Cinzas
“Vince,
O momento finalmente chegou, muito mais tardiamente do que meu coração poderia agüentar, receio. Muitas estações se passaram enquanto eu ficava deitada imóvel, encarando a escuridão interminável em meu quarto durante as madrugadas insones, tentando me lembrar dos momentos felizes ao seu lado. E quando eu conseguia, ah, Vince, era como o paraíso. Meu coração se aquecia e até mesmo um sorriso se insinuava em meu rosto molhado, mas logo depois, impiedosa como uma tempestade, ela se mostrava. Ela, que vem minando minhas forças ao longo dos meses e me transformando em trapo encolhido, uma sombra rastejante. Ela, a dor proveniente da sua maldade, da indiferença de sua alma egoísta.
Ninguém ao meu redor poderia compreender, Vince, todos me olhavam tristes e tentavam me confortar com palavras sem sentido. Como eu poderia imaginar, havia visto aquilo que seria ao mesmo tempo minha razão de viver e morrer. Eu vi você, meu amor, Eu vi sua luz e logo soube que não encontraria algo assim em nenhuma outra pessoa. Você não poderia imaginar o quanto rezei, implorei e me contorci em agonia esperando que você houvesse visto o mesmo em mim.
Não há como adiar mais, Vince, o momento chegou.
Quem você pensou que eu era? Você realmente acreditou que depois de fazer tudo aquilo poderia simplesmente ir embora sem sequer olhar para trás? Bem, não importa mais, de qualquer forma, pois não há saída deste inferno no qual me encontro. Você não voltará, pelo menos não para meus braços. Não sou tola a ponto de acreditar em tamanha fantasia. Saiba apenas isto, Vince: tudo o que você me disse de mais doce ainda guardo em meu coração. Todos os olhares sinceros e profundos, todos os abraços carinhosos e acolhedores embaixo da sombra refrescante daquele lugar tão especial para nós. O calor destes sentimentos é eterno e queimará comigo para sempre enquanto minha alma existir.
Saiba que se um dia retornar não mais estarei aqui, pois o momento de desistir chegou. E se o paraíso for o lugar a mim destinado lá descansarei, eternamente deitada em seus braços olhando para o infinito azul do céu em seus olhos.
Com eterno amor,
Christine.”
Esta, claro, havia sido sua última carta, e se ela marcou o fim de seu inferno na terra definitivamente deu início ao meu. É impressionante o quão fácil tudo pode desmoronar e deixar para trás nada além de um mar de escombros e uma trilha de tristeza sem fim, e não há nada que possamos fazer até percebermos que dessa randômica convergência de infortúnios não há escapatória senão a morte.
Lá fora o rio rugia e o ônibus sacolejava enquanto serpenteava lentamente sua margem. O dia morria enquanto eu encarava as antigas palavras de Christine num papel amarelado e amassado devido ao intenso manuseio. Mas não era como um talismã ou amuleto da sorte. Aquilo era um lembrete, como uma cicatriz, para as escolhas equivocadas, para as palavras inadvertidas e para o cinza da existência. Logo não haveria mais luz solar para ler coisa alguma e não havia luzes elétricas naquele ônibus caindo aos pedaços. Eu não sabia qual era meu destino e havia sido assim nos últimos quatro anos. Apenas seguia em frente na esperança de acalmar meu coração, talvez achar algum lugar onde minha dor poderia ser curada. Até agora havia sido tudo em vão e quanto mais eu lia aquela carta mais meus olhos se apagavam. As pessoas me olhavam assustadas quando me viam, algumas vezes até mesmo com nojo. Não fazia uma refeição decente há meses e a única coisa que estava sempre em meu estômago era a acidez do café e do álcool.
Havia também uma foto, mas eu não me atrevia a olhar. Tinha medo de não suportar o aperto, o vazio que tomaria meu peito. Assim como acontecia com o dia lá fora, minha alma havia certamente encontrado seu crepúsculo e era apenas uma questão de tempo para a escuridão total. Não haveria luz, não haveria estrelas. Apenas tristeza e silêncio. Quando se parava para pensar era até engraçado, e se eu sorrisse, bem, então a loucura teria finalmente reivindicado algo que há muito tempo já lhe pertencia.
