A BRUXA ATRAVÉS DO ESPELHO (Parte 1)

Introdução

Como é fácil sermos enganados por nossas mentes, não é verdade? Ainda mais quando somos crianças, inocentes, caçadores de conhecimento, alvos do desconhecido, tudo nos impressiona. E para aqueles que são mais observadores como eu, nem se fala. Para um medroso como eu, nem precisa muito. Digo isso pelo fato de ter um medo de altura que chegou a ser absurdo. Pois até os três anos de idade, mal conseguia ficar em cima de uma cadeira sozinho sem que olhasse para baixo e sentisse um calafrio mortal na espinha. Sim, claro que eu lembro. Minha memória sempre foi boa, principalmente com coisas ruins.

Sempre pensei nesses medos absurdos como um resultado do esforço redobrado que os pais fazem para proteger demais seus filhos primogênitos. Não os culpo. A falta de experiência pode nos trazer uma insegurança incontrolável.

Pois bem, é mais ou menos sobre isso que essa história se trata.

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Marcos, um garotinho extremamente mimado pela sua mãe, desde que nascera. Faria sete anos em alguns meses. Morria de medo do escuro. Quando a lâmpada do seu abajur do Mickey queimara, em uma noite qualquer de inverno, o pobrezinho acordou encharcado na manhã seguinte. Fazer xixi na cama naquela idade até que era normal, mas nesse caso foi atípico.

- Marcos!! Já vai escurecer, entra já pra casa - gritava sua mãe quando ele estava brincando com seus amigos na rua.

“Já vai escurecer ” era a frase de efeito que o perseguiu durante boa parte dessa fase. Não tinha como retrucar aquelas palavras.

Por volta dos seus cinco anos havia uma expressão também não muito agradável que o rodeava.

“Ele só leva as crianças quando está de noite”

Sempre tem alguém que diz coisas idiotas para os pequenos.

- Um homem, com um saco de pano velho, às vezes anda por aí a noite. Procurando crianças desobedientes para levar embora. ‘Ele só leva as crianças quando está de noite’. - Uma amiga da sua mãe disse para seu filho certa vez na sua presença. Ela ia na sua casa às vezes fazer uns rituais em que sua mãe participava com frequência.

Não havia nada demais com essa mulher, até o momento pelo menos. Os rituais aconteciam, e eram só umas rezas estranhas ao ver do menino. A única coisa que tinha que fazer era ficar por perto sem cochilar. Essa tal amiga, chamada Dona Adelaide, um belo dia, inventou de levar uma caixinha de música para sua mãe. Mas que belo presente, certo?

Errado, não era um presente. Era um “amuleto temporário”. Ele deveria ficar na casa de um anfitrião por alguns dias. Bom, em dois anos dessa ladainha, foi a primeira vez que Marcos viu Dona Adelaide com uma conversa tão estranha. Geralmente aquele ritual não o interessava tanto.

Pois se tratava de umas cinco ou seis mulheres, falando de salvação e do poder do amor e bla bla bla…

Mas nesse dia havia um brilho nos olhos daquela mulher quando ela disse:

“A escuridão vai chegar, e isso irá proteger.”

Isso não é coisa que se diz perto de uma criança com predisposição à Nictofobia.

Isso atormentou Marcos, por dias.

Frases que envolviam escuridão, falta de luz, sombrio ou coisas assim, o apavorava certamente. A frase composta por “escuridão” e “proteger” soava como um conflito. Não que ele soubesse o que era o significado de conflito com essa idade. Talvez ele havia associado à briga.

“Temos que nos proteger. Teremos que lutar”. E as brigas mais memoráveis para ele eram as dos seus pais, antes da separação. Clara, mãe de Marcos, se separou dois anos antes disso, devido à esses desentendimentos. Em um deles, Marcos presenciou seu pai dar um tapa em sua mãe. Isso não o fez chorar. Pelo menos não na hora. Ele apenas congelou e observou torcendo para tudo acabar bem.

Ele não entendia agora, mas aquele momento o tornou mais fraco e mais inseguro. Sem um pai para te proteger e reconhecendo agora o quão indefesa era sua mãe, ele passou a desenvolver mais medos. Medos que as vezes não o deixava dormir.

“Temos que lutar pra vencer nossos medos” um fio de força o circulava ainda, seja lá onde ele tinha ouvido isso.

Todavia, após ouvir “A escuridão vai chegar...” o que uma criança de mais ou menos sete anos pensaria? O que seria essa escuridão para Marcos? Um bicho papão em forma de monstro ou em forma de um velho carregando criancinhas (ou quem sabe, pedaços delas) dentro de um saco de pano desgastado?

