O quanto estava para sempre perdido

Ainda não havia se passado nem uma hora quando senti o tênue fio de minha paciência prestes a se romper violentamente. Aquela faculdade era nojenta, seus alunos fediam. Todos tinham aquele olhares muitas vezes chamados de brilhantes, mas na realidade pouco mais que um ligeiro retardo mental. Eu sentia a hipocrisia e a bajulação flutuarem lentamente por toda a sala e finalmente pararem ao meu lado, como se obtivessem um supremo êxtase em atormentar aquele que mais as odiava. As paredes começavam a se tornar ameaçadoras e eu me sentia como um criança claustrofóbica, suando e com um irrefreável desejo de gritar e sair correndo sem olhar para trás.

- Ei, Johnny, está tudo bem?

Era Robert que me chamava. Provavelmente a única amizade que eu cultivara naquele campo social desolado. Ele era um cara legal, pobre como eu, mas muito mais inteligente. Era um homem marcado para o sucesso. Eu, por outro lado, era um homem estigmatizado com o fracasso agressivo de tantos anos a minar minhas forças. Bem, eu não poderia negar que era um belo resmungão na maior parte do tempo.

- Por enquanto sim, mas não garanto que continuará assim daqui a alguns minutos.

Ele exibia um rosto confuso, meio sorridente, meio preocupado, como se não soubesse se eu falava sério ou apenas brincava com sua ingenuidade. O que também acontecia na maior parte do tempo.

O problema é que eu me sentira dessa maneira por toda minha vida quando se tratava de salas de aula, mas ultimamente a coisa havia saído dos trilhos. Minha mente simplesmente não suportava mais aquelas pessoas perante o equivalente a um bando de macacos gabando-se de um conhecimento equivalente a pouco mais que a tabuada de cinco. Todos sorriam, todos aplaudiam, e, como se já não fosse suficiente, se surgisse algum questionador, mais ladainha era vomitada no ambiente, fazendo até mesmo com que o professor já não parecesse tão idiota assim. Era um ciclo vicioso, onde pretensiosos disparates davam origem a cômicos absurdos. Ninguém sabia o que se perguntava, ninguém entendia o que se respondia. No começo eu conseguia ver o lado engraçado da situação, agora a única coisa que eu sentia era o fio prestes a se romper.

Numa última tentativa peguei minha caneta da carteira e a apertei com força, tentando me concentrar apenas nisso, como se esse simples ato fosse tudo o que restara no mundo. Bem, obviamente essa patética empreitada não foi de valia alguma, pois a voz do Velho Bode continuava a penetrar em meus ouvidos como um choro de bebê mimado. Aquela voz arrastada e irritante já me assombrava até mesmo em sonhos.

O Bode Velho era um homem magro e careca, usando sempre um terno verde musgo e gravata marrom e despejando lições de sociologia nos desavisados alunos que com um pouco de perspicácia se perguntariam como aquele senhor de barbicha e olhos caídos tinha conquistado lugar como professor numa universidade se nem mesmo o requisito básico ele preenchia. Ele não conseguia nem mesmo transmitir conclusões de outras pessoas. Formular suas próprias então? Quem sabe em outra vida. Eu o considerava um sádico e o único momento divertido em sua aula era aquele no qual eu me imaginava socando sua boca até ela se transformar em algo parecido com massa de tomate e depois fazendo o mesmo com sua cabeça ao pisoteá-la.

Nesse momento ele provavelmente notou meu olhar intenso em sua direção e retribuiu com uma discreta risadela. Que belo espetáculo era o ódio mútuo.

- E então, Sr. Baker, o senhor parece ter algo para compartilhar com a turma.

