O barbeiro

O barbeiro

Um homem abre os olhos.

Olha ao redor desorientado.

A paisagem parece familiar, mas não há som algum, além da pesada chuva que o cerca.

Tudo é cinza. Não há vento, não há sol, não há pessoas.

Percebe que está sentado em uma escadaria e há uma grande quantidade de sangue ao seu redor, inclusive em suas mãos. Ele tenta limpar em sua própria roupa, manchando a camisa branca e a gravata preta do terno completo que usa.

Ele procura por ferimentos, não há nenhum.

No final da escadaria há uma porta.

Ele se levanta com dificuldade, exausto.

Caminha até essa porta, apenas para descobri-la trancada.

Seu coração bate forte diante do tremendo esforço.

Ainda silêncio, ainda a chuva, mas agora há algo mais.

As ruas estão forradas de dinheiro.

Notas e mais notas por todos os lugares, por cima das casas decadentes, por cima dos carros enferrujados.

Talvez tudo não passe de um sonho, ele ainda olha ao redor, procurando por alguém, procurando por um caminho.

Ele se agacha e pega uma das notas molhadas. Todas são iguais. Notas de cem reais. Como um ladrão olha para os lados e pega várias, enchendo ao máximo todos os bolsos de sua roupa.

Enquanto o faz finalmente ouve algo. Parece uma música muito antiga, de má qualidade, vindo de não muito longe.

À sua esquerda, no final da grande avenida, ele finalmente vê algo que não estava lá antes: uma espécie de tenda com um grande portal de entrada iluminado com grandes lâmpadas. Parece haver uma placa enferrujada por cima do portal, mas não é possível se ler o que lá está escrito.

Um pouco aliviado, mas ainda sem compreender a aparência do local onde está, caminha em direção à luz e ao som. Seus sapatos amassam as notas, e ele se sente chateado por não poder possuir uma mala para carregar mais daquelas maravilhosas notas.

Ao se aproximar o lugar o chão se torna enlameado pela chuva e o homem finalmente tem um vislumbre do que há por baixo daquela tenda.

Um homem alto, vestindo um grande jaleco branco e calças pretas mexe em um daqueles aparelhos muitos antigos de música, um gramofone. Tem os cabelos negros e ainda é impossível ver suas feições.

Há uma cadeira de barbeiro enferrujada ocupada por um homem com creme de barbear no rosto e cabelos molhados. Em frente um grande espelho iluminado por lâmpadas, assim como o portal de entrada.

Ao lado do gramofone há uma jaula, na qual um chipanzé com as mãos nas grades, vestindo um terno azul e gravata vermelha, encarando firmemente o homem recém chegado. Há uma mala de couro a seu lado caída, aberta e vazia.

Ao da jaula há uma garota de costas, com o cabelo preso num coque e um vestido florido. Ela parece mexer em algo, mas é impossível saber o que.

Ao seu lado há um balcão, no qual uma mulher com espalhafatosas roupas parece cortar vegetais, a julgar pelo barulho da faca na tábua de madeira. Ela possuí um grande chapéu negro, como o resto de sua roupa, e algumas flores mortas o enfeitam.

A seu lado há uma bela cama de casal perfeitamente arrumada. Uma moeda quicaria se jogada.

Agora o homem tem a certeza de aquilo não passa de um sonho, mas não tem a menor ideia de como despertar.

O homem ao gramofone finalmente parece perceber sua presença e diz com uma voz amigável.

- Oh, bem vindo, meu caro amigo. Se não se importar de esperar logo termino com aquele outro senhor.

Possui um rosto gentil, com grandes olhos negros e um bigode bem aparado.

- Obrigado, mas gostaria mesmo de saber onde estou.

- Ora, isto não é óbvio? Estamos em uma barbearia, e eu sou o barbeiro. Por favor, sente-se.

Há um banco onde antes nada havia.

O homem se senta desorientado. O barbeiro volta a falar enquanto faz a barba do de seu cliente.

- Meu Deus, estas músicas são maravilhosas.

Ele faz um movimento brusco e diz:

- Oh, minhas desculpas, senhor.

Ele sorri de maneira inocente para o homem no banco.

- Parece que não sou muito bom nisso.

Algo começa a pingar da cadeira enferrujada. Um trovão ecoa ao longe.