O ônibus sacolejou de repente e só então percebi os passageiros esperando à beira do asfalto. Aquele era um ponto particularmente inóspito da rodovia e parados em frente a uma trilha saída de um considerável matagal havia uma jovem mulher de braços dados a uma velhinha e um pequeno menino segurando o que parecia ser um caminhão de plástico. A aparência dos três não era das melhores e quanto mais próximo pior ficava. A velha tremia e parecia ter mais de cem anos e o rapazinho era muito magro, usava um chinelo velho, um short que um dia fora roxo e uma camisa branca encardida. Apenas a jovem parecia bem cuidada, tinha os cabelos ruivos amarrados em um belo rabo de cavalo e sua pele era linda, clara como marfim. Tinha belas curvas quase completamente escondidas sob seu conservador vestido de rosas vermelhas. Mas havia algo errado nela, algo em seus olhos castanho-esverdeados. Eu não sabia dizer se era impressão ou não, mas neles havia uma dureza intensa demais para uma mulher tão jovem.
Quando passaram por mim pude perceber que a velhinha definitivamente já havia visto dias melhores, ela parecia completamente desnorteada, caduca. Andava como um louco de algum manicômio que mal sabe o próprio nome e anda apenas por ser guiado. Um cheiro desagradável pairava como uma nuvem ao seu redor, “o cheiro da morte, talvez”, pensei. Atrás dela vinha a ruiva que se limitou a me olhar rapidamente e seguir em frente. Por fim o menino passou e fiquei feliz de ver seus olhos iluminados e suas feições inocentes. Tinha o cabelo bagunçado e as roupas sujas. Seu caminhão de plástico estava todo arranhado e faltando três rodas. E ainda sim havia razão para sorrir como ele o fez ao me olhar, botando a língua pra fora ao me ver sorrir de volta. Nesse momento desejei desesperadamente que a vida fosse gentil com essa ingênua criatura, que toda a felicidade que vi desaparecer ao longo de minha caminhada pudesse transbordar na dele.
Voltando a olhar pela janela pude ver uma casinha ao fundo, quase completamente oculta pelo mato em volta. Era uma construção modesta e sem perceber pus-me a refletir sobre a condição daquela família. Haveria mais alguém lá dentro ou apenas os três? Como faziam para ganhar a vida? Na verdade era uma casa meio assustadora por sua aparência descuidada, praticamente caindo aos pedaços. A madeira parecia podre e a tinta branca já havia desaparecido em quase todos os lugares. Tive a impressão de ver uma janela com o vidro completamente quebrado. Lembrava muito aquelas dos antigos filmes de terror que eu vira em minha adolescência, o lugar no qual morava uma família inteira de canibais enlouquecidos. Nesse ponto não pude deixar de rir de minha imaginação fértil.
Passados mais ou menos dez minutos vi com o canto dos olhos uma pequena cabeça me espiando ao lado da poltrona vaga à minha direita. Os grandes olhos negros do menino me fitavam temerosos e divertidos ao mesmo tempo, como se estivesse satisfeito em fazer algo que não deveria. O caminhão continuava apertado contra seu magro peito.
- Hei, William, pare de incomodar o moço! – Soou uma voz feminina lá de trás.
O menino olhou para trás mas não se moveu. Parecia tão curioso quanto indeciso sobre o que fazer. Ergui-me então um pouco na poltrona e disse virando para trás:
- Está tudo bem.
Ao ver meu sorriso a ruiva me devolveu um simplesmente deslumbrante, completamente diferente daquilo que eu havia visto em seus olhos minutos atrás.
Virei-me então para minha pequena mochila, uma velha companheira de viagem. Ela estava comigo desde meu primeiro ano viajando, presente de um patrão satisfeito no meu último dia como atendente numa loja de souvenires na beira da estrada. Este havia sido meu primeiro emprego como andarilho e havia durado cerca de um mês. Tirei de dentro minha velha gaita Hering e deixei que ele a observasse por alguns segundos. Levei-a até minha boca e comecei a soprar uma boa e velha canção dos Beatles.
William sorriu quase imediatamente e escutava hipnotizado enquanto seus olhinhos brilhavam. Quando acabou a canção passei a improvisar, como gostava de fazer nas noites em que mais me sentia sozinho, olhando para a lua e as estrelas. Assim que terminei vi em sua expressão a admiração pela gaita, como se ela fosse um tipo de objeto mágico. Aquilo me deixou feliz. Deixei que ele a pegasse e se visse na superfície espelhada. Ele ia levá-la à boca, mas parou de repente, olhando-me ansioso. Fiz que sim com a cabeça e seu sorriso logo retornou, sumindo em seguida enquanto ele soprava notas aleatórias no velho instrumento.