Ah, sim, isso sem dúvidas estava correto. Eu queria compartilhar com aqueles infelizes o quanto aquele velho era desprezível, o quanto eles eram desprezíveis e o quanto nossas vidas eram desprezíveis. Queria compartilhar a frustração na qual eu me afogava naqueles momentos em que uma compreensão superior e felizmente fugaz lampejava em meu coração me dizendo que a vida dessa forma não passava de um desperdício diante do esplendor de tantas outras oportunidades pelo mundo afora. Tantos pensamentos e tantos sentimentos impossíveis de serem transformados em palavras e ainda sim tão intensos que era impossível calá-los.

Bem, no fim era tudo perda de tempo e eu me cansava. Cansava perante a mera possibilidade de tentar me explicar. Não se ensina matemática a cachorros.

- Não. Não tenho.

O Bode sorriu novamente.

- Bem, isso já era algo a se esperar de um aluno que nunca conseguiu mais do que um C na minha matéria. Espero ver mais esforço da sua parte, Sr. Baker, pois odiaria ter que reprová-lo.

Bode velho, Bode Velho, seu demônio, preciso vê-lo morrer neste momento. Preciso ver suas entranhas espalhadas pelo chão.

Peguei minha mochila e me levantei rapidamente enquanto o Bode retomava sua falação sobre alguma coisa que não me interessaria nem em um milhão de anos. Seus olhos se pousaram em mim e enquanto atravessava a porta pude ouvi-lo dizer:

- Pobre ignorante.

Fiz uso do meu direito ao silêncio.

***

Eu subia cada degrau vagarosamente, como se caminhasse para minha própria execução. Rangiam sem parar sob meu peso como se choramingassem por tão penoso destino. O prédio onde morava era antigo, com as paredes mofadas e encanamento barulhento. Possuía também um cheiro bem característico, difícil de descrever, de certa forma agradável, carregado de tantas memórias construídas tendo como pano de fundo aquele prédio e aquela rua, palco de tantas alegrias que agora não passavam de pó viajando pelas esquinas da eternidade. O tempo passava como uma violenta tempestade e não deixava nada de pé: muralhas, princípios, sentimentos, castelos de areia e coroas.

Aquele com certeza era um dia melancólico para mim, como costumava acontecer quando um céu cinzento e um vento gelado davam vida ao palco sobre o qual eu atuava. Estávamos no inverno e cada vez mais meu coração se enterrava em gelo.

Os vizinhos espalhados pelos corredores não pareciam muito melhor, mas havia um motivo para isso. Muitos ainda estavam de luto pelo pequeno Jimmy, morto a menos de uma semana ao cair da sacada de sua casa. Ninguém sabia dizer ao certo como aconteceu, o menino estava sozinho em casa como ficava sempre há pelo menos dois anos. Ambos os pais recebiam pouco e gastavam muito com a educação do filho, e por isso trabalhavam duro. Com apenas oito anos de idade Jimmy era um menino cheio de vida sempre correndo pela rua junto com sua turma de amigos. Várias vezes o vi saltando pelos corredores se imaginando como algum herói dos seriados de TV. No fatídico dia sua mãe chegou do trabalho um pouco mais cedo que o normal e chamou pelo seu nome várias vezes até ver a porta da sacada no quarto do menino aberta. Ao olhar para baixo não pôde reprimir o grito que assombraria a memória dos moradores pelos muitos anos a vir.

Logo cheguei até a porta de meu apartamento. Já podia ouvir minha mãe cantando baixinho lá dentro. Girei a chave e entrei.

- Olá, filho.

Ela nem se virou para olhar, estava ocupada colocando uma lasanha no forno. O almoço logo estaria pronto.

- Oi, mãe. Como vão as costas?

- Bem melhor, como pode ver – disse ela se esticando com as mãos na cintura.

- Tem tomado os remédios?

- Claro, claro. Assim como o Dr. Andrews e você ficam me dizendo para fazer.

Ela continuava sem me olhar. Ela não estava tomando os remédios.