O barbeiro continua dizendo:

- Sabe, vocês são meus preferidos.

O homem na cadeira franze o cenho.

- Nós?

O barbeiro faz outro movimento brusco. Sangue esguicha de seu cliente, sujando seu jaleco impecável de vermelho vivo. O homem cortado nada diz, apenas suas mãos se mexem e apertam a cadeira, seus dedos tornando-se brancos como leite.

- Oops.

O homem no banco se assusta e olha para os lados, verificando os outros na tenda, esperando algum tipo de espanto. Ele pergunta se levantando:

- Mas que merda é essa?

O barbeiro responde:

- Não se preocupe amigo. Apenas um pequeno acidente. Esse tipo de coisa acontece.

Algo pequeno e oval caiu no chão de terra.

Do bolso o barbeiro tira um pano e começa a limpar seu jaleco. De repente dá uma risada:

- Minha esposa vai ficar furiosa!

Ele volta a trabalhar.

- Por favor, sente-se.

O homem se senta.

- Como ia dizendo, vocês são meus preferidos.

- Nós?

O barbeiro se torna inexplicavelmente excitado e grita:

- Sim! Vocês! Os suicidas! Sempre preparo um bom show para vocês!

O homem olha para o chão.

- Suicida?

- Ora, mas é claro! Ainda não havia percebido?

O barbeiro inclina a cabeça e direciona um olhar travesso para o homem na cadeira:

- Não é possível. Será que você achou que era tudo um sonho? Ora, ora. Venha até aqui.

A música no gramofone continua a ecoar belamente pela paisagem morta. Com sua toalha o barbeiro limpa o rosto de seu cliente.

Ao tentar se levantar suas pernas cedem e ele cai pesadamente na cadeira. Uma dor incômoda surge em seus pulsos. Seu estômago revira. Finalmente se levanta e caminha até a cadeira enferrujada do barbeiro. Este estende a mão para o homem sentado e diz:

- Isto é tudo para você, meu amigo!

O homem reconhece o rapaz sentado na cadeira. Não havia prestado atenção o suficiente. O rapaz é seu filho, com o rosto completamente desfigurado. A parte esquerda estava em pele viva, era possível ver músculos e tendões. Não havia mais olho. O que estava de sua boca estava costurada. O que havia em seus olhos era puro terror. O homem recua até se chocar com o espelho atrás de si.

- Bem, você sabe como são estas coisas. Sua vida não era suficiente. Logo após você se matar os homens a quem devia dinheiro fizeram questão que sua família o acompanhasse.

O barbeiro meneia a cabeça e continua:

- Uma pena. Uma pena. Mas pense pelo lado bom. Todos estão reunidos agora.

Com lágrimas o homem caminha, passando pela jaula do chipanzé silencioso. A garota no chão é sua filha, brincando com uma boneca de pano. Ele conhece aquela boneca. Ele havia lhe dado de presente, a tanto tempo atrás. Ela estava da mesma forma, brincava com a boca costurada e os olhos de puro terror.

Ele continuou até a mulher vestida de maneira excessivamente pomposa e igualmente chocado constata que é sua esposa. Ela não corta vegetais. Ela corta os próprios dedos e o sangue escorre junto com suas lágrimas.

O homem cai sentado, chorando, com as mãos na boca, completamente chocado.

O barbeiro aparece a seu lado com a mão estendida.

- Oh, amigo. Não fique assim. Existe uma maneira de tudo isso ser resolvido. Estas pessoas estão aqui injustamente, estão aqui por sua causa. Mas você pode mandá-las para o lugar ao qual elas realmente pertencem.

Com a voz embargada o homem pergunta:

- Como?

O barbeiro sorri piedosamente. Venha até aqui.

O homem foi conduzido até seu filho.

- Corte-o. Corte-o exatamente como fez consigo mesmo.

- Oh, Deus.

Com a mão no ombro do homem o barbeiro diz num sussurro. Quanto mais rápido melhor para eles. Do bolso ele retira sua navalha.

- Vamos lá, amigo. Este é o seu show.

Chorando copiosamente ele pega a navalha:

- Desculpe, filho. Desculpe.

De olhos fechados corta rapidamente o pulso esquerdo do rapaz. Ouve então uma voz estridente:

- Não, não. NÃO!