Minutos depois o ônibus já se encontrava na entrada da cidade e William, agora sentado ao meu lado, continuava a se dedicar à gaita, parecendo muito satisfeito com a barulheira que aprontava. Alguns passageiros olhavam incomodados, mas nem eu ou menino nos importávamos, eles que fossem pro inferno.
Na primeira parada a ruiva se levantou e trazendo consigo a velhinha parou ao lado do pequeno rapaz. Ele a olhou assustado, como se não tivesse percebido o tempo passar. Pude ver a tristeza quando ele percebeu que era hora de partir. Ele baixou lentamente a gaita e a olhou intensamente por dois ou três segundos antes de estendê-la de volta para mim. Satisfeito comigo mesmo eu disse:
- Fique com ela.
William arregalou os olhos e se virou para a linda ruiva.
- Tem certeza, senhor? – Ela perguntou.
- Claro, eu não levo jeito pra coisa, ao contrário desse rapazinho – disse enquanto afagava seus cabelos revoltos.
Ele sorriu como se tivesse ganhado na loteria. Levantou rapidamente e me abraçou forte.
- Obrigado – disse ele baixinho perto do meu ouvido.
E então ele se foi com sua família e pensei que nunca mais os veria. Foi quando o ônibus tornou a se movimentar que vi seu velho caminhão de brinquedo largado na poltrona ao meu lado.
***
Quando minhas botas beijaram a poeira no chão do centro da cidade o dia já havia morrido completamente. A temperatura começava a baixar e rajadas de vento ocasionais refrescavam o calor acumulado durante o dia. Não estranhei o silêncio e a desolação daquela cidade, já havia estado em algumas bem piores. Estranhei mais o fato de que não fazia nem idéia do nome daquele lugar. Parecia estar na rua principal e havia algumas luzes acesas nas casas antigas que distribuídas por todos os lados. Vez ou outra via vultos indiscerníveis movendo-se nas janelas ao perceberem meu olhar. Pareciam animais acuados, e, como qualquer um, temiam aquilo que não conheciam. Havia aprendido também durante minha viagem que a atitude mais prudente era evitar incomodar.
Havia também um mercadinho e um velho bar, o primeiro com algum movimento e o último com luzes amarelas fracas insinuando-se pelos vidros limpos das janelas. O letreiro acima da porta dizia simplesmente “Steve’s”. Chequei minha carteira e a situação não parecia tão ruim: 17 dólares e alguns centavos. Talvez fosse possível até arrumar um bom quarto para passar a noite. Mas isso ficaria para depois, estava com sede.
Assim que entrei no bar o típico cheiro de cigarros e cerveja velha invadiu meu nariz e dispararam algum senso doentio de nostalgia. Townes Van Zandt cantava baixinho ao fundo e o barman inclinava-se sobre o balcão apoiando o queixo nas duas mãos enquanto lia o jornal. O homem era bem grande e gordo e suava mesmo parado. Tinha apenas alguns tufos de cabelo espalhados aleatoriamente na cabeça, mas compensava isso com um grande bigode no estilo Leôncio, aquele azarado personagem do desenho Pica-pau. Mas tinha um rosto não de todo desagradável, feições duras e decididas.
Sentei em um dos bancos vagos ao balcão e coloquei minha mochila no chão. Leôncio me olhou rapidamente e de volta com os olhos no caderno esportivo perguntou:
- O que vai ser? – Tinha uma voz grossa e calma.
- Um chopp, por favor.
Ele se levantou pesadamente em direção às canecas, pegou uma, encheu-a em um dispositivo com o rótulo da Coors e colocou no balcão sobre um guardanapo de papel. Entreguei-lhe o dinheiro e matei metade da bebida amarga de uma vez.
Dei uma olhada ao redor e era um bar aconchegante, pelo menos enquanto estava vazio. O balcão era grande e havia várias mesas espalhadas exalando cheiro de produtos de limpeza. Parecia ser antigo também. As luzes baixas, a boa música e os cartazes de bebidas formavam o ambiente perfeito para se ficar bêbado em paz.
- O que posso conseguir para comer por aqui?
- Bem, posso lhe arranjar presunto e alguns ovos. – Disse Leôncio levantando os olhos do jornal.
- Por favor – eu disse sorrindo.
- Mais um chopp?
- Tudo bem.