Fazia um ano que meu pai morrera vítima de um fatal acidente enquanto dirigia sua Harley 883 a 180 quilômetros por hora e completamente alcoolizado. Eventualmente perdeu o controle e não pode fazer muita coisa para evitar a colisão contra o pára-choque de um caminhão. Não sobrou muito do homem que um dia me ensinara a tabuada e me levara para assistir os jogos dos Lakers quando os paramédicos chegaram e o encontraram na beira da estrada. Secretamente eu acreditava que não foi um simples acidente. Em seus últimos dias meu pai se tornou um homem silencioso e cheio de sorrisos tristes. Talvez aquela tivesse sido a única solução encontrada depois de quarenta e dois anos de procura.

Não demorou muito para os primeiros sintomas de uma profunda depressão se manifestarem nas atitudes de minha mãe. Havia dias nos quais ela nem saía da cama e chorava silenciosamente como uma criança com medo do bicho papão. Respondia a qualquer pergunta com um mero “está tudo bem, John” e algumas vezes “está tudo bem, Ralph”, o nome de meu pai. Em alguns outros, porém, ela acordava muito disposta e falava pelos cotovelos sobre qualquer assunto no qual surgisse no decorrer do dia. Mas eu via além daquela encenação, via naquilo apenas uma vã tentativa de esquecer.

Não havia muito a ser dito. Peguei uma banana na mesa e fui para o meu quarto. Logo eu precisaria estar pronto para o trabalho.

***

Meu emprego consistia em cinco horas ininterruptas empacotando compras de clientes insatisfeitos e arrogantes. Os malditos esperavam apenas por uma oportunidade de rebaixar ainda mais os humilhados deixando-os desesperados muitas vezes desculpando-se por coisas que nem de longe poderiam ser sua culpa. No meu caso apenas um pequeno rasgo na sacola bastava para ouvir uma série de impropérios de toda espécie. Era uma temporada mal remunerada no inferno. Isso sem falar quando algum dos idiotas da faculdade aparecia por lá para comprar cerveja e cigarros. A maioria me odiava e sempre arranjavam um jeito de me atormentar. Seja por reclamações sobre grosseria ou sacolas rasgadas, o cliente tem sempre razão.

Estávamos numa segunda feira e o movimento estava devagar, graças ao bom Deus. Nada de ordens desnecessárias do gerente Lloyd nem pressão pelo bem do dinamismo na hora das compras. O sol ocasionalmente surgia e entrava preguiçosamente pela janela realçando as cores dos vegetais e trazendo consigo um bem-vindo calor e pensamentos mentirosos sobre a vida não ser tão ruim quanto parece. Lá fora empresários e traficantes passavam caminhando rapidamente olhando seus relógios e falando ao celular. O mundo seguia freneticamente enquanto todos ficavam loucos ou sem esperança sobre qualquer coisa.

- Está tudo bem, Johnny?

Já haviam feito essa pergunta hoje, mas desta vez foi muito melhor. Quem perguntava era Karen, a linda garota sentada ao caixa. Seria impossível não sentir um frio na barriga ao olhar para seus lindos cabelos loiros entrelaçados numa longa trança descendo até sua cintura. Seus olhos eram escuros e fundos como um poço, e nesse poço eu me jogaria e me afogaria sem pestanejar. Eu nunca havia tentado nada, pois era impossível que houvesse uma chance. Ela era bonita demais para mim e eu costumava suar frio só de pensar em falar com ela.

- Oh, sim, nenhum problema. Apenas pensando.

Ela sorriu.

- Uma moeda por seus pensamentos – disse ela, abrindo o caixa e exibindo o dinheiro lá dentro.

Oh, Deus, além de linda era engraçada. Eu sorri de volta, não sabia o que responder. O rosto de Karen ficou sério e ela disse:

- Sério, Johnny, você tem estado muito diferente nos últimos dias. Eu sei sobre o acidente, mas você precisa ser forte por todos que o amam e precisam de você. Não pode deixar a tristeza vencê-lo.

Novamente, a situação era muito mais complicada. Eu não poderia explicar.

Nesse momento tive a certeza que em meu rosto se espalhava um sorriso triste exatamente como os de meu pai pouco antes dele partir.