Quando abre os olhos o barbeiro havia se tornado uma professora de olhar severo com uma palmatória na mão.

- Você precisa olhar!

O pulso estava novamente intacto e as lágrimas do rapaz continuavam a cair.

O barbeiro havia voltado a ser o barbeiro.

O homem então o faz. Os dois pulsos. Estendendo a navalha ouviu o barbeiro dizer:

- O pescoço.

Assim foi feito. O tempo todo o homem murmura.

"Desculpe." "Desculpe." "Desculpe."

O garoto geme e tem grandes espasmos, mas está bem amarrado à cadeira. Em um momento tudo cessa.

- Muito bem - diz o barbeiro - venha até aqui agora.

Com as pernas ainda bambas e os olhos injetados param em frente à garota e sua boneca.

- Oh, por favor! Não me faça cortar minha própria filha também!

O homem cai e se agarra na perna do barbeiro como uma criança desesperada.

- Oh, amigo. Pelo que você me toma? Eu não pediria tamanha maldade de você.

Estendendo a navalha ele disse:

- Tudo que você precisa é cortar a boneca. Pernas, braços e cabeça. Nessa ordem.

O barbeiro afaga os cabelos do homem desesperado.

- Vamos lá. Este não é tão difícil.

O homem pega a navalha e encarando sua filha continua murmurando seu mantra.

"Desculpe." "Desculpe". "Desculpe".

Quando corta facilmente a primeira perna da boneca ele compreende. Pois a perna de sua filha também é cortada.

- Oh, Deus, não!

- Deus? - o barbeiro perguntou sorrindo - Deus não é seu amigo. Aqui embaixo tudo o que você possui sou eu. Agora... continue.

E assim é feito. A boneca e sua filha jazem em pedaços no chão. O homem deseja ficar louco, mas não existe insanidade no inferno. Deseja rezar, pedir perdão. Mas não há Deus no inferno.

Ele se levanta. Com a navalha tenta cortar o barbeiro, mas ela apenas raspa em seu jaleco manchado, como se não passasse de um pedaço de plástico.

O barbeiro novamente inclina levemente a cabeça e sorri sarcasticamente.

O homem implora:

- Por favor, diga que acabou. Diga que estão livres.

O barbeiro parece surpreso.

- Mas que falta de consideração por sua esposa!

Enquanto caminham ela se deita na linda cama que lá havia. Estende-se como uma estrela do mar. Como se se oferecesse.

- Pegue as notas que juntou em seus bolsos e jogue sobre a cama.

Com dúvida nos olhos o homem assim o faz.

Nas mãos do barbeiro havia uma garrafa de álcool e um isqueiro dourado.

O homem fecha os olhos e olha para o chão. Agarra os cabelos e arranca tufos enquanto geme.

- Não faça isso, amigo. Isto é tudo que resta. Depois eles partirão para o paraíso e você será livre para vagar por este lugar. Ele é muito grande e cheio de coisas curiosas, posso lhe garantir.

E se aproximando sussurra sorrindo:

- Lembre-se de como vocês eram quentes na cama!

O homem então o faz. Joga todo o álcool. Acende o isqueiro e cria um grande clarão naquele lugar onde há apenas o cinza.

A mulher se contorce na cama. O homem daria tudo para trocar de lugar com qualquer um de sua família. O homem daria tudo para nunca ter se endividado com jogos. O homem daria tudo para não ter se matado.

- Bem - o barbeiro disse - retirando seu jaleco, parecendo ignorar o cheiro de carne queimada e sangue - parece que está tudo terminado.

"Eles agora podem partir e você está livre para qualquer que seja seu destino em minha eternidade de sombras. Espero que tenha gostado do show, eu certamente apreciei."

O homem cai sentado e o barbeiro se ajoelhou.

- Apenas feche os olhos e estará tudo terminado.

Assim ele o faz. A música desaparece. O barulho da chuva volta a reinar.

Quando abre os olhos está no mesmo lugar e o barbeiro mexe novamente no gramofone. As velhas vozes voltam a ecoar.

- Meu Deus! Estas músicas são maravilhosas.

Tudo está como antes. Sua família da mesma maneira de quando havia chegado na tenda pela primeira vez. O homem se arrasta na lama tentando se afastar da tenda.

O barbeiro já se encontra agachado na sua frente:

- Não achou que seria tão fácil, achou?