Novamente ele se desencostou do balcão e já se virava quando voltou, dobrou o jornal e o guardou embaixo do balcão. Trouxe meu chopp e entrou em uma portinha e logo ouvi os preparativos para minha refeição. Precisava de algo no estômago antes de passar para as bebidas mais fortes.
Minutos depois ele apareceu com um prato e o colocou no balcão à minha frente. A aparência estava ótima, e provavelmente a gigantesca fome que eu sentia no momento colaborava para isso. Colocou ao lado do prato dois pequenos frascos contendo pimenta e sal. Abusei dos dois.
Enquanto Leôncio reabastecia minha caneca o bar continuava vazio. O relógio ao fundo apontava 8:15 e era quinta feira, mas se eu pudesse apostar com certeza diria que a população local não era grande fã dos bares e dos bebuns. Perguntava-me como o barman mantinha aquele lugar.
Quando terminei Leôncio retirou o prato e me entregou uma nova rodada de chopp. Talvez fosse hora de pensar em dinheiro. Parecendo ouvir meu pensamento, ao voltar da cozinha ele disse:
- Procurando trabalho?
- Principalmente se for fácil.
Ele sorriu.
- Bem, recebi um carregamento de bebidas e preciso de alguém para organizar as garrafas no depósito.
- Isso soa fácil.
- Mas sem abrir nenhuma delas.
- Ah, bem... – foi minha vez de sorrir.
Esticando uma nota de 20 na minha frente ele perguntou:
- E então?
- Claro, por que não?
Ele estendeu a mão:
- Meu nome é Carl.
- Vince.
- Venha comigo.
Terminei meu chopp e peguei minha mochila enquanto ele atravessava o balcão. Conduziu-me para uma porta discreta em um canto.
- Você é o dono do bar?
- Sim.
- Então por que o nome não é “Carl’s”?
Ele deu uma risada.
- Steve era o nome do meu pai, ele abriu este lugar.
A sala estava num breu completo quando entramos, e quando a luz foi acesa percebi que o trabalho não seria tão fácil quanto imaginei. Havia realmente muitas caixas e ainda mais garrafas encerradas em seus interiores. Era estranho estocar tanta bebida em um bar com tão pouco movimento. Enquanto pegava um carrinho para ajudar a carregar as caixas ele perguntou:
- Da onde você é?
- De muito longe.
Ele me olhou de baixo a cima rapidamente e não perguntou mais nada. Começou a me explicar como o trabalho deveria ser feito. Não era complicado, mas era cansativo. Logo depois ele se foi e eu fiquei sozinho naquela sala, o cenário do mais doce sonho de qualquer alcoólatra.
***
O tempo passava lentamente enquanto movia caixas, retirava as garrafas de dentro e as empilhava nos lugares corretos. Uísque, gim, conhaque, vodka, rum, uma dezena de rótulos diferentes de cervejas. Todas as minhas marcas preferidas figuravam naquele depósito mofado e eu sorria só de pensar que com os vinte dólares pagos por esse trabalho eu poderia provar todas que quisesse até cair bêbado em algum canto, de preferência em algum quarto. Mas se fosse diferente não haveria problema, não seria a primeira vez que provaria a refrescante noite ao relento.
Enquanto isso as vozes lá fora começavam a surgir e ficar cada vez mais altas. A maior parte era masculina. Ocasionalmente uma voz feminina se fazia ouvir, mas se meus ouvidos não estavam enganados era sempre a mesma. Uma sonora risada era constante e com certeza pertencia a Carl. As garrafas continuavam me olhando e o tempo escorria junto com meu suor. As caixas eram realmente pesadas.
Prestes a terminar meu trabalho ouvi poderosos rugidos cortarem o ar vindo lá de foras. Sons de motos, muitas delas, provavelmente estacionando em frente ao Steve’s. De longe eu podia escutar os estouros, a gritaria e os assovios. Motoqueiros pareciam sempre animados e pouco dispostos a se socializar com aqueles de fora de seu círculo de amizades, como pude constatar algumas vezes que os encontrei em minha jornada pelas estradas americanas. Alguns se dedicavam de corpo e alma a vagar debaixo do sol quente com uma mulher na garupa e uma garrafa na mão. Não eram de todo mal se você tivesse o juízo de se manter afastado.