- Obrigado, vou tentar.

Ela continuou me olhando intensamente, desejava dizer algo mais, mas provavelmente não havia a intimidade suficiente entre nós para tal. Sorriu, então, e se virou para atender um senhor com longos cabelos brancos, óculos escuros e calça camuflada. Um tipo cômico, eu diria.

Há muito tempo eu deixara de ter esperanças de um dia ficar com Karen. Seu namorado havia aparecido no mercadinho uma vez e na ocasião ficou muito claro o afeto de ambos. Eu não poderia competir, nem mesmo me considerar como uma ameaça para o homem forte e bonito que apertara minha mão com tanta virilidade me chamando de “irmão”. Irmão! Essa é boa. Nem em um milhão de anos.

- Johnny! – Karen me chamou baixinho.

Quando a olhei percebi o quanto eu havia me distraído: todos os produtos do senhor estavam ainda espalhados esperando por alguém para empacotá-los. Ele me olhava e não era possível ver sua expressão devido aos óculos escuros. Inconscientemente eu já rezava para que não houvesse reclamações ou senão teria de dar adeus à tranqüilidade do dia.

Dessa vez fui atendido. Ele simplesmente pegou as sacolas e partiu.

Karen tentou parecer irritada, mas sem muito sucesso. Ela era legal demais para isso. Seu celular então apitou e ela o pegou rapidamente. Meus olhos se desviaram para um ponto qualquer. Eu não queria ver o sorriso apaixonado em seu rosto, a não ser que o sorriso fosse para mim.

***

Já passava das seis enquanto eu tirava meu uniforme azul do mercadinho e guardava em meu armário. Peguei o que deixara lá antes do início do expediente e estava prestes a sair quando uma foto caiu de minha carteira. Na verdade era “a” foto, pois não levava mais nenhuma comigo. Era uma imagem de um dia esplendoroso como poucos, nos quais eu, meu pai e minha mãe fomos assistir a uma corrida da NASCAR. Meu piloto favorito não venceu, mas não fazia muita diferença. Eu estava entre meus pais, segurando um cachorro quente em uma mão e algodão doce na outra. Todos sorriam verdadeiramente, todos estavam verdadeiramente felizes. Era uma memória aconchegante e ao mesmo tempo tão desoladora. Aquilo tudo havia ficado para trás e era impossível vivenciar aquela sensação novamente, era no que eu acreditava. Meu coração sabia e minha alma se retorcia ao pensar no quanto estava perdido para sempre. As coisas não deveriam ter tomado o rumo que tomaram.

- Johnny? Oh, Johnny...

Eu não havia percebido Karen entrar na sala e tampouco minha vista embaçada. As lágrimas haviam rolado furiosamente pelo meu rosto lívido e agora molhavam minha camisa. Karen me abraçava e também chorava, molhando meu pescoço sem perceber.

- Está tudo bem, Johnny, eu estou aqui.

Tudo aconteceu muito de repente e eu estava completamente desorientado, mas meus braços agiram por conta própria e se fecharam na cintura daquela tenra criatura enquanto eu afundava meu rosto em seus cabelos. Eu ainda chorava silenciosamente e ela me apertava forte. Eu poderia ficar ali para sempre. Se havia algum significado para a vida ali estava ele, escondido naquele ato tão comum e no sentimento tão puro que eu encerrava em meu peito. Tão lindo e tão misterioso.

Não sei dizer o quanto ficamos lá parados nem quando minhas lágrimas pararam de cair. Quando nos afastamos ela me olhava diretamente nos olhos, nem um pouco constrangida com tudo aquilo. E foi então que ela disse:

- Escute, por que não saímos hoje para conversarmos melhor?

Apesar de toda a situação quase não pude impedir meus olhos de se arregalarem. O frio na barriga retornou, mas com ele uma chama de esperança se acendeu.

- Claro. Eu conheço um bom lugar. Mas seu namorado não se importa?