Bom, não dá pra saber ao certo. Nessa idade, eles vão longe.

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Passaram-se os dias e a caixinha de música rústica e assustadora jazia no seu quarto, sobre prateleira no centro do guarda roupa. Se o mal chegasse o que será que aquela coisa iria fazer? Invocar um super-herói? “Amuletos”, ele com certeza não entendeu o que significava.

Era uma madrugada qualquer, e o garoto decidiu, com todas as forças que reuniu, tomar coragem de ir ao banheiro. Uma jornada sempre difícil para os pequeninos.

Estava tudo tão calmo e quieto, que seria possível ouvir uma agulha cair na casa vizinha. O tiquetaquear do relógio somado com a sinfonia de uivos dos ventos ao redor da casa, davam o ar lúgubre necessário para Marcos se sentir bem desconfortável para tal feito.

O problema foi que essa noite um ruído incomum resolveu se intrometer na orquestra macabra. E ele vinha do quintal de sua casa. Era um ruído que ele associou à alguém escrevendo, com muita força, utilizando lápis em uma das paredes de concreto. Mas não fazia sentido nenhum isso, ainda mais àquela hora da manhã. Quem invadiria uma casa para escrever na parede às duas da madrugada?

Marcos estava aterrorizado, entretanto, a curiosidade era tão doce que era inevitável não ceder. Depois de um tempo ali parado perto da porta da sala, ele percebeu o barulho evoluir para um mastigar bizarro. Pensou em sair correndo, sem dúvida, todavia ficou hipnotizado e totalmente dominado pela falta de juízo, tamborilando com as duas mãos na maçaneta, decidiu abrir a porta e ver o que estava no seu quintal.

“Não deve ser nada” foi o que pensou.

Após isso o menino se sentiu gelado.

Haviam dois olhos hostis, que brilharam bem no meio da escuridão, direcionados à ele. O mastigar ainda prevalecia, um pouco mais lento agora, mas insistente. Eram sons de ossos quebrando.

‘É ele... o monstro que veio trazer a escuridão’ pensou Marcos, obviamente.

Foi então que o suposto ‘monstro’ rosnou para ele de uma forma diabólica e fez seus poucos pêlos se arrepiarem totalmente. Logo a criatura deu alguns passos cautelosos para frente e, para o alívio do menino, o felino veio contra a luz exibindo sua pelagem mais escura que a noite, reluzindo deslumbrantemente, soltando um miado rouco. ‘Um gato’. Se serviu de mais um pouco dos restos de galinha que se encontravam esparramados ali no chão. Apesar de não ser um terrível monstro comedor de crianças, a cena ainda era um pouco assustadora.

- Um ga-ga-to negro... - Balbuciou para si mesmo.

Um estalo veio à sua mente nesse instante, temperado com uma dose de frio na barriga. Pois ele lembrou de uma coisa bem maluca que ouviu certa vez.

A irmã mais nova da sua mãe, uma adolescente, que vivia contando coisas bizarras para Clara, como se ela realmente se interessasse. Muitas vezes ela passava uns dias na sua casa para ajudar nas atividades diárias. Principalmente em época de férias.

- Jane? Me poupe dessa baboseira, tá?

- Clara é sério. Os gatos negros são reencarnações de pessoas amaldiçoadas nas vidas passadas. Por isso as bruxas amam tanto eles.

Com certeza isso não tinha pé nem cabeça. Mas para criancinhas amedrontadas e de imaginação fértil, será que não tinha?

Bem provável que ele levou isso bem a sério. Escuridão? Monstro? Bruxas?

“Por isso as bruxas amam tanto eles”

Um portal abriu-se ali. E agora aquele gato que o confrontou naquela madrugada, era o sinal de que uma Bruxa estava por perto. E ela o pegaria.

- Marcos, meu filho, coma! Sua comida vai esfriar. - ordenou sua mãe no dia seguinte, enquanto estavam na mesa.

O garotinho estava em outro plano. Pensando em como escaparia do caldeirão da Bruxa.

- Filho, está me ouvindo?

- Mamãe? As Bruxas existem? - sussurrou.

Clara deu um risinho leve, com uma expressão de dó e pousou sua mão sobre a mãozinha do menino, que a fitava com um semblante perdido.

- Elas existem só na nossa imaginação, filho. Não precisa ter medo. - disse tentando confortar Marcos.

Isso não seria suficiente, claro, porque o menino sabia que ela estava errada. Era óbvio que ela estava. As Bruxas existem. E uma delas ‘estava por perto’.

E para que elas queriam as crianças? Para