Quando entraram, então, a algazarra foi total, transformando a conversa animada de alguns clientes em uma verdadeira competição de gritos, como se estivessem discutindo na bolsa de valores. A música aumentou e o barulho de vidro batendo no balcão e nas mesas também. Agachei-me e peguei uma garrafa de Cutty Sark. A luz fluorescente refletia-se branca na garrafa verde e o rótulo amarelo parecia me convidar a provar de seu calor. Oh, querida, espere por mim.
Terminado o trabalho fui até um pequeno banheiro no canto do depósito, abri a torneira e a água fresca foi como um sopro em minha alma. O cômodo havia ficado muito quente com todo o movimento que fiz e havia apenas um basculante no alto de uma parede. Lavei as mãos, o rosto e molhei meus cabelos mal cortados. Evitei me olhar no espelho e caminhei de volta para o balcão de Carl, o único local onde eu queria estar naquele momento.
Assim que abri a porta rumo ao cômodo principal a animação e o barulho me atingiram como uma onda. O clima do depósito parecia agradável comparado ao calor emanado daquele grande grupo de pessoas. Havia de tudo, homens, mulheres e algumas criaturas indefinidas. A maioria dos homens feia e maioria das mulheres bonita. Ainda era um mistério para mim como aquelas criaturas cabeludas, barbudas, gordas e fedorentas atraíam tantas outras que pareciam ter saído do paraíso.
Carl agora estava muito agitado, carregando sua considerável massa corporal pra lá e pra cá enquanto seu rosto se tornava cada vez mais vermelho. O vistoso bigode mexendo sem parar enquanto cuspia grandes pingos de saliva e sonoras ordens para um jovem cheio de espinhas e uma senhora de cabelos loiros encaracolados que bailavam graciosamente entre as mesas anotando e levando pedidos. Parecia ter surgido um cozinheiro também, pois o cheiro de gordura e hambúrgueres se espalhava por todo o local. Agora eu sabia como Carl mantinha o lugar.
A maioria dos homens usava coletes de couro com um símbolo tribal costurado nas costas. Era vermelho e transmitia agressividade com suas pontas afiadas. Algumas mulheres usavam o mesmo acessório, mas maioria não. Percebi, não realmente surpreso, que as mulheres loiras predominavam, como se fossem uma preferência comum. Todos conversavam animados e começavam a ficar bêbados. Havia uma grande mesa com muitos deles e mais três espalhadas com grupos menores.
Havia apenas dois banquinhos livres no balcão e já me encaminhava para um deles quando notei algo familiar na maior das mesas. Na cabeceira havia um homem muito corpulento, talvez até mais que o grande Carl. Usava jeans desbotados, camisa cinza e o colete negro por cima. Tinha os cabelos castanhos oleosos presos em um pequeno rabo de cavalo e grandes costeletas também castanhas, mas com alguns trechos branqueando. Não falava tanto nem tão alto quanto os outros, limitava-se a observar e sorrir meneando a cabeça. Apesar disso todos pareciam dirigir-lhe o olhar enquanto falavam. Estranhamente usava antiquados óculos escuros.
Mas o que era realmente familiar era a mulher de cabelos ruivos sentada ao seu lado, abraçada ao seu grosso pescoço e também sorrindo. Olhava para um dos motoqueiros gritando eufórico e gesticulando exageradamente, como se contasse um grande caso. Talvez fosse isso. Talvez ela tivesse sentido meu olhar sobre ela, pois seus olhos se desviaram do homem excitado e encontraram os meus. Sorri de leve e enquanto meu braço se levantava preparando um aceno vi o sorriso sumir de sua face e seu olhar se desviar. Abaixei o braço e segui meu caminho sentindo-me como um idiota, tendo a certeza de que havia sido reconhecido e ignorado.
Sentando-me no banquinho pedi:
- Hei, Carl, Cutty Sark, por favor.
Balançou a cabeça e logo retornou com um pequeno copo de dose e a garrafa verde.
- Deixe a garrafa.
Mais um de seus olhares demorados. Coloquei a recém adquirida nota de 20 no balcão e tomei o primeiro trago. Fogo em um lago de gelo. Eu havia mudado em questão de minutos e Carl havia percebido. Isso não era nenhuma novidade, eu estava louco.
Nos dias de antigamente, quando eu era apenas um adolescente descobrindo os efeitos do álcool, considerava o fato de minha visão periférica ir diminuindo aos poucos como uma das maiores vantagens da bebida. Proporcionava a oportunidade de me focar no que realmente importava e esquecer o inútil. Eu sabia como conseguir aquilo que queria e ficava satisfeito por isso. Obviamente havia as desvantagens, mas dificilmente superavam o prazer da vitória e da convicção.