- Eu não estou mais com o Steve, mas conversaremos sobre isso mais tarde – ela sorriu. – E então, onde e que horas?

***

Finalmente havia um motivo para sorrir e agora um pensamento figurava em minha mente como ouro puro. Karen. Era a esperança de um tolo, eu sabia muito bem, mas ainda sim era esperança. Minha parte pessimista me alertava, dizia para não me entregar tão prontamente, mas dessa vez eu não ouviria. Estava cansado de pessimismo. Poderia haver ali um novo começo, poderia haver ali uma fonte de novas memórias tão felizes quanto as de antigamente e poderosas o suficiente para afugentarem toda a dor das atuais.

Ainda na calçada em frente ao meu prédio vi um caminhão do correio parado e um homem descarregando uma caixa bem pesada de sua parte traseira, como denunciavam as veias protuberantes em seu pescoço e seu rosto vermelho.

- Hei, amigo, precisa de uma ajuda?

Ele mal conseguiu responder:

- Nã.. Não, obrigado. Vou deixar logo ali.

Dei passagem para não atrapalhar mais ainda o serviço do pobre entregador.

Em seguida, enquanto passava pelo hall vi a Sra. Adams agradecendo e assinando um formulário. Ela sorriu e me cumprimentou.

- Boa tarde, Johnny. Como vai sua mãe?

Ela era gorda. Gorda demais. Tinha os cabelos brancos enrolados em incontáveis rolinhos e usava uma camisola com desenhos de flores. Suas pantufas eram cinza assim como o gato que se enroscava em sua perna e me olhava com olhos cheios de suspeita.

- Está tudo bem, as dores nas costas já melhoraram quase completamente.

- Oh, essa são ótimas notícias, meu jovem.

Ela sorriu. Eu sorri. Quando coloquei a mão no corrimão ela disse:

- Se precisar de alguma coisa sabe onde eu moro.

- Sim, senhora.

A Sra. Adams vivia no apartamento logo acima do de Jimmy, o garoto falecido. Tinham uma relação muito próxima e o menino sempre ajudava a velhinha com todos os tipos de serviços por alguns trocados, muitas vezes até de graça. Lembro-me muito bem que no dia do enterro a Sra. Adams chorava tanto quanto Molly, a mãe de Jimmy. Fiquei sem vê-la por muito tempo e quando a vi sua aparência era das piores, mas ali no hall pude ver que ela parecia começar a superar a perda.

Quando cheguei em casa vi um bilhete de minha mãe na mesa da cozinha. Não precisava nem ler para saber o que estava escrito. “Johnny, fui à igreja. O jantar está no forno. Beijos, Mama.” Era a mesma coisa todos os dias, eu nem mesmo sabia por que ela se dava ao trabalho de deixar os bilhetes, mas sempre sorria ao ler aquela última palavra. Mama era como meu pai a chamava e eu passei a imitá-lo desde criança. Mas fazia muito tempo que não a chamava mais assim e não havia qualquer justificativa, apenas parecia inapropriado diante da ausência de meu pai.

Fui direto para meu quarto sem comer nada, eu estava ansioso demais para ter fome. Olhei meu relógio e vi que ainda faltavam 3 horas para encontrar Karen, então resolvi tirar um cochilo para esfriar a cabeça. Coloquei meu celular para despertar e deitei, torcendo para sonhar com um beijo e esquecer todo o resto do mundo.

***

Eu já descia as escadas rapidamente checando se estava tudo no lugar. Tentei não exagerar no visual nem no perfume, mas parecia ter falhado no segundo aspecto. Agora restava apenas torcer que o vento da noite levasse consigo o excesso. Eu estava um pouco adiantado, mas não havia problema, chegar um pouco antes seria melhor. De forma alguma gostaria de deixá-la esperando.

No hall vi a Sra. Adams novamente, numa posição extremamente constrangedora ao tentar erguer a pesada caixa que o entregador deixara ali horas antes. Eu teria passado direto e em silêncio se ela não tivesse me visto e chamado.

