benta em cima do corpo. E ele virou cinza na hora. Outros dizem que ele foi cremado.”
“ Cada besteira que essa gente inventa” disse eu.
“ É tudo bobagem mesmo”, respondeu ele. “A única coisa que me intriga nisso é o fato de o meu pai ter morrido de tuberculose. E isso numa época que essa doença era perfeitamente curável.”, completou o Geraldo, pensativamente.
“ Humm. Estranho mesmo”, murmurei, pensando nos meus próprios pais.
Lembrei-me dessa história porque o Haroldo, o amigo que estávamos velando, morava numa casa construída exatamente no lugar onde ficava o nosso velho cortiço. E antes dele, há uns cinco anos atrás, estive em outro velório, aqui neste mesmo lugar onde o pai dele, seu Artur, estava sendo velado. Ele também morreu de doença no pulmão. A propósito, o avô do Haroldo era o dono do terreno onde ficava aquele cortiço. Não sei do que ele morreu, mas desconfio.
Como diz o velho ditado, não creio em bruxas, mas que elas existem, existem. E como prevenção nunca é demais, qualquer tossezinha me leva, correndo, a um pneumatologista.