Mas desde o suicídio de Christine este mesmo prazer havia se tornado o maior dos sofrimentos, pois agora minha visão diminuía e não mais se focava em algo à minha frente, mas voltava-se para o que ficava escondido e intocado em minha mente. Tudo de fora desaparecia enquanto tudo dentro desmoronava. A verdade era que eu não sabia por que bebia. A verdade é que eu não sabia por que fazia qualquer coisa. Com a morte daquela mulher que eu nem sequer amava a verdade se mostrou e consumiu qualquer ilusão de sentido ou esperança.
A morte era uma coisa muito triste, devastadora, mas não restava dúvida de que a vida era infinitamente pior.
***
Àquela altura não restava dúvida, o relógio acusava indiferente, as vozes se tornavam cada vez mais silenciosas. Os olhos começavam a se fechar e os fantasmas logo se agrupavam ao redor se sombras desgastadas como a do homem magro e despercebido bebendo uísque junto ao balcão. Àquela altura não restava dúvida: era tarde demais. Tarde demais para sorrir, tarde demais para se esquecer. Tarde demais para ascender, tarde demais para se redimir.
Em certas ocasiões, felizmente raras, durante a madrugada e o final de alguma bebedeira, vingavam em minha mente pensamentos tão tenebrosos que me faziam tremer. Minha alma se encolhia, eu via a verdade e o medo da loucura se instalava como um parasita em meu coração. Ela estava lá o tempo todo, cercando-me e sorrindo. Olhando-me com olhos opacos e vermelhos, esperando pacientemente como um santo budista. A velha desconhecida, a megera de olhos malignos e unhas carcomidas. A bela donzela de abraço doce e de amor singular. A loucura.
Não havia como ficar parado e em desespero me levantei rápido demais para quem havia bebido tanto. Cambaleei e me apoiei ao balcão. Ninguém havia visto. Os últimos clientes da noite se reuniam na última mesa ocupada e entre eles o próprio Carl soltava baforadas de um grande charuto e ria espalhafatosamente enquanto conversava com o homem de rabo de cavalo e óculos escuros, provavelmente o líder da horda de motoqueiros que seria a última clientela a pisar fora do bar. Apenas um dos ajudantes ainda caminhava de um lado para o outro levando as bebidas que eram requisitadas com rugidos alegres de homens completamente ébrios.
Faltava pouco para a luz do sol nascente banhar o sujo chão daquele lugar e havia ainda uma coisa a ser feita. Vagarosamente e mergulhado em uma consciência de quadros tortos caminhei até a mesa e fiquei parado por apenas um instante antes de dizer simplesmente:
- Olá.
Enquanto esperava sua resposta todos da mesa se viravam para me encarar. Ela me olhou com olhos arregalados e assustados meneando negativamente a cabeça, tentando avisar-me sobre algo que eu ainda não compreendia. A conversa cessou quando o grandão de óculos se virou também em minha direção. Seu rosto se movia, ora em minha direção e ora para a ruiva. Finalmente disse:
- Dê o fora, fedelho.
Sua voz devia ter sido agradável e poderosa em algum lugar do passado, mas agora apenas soava irritante e nojenta depois de tantos anos fumando. A conversa foi retomada como se nunca houvesse sido interrompida.
Na mesa havia uma verdadeira mistura de sujeitos estranhos, desde negros com tatuagens no rosto, brancos com moicanos coloridos e homens de rostos vis, que pareciam ser capazes de qualquer coisa por um senso totalmente desequilibrado de honra. Eram, sem dúvida alguma, homens perigosos e se lá eu ainda continuava parado, de pé sobre minha insignificância, definitivamente poderia culpar o álcool correndo livre em meu sangue e reivindicando meu senso de auto-preservação. Eu não era tão corajoso assim.
Foi uma questão de tempo até silenciarem novamente. Pude perceber que de sua cadeira Carl me olhava assustado, da mesma forma que a ruiva segundos antes. Obviamente tomavam-me apenas como um bêbado pelo modo como meu peso variava sobre as pernas e meus olhos se tornavam cada vez mais estreitos.