- Oh, menino Johnny, graças a Deus! Poderia me ajudar a levar esse maldito varal até meu apartamento?

Oh, Deus, eu não precisava dessa. Eu chegaria ao meu encontro todo suado e atrasado. Normalmente eu era um cara prestativo, mas naquele dia não seria possível.

- Sra. Adams, estou com um pouco de pressa, tenho que...

- Por favor, Johnny, será rápido, eu prometo. Além do mais você receberá uma recompensa bem generosa.

Droga.

Caminhei até a maldita caixa e ao erguê-la não entendi por que o entregador fizera tanto esforço para carregar aquela porcaria até ali. Não estava tão pesada assim e ele poderia perfeitamente ter levado até o apartamento da velha. Ora, até mesmo ela poderia fazer isso!

Mas afinal, não havia tanto motivo para reclamar, a leveza da caixa permitiu que eu fizesse o serviço em menos de 10 minutos e quando eu quando eu me encaminhava para a porta ela me chamou novamente:

- Hei, Johnny, seu dinheiro!

Fui até ela.

- Obrigado, Sra. Adams.

Na minha mão vi uma nota de um dólar. Um dólar?!

Bem, tanto faz, era hora de partir, finalmente. Não conseguia mais ficar ali naquele apartamento tão bem arrumado e cheirando a incenso. Era bem arrumado demais e cheirava a incenso demais.

- Err, Johnny?

Temendo pelo pior, não me virei para olhar.

- Poderia me ajudar a montá-lo?

DROGA!

Tudo bem, tudo bem, ainda havia tempo.

Enquanto abria a caixa com a maior pressa do mundo a velhona disse:

- Vou preparar um chá enquanto isso.

Ela se afastou arrastando as pantufas e com aquela boca sorridente cheia de dentes postiços. Meu Deus, isso era o cúmulo do azar.

Quinze minutos depois o trabalho estava concluído, muito precariamente, como qualquer um poderia imaginar. Levantei-me e olhei o relógio: se eu pegasse um táxi chegaria no horário exato marcado.

Mas eu nunca peguei o taxi, ou mesmo cheguei ao local. Nem sequer ouvi os passos atrás de mim.

Senti apenas as duas mãos de alguém me empurrando com força demais para qualquer reação de minha parte. Antes de passar pelo parapeito meu corpo girou e eu vi com inenarrável horror os olhos brilhantes e o sorriso doentio da velha Sra. Adams. A imagem da loucura.

Não demorou muito para eu perceber o que acontecia, e quando isso aconteceu um medo terrível se apoderou de mim. Era meu fim, não havia como sobreviver àquela queda. Como aquilo poderia estar acontecendo? Eu não queria morrer, não naquele momento! Não com Karen me esperando num barzinho aconchegante, não com todas as possibilidades que se abriam para mim.

Também compreendi num átimo de segundo que o mesmo acontecera com Jimmy. Ele não escorregara da sacada de sua casa, mas fora empurrado por uma velha maldita e senil. Ninguém poderia desconfiar, pois a sacada do garoto ficava exatamente abaixo da Sra. Adams. Assim como talvez ninguém desconfiasse por mim, pois a minha ficava exatamente abaixo da de Jimmy. Minha mãe não estava em casa quando saí.

Lágrimas saíam de meus olhos enquanto eu via tudo passar rápido demais de um ângulo estranho, inesperado. “Por favor, não” era o pensamento que ecoava sem parar nas câmaras de minha mente assustada. E quando eu chegasse ao chão? Reencontraria meu pai? E quem zelaria por minha mãe agora? Não era justo, e agora restaria apenas o sono eterno da agonia, pois se existisse Deus ele não permitiria tudo isso. O vento suspirava em meus ouvidos talvez tentando me consolar de alguma maneira, mas eu não compreendia suas palavras, e muito menos compreenderia a escuridão que seguiu o baque.

Eu não podia deixar Karen me esperando.

Eu não podia deixar Karen me esperando...