Dessa vez não foi o grandão que falou, mas sim o homem sentado à sua direita. No momento eu via apenas suas costas cobertas de poeira, mas quando se virou verifiquei sem surpresa o quanto era feio. Possuía vários piercings na sobrancelha e nas duas orelhas, assim como uma grande cicatriz atravessando todo seu rosto castigado, começando da têmpora esquerda e terminando abaixo da boca. Seu nariz era amassado, provavelmente devido a brigas, e os olhos negros injetados. Sua pele era extremamente oleosa, assim como seu cabelo revolto puxado para trás sem qualquer cuidado, tão sujo que parecia cinza. Não desperdiçou palavras e as proferiu já se levantando, usando seu melhor estilo de intimidação norte americano.
- Tá querendo morrer, idiota?
Seu empurrão foi forte, mas de alguma forma me equilibrei e utilizei o embalo para frente para acertar um direto em seu olho esquerdo. O golpe foi certeiro e vi no último instante antes do impacto a surpresa se espalhar por todo seu rosto. Foi arremessado de volta a mesa e quando caiu partiu-a ao meio, entornando todas as bebidas e fazendo todos se levantarem surpresos. Seus companheiros apressaram-se e tentavam levantá-lo, mas ainda estava atordoado demais para ficar de pé. Seus olhos raivosos logo se acenderam e acho até que senti um pequeno calafrio.
Foi aí que tudo desandou.
Rapidamente vieram andando em minha direção e foi simplesmente um massacre. Mesmo em condições normais não haveria nada a se fazer, mas pelo menos bêbado como eu estava a dor seria menor.
Quanta ingenuidade.
A dor foi terrível e o medo sem precedentes. Eu já sabia que seria morto. Fui empurrado violentamente e logo caí chocando-me violentamente contra a parte de baixo do balcão, caindo entre dois banquinhos com grande estardalhaço. Socos e pontapés vinham de todas as direções e chocavam-se contra praticamente todas as áreas do meu corpo, rasgando pele e trincando ossos. Mesmo durante toda a comoção pude ouvir os gritos desesperados de uma mulher e as falhas tentativas apaziguadoras de Carl. Sempre que abria a boca para tentar me salvar era calado com um berro raivoso de um dos meus algozes. Destruíam seu bar em razão da minha insolência e burrice, e estranhamente aquilo era o que mais me chateava naquela situação toda.
Logo comecei a sentir o líquido quente escorrendo de algum lugar em minha cabeça e sentia a visão escurecer. Nem conseguia mais me mover. Foi aí que pararam a surra.
Meu queixo jazia apoiado em meu peito e praticamente não enxergava mais pelo inchaço em meus olhos. A dor era tanta que passava despercebida, e sabia que aí estava o ponto inicial da morte. Eu sentia meu rosto mole, como se sua estrutura houvesse sido remodelada. Meu peito ardia e as algumas costelas recolhiam-se em agonia silenciosa partidas em vários pontos. Tudo isso não bastava como punição por meus pecados, pelo menos assim eu achava. Eu não me importava mais, estava cansado demais.
Lembrei-me então do que queria dizer antes e procurei minhas últimas forças para fazê-lo.
- Eu... Eu... apenas... queria...
Seria impossível. A dor agora irrompia como se estivesse furiosa comigo por minha estupidez. E com certeza eu não poderia duvidar de sua razão.
Minha velha bolsa encontrava-se a alguns centímetros, assistindo calmamente enquanto eu era aniquilado. Era uma boa bolsa aquela, tão pacífica e humilde em seu plástico cinzento, feliz em sua inanição como eu nunca poderia ser em toda minha razão reduzida a pó pela bruta realidade da existência.
Estiquei o braço vagarosamente para alcançá-la e estranhei a falta de movimento dos motoqueiros. Eles olhavam impassíveis os últimos atos sem sentido de uma vida sem sentido prestes a se apagar. Puxei-a e abri seu zíper. Quantas vezes eu havia feito aquilo?
Finalmente minha mão tocou aquilo que eu procurava. Várias pistolas eram apontadas para mim e o cérebro daqueles homens idiotas finalmente havia funcionado e agido com desconfiança. Mas o que tirei de dentro de minha velha companheira não era nada letal, nem mesmo perigoso. Era uma rara fonte de alegrias verdadeiras e inocentes brilhando corajosamente azul num mar de sombras. Quando o estendi a mulher ruiva colocou as mãos sobre a boca e seus olhos se tornaram marejados.
- Oh, Deus... – ela disse simplesmente.
Meu braço desistiu e deixou rolar no chão um velho caminhão de brinquedo, agora mais rubro que azul.
Aquilo era o fim, felizmente ou infelizmente, não sabia dizer. Não havia como evitar, por mais que eu desprezasse a vida, o medo da morte ainda era uma força muito poderosa em meu coração. Avolumava-se como um buraco negro em meu peito e senti uma verdadeira vontade de rezar, o que não fazia há anos.
O líder da gangue de destacou e se agachou em minha frente. Regurgitei um pouco de sangue proveniente de órgãos rompidos em suas botas de couro jacaré. Ele simplesmente olhou e devolveu a cusparada diretamente em meu rosto. Um sorriso se precipitou em seu rosto enquanto tirava da bainha em seu cinto uma grande faca de caça. O final perfeito: seria simples e dolorosamente estripado como um porco.
Foi então que ouvi. Ouvi o grito que me libertaria e me devolveria à vida.
Não pude ver exatamente como tudo ocorreu, minha visão se apagava e se acendia, oferecendo todo o espetáculo sob a ótica de cenas desordenadas.
Após um grito agudo a mulher ruiva se engalfinhou com seu namorado e nenhum dos motoqueiros conseguiu reagir, provavelmente surpresos pela tamanha impossibilidade de algo como aquilo ocorrer. Mas a imobilidade durou apenas alguns segundos, pois logo vi braços se esticando e a fraca criatura com lágrimas nos olhos sendo puxada como uma boneca de trapos. Da coxa direita do Grandão despontava como uma Excalibur de menor escala a faca de caça com a qual ele pretendera me matar.
Chorando copiosamente a mulher me olhava com olhos cheios de medo e isso foi a última coisa que vi antes de tal noite tenebrosa terminar.
***
Quando despertei encontrava-me praticamente do mesmo jeito de quando desmaiei, com a única diferença de estar deitado. A dor era terrível e até mesmo respirar constituía a pior das torturas. Havia movimentação do lado de fora do bar e eu podia ver dois policiais provavelmente interrogando Carl e via também luzes vermelhas e azuis girarem alegremente por todo o cômodo. Provavelmente esperavam por alguma ambulância para me levar dali.
O dia já havia nascido completamente quando comecei a me arrastar sorrateiramente pelas portas do fundo, e se respirar já era uma tortura não havia palavras para definir esse titânico esforço. Mas eu sabia que havia algo errado, as coisas não poderiam terminar bem para aquela mulher depois do que ela havia feito. Se eu quase havia morrido por socar um motoqueiro o destino dela com certeza seria muito pior.
A porta pela qual saí levava a um beco sujo e fedorento. Um dos clientes da noite anterior dormia em uma poça de vômito ali mesmo, encostado em uma lata de lixo. O ar estava muito frio e a paisagem silenciosa com a qual me deparei parecia surreal pelo contraste com tudo que havia ocorrido na noite anterior. Era estranho que pudesse haver coisas tão opostas em apenas um mundo. Com toda aquela paz era impossível imaginar desgraças ou tristezas. Os passarinhos cantavam em alguma língua perdida e todos os outros sons ficavam para trás enquanto eu corria da melhor maneira possível pelo mesmo caminho que havia percorrido de ônibus no dia anterior.
Não encontrei ninguém durante o trajeto e agradeci por isso, minha aparência era lamentável e qualquer um que me fitasse correria assustado. Eu mais parecia um zumbi saído de algum filme de terror de segunda. O esforço que despendi durante o caminho foi algo inimaginável e nunca sentido antes por mim, mas eu não queria parar. Eu não podia parar antes de saber.
E logo eu soube: a fumaça escura podia ser vista da estrada, assim como o barulho das motos disparando ao longe. Os homens gritavam... gritavam alegres e satisfeitos.
A passagem pela trilha foi vagarosa, eu não queria mais ver o que se encontrava em seu fim. A casa velha e caindo aos pedaços não existia mais: em seu lugar havia incontáveis línguas de fogo lambendo ansiosas por queimar o céu. Eu olhava inexpressivo para aquela tragédia, o Magnum opus da justiça divina. Toda uma família agora estava ali, transformada em cinzas junto com seus mirrados móveis e esperanças. A gaita dada como presente estava lá, no meio dos escombros, refletindo a luz de um sol doente e deslocado, ecoando sonhos para sempre perdidos em um raio branco ofuscante.
Retirei de meu bolso uma carta e uma foto, assim como um caminhão azul manchado de vermelho de minha bolsa. Agachei-me rangendo ossos e joguei tudo no fogo, como se isso fizesse alguma diferença.
Era hora de voltar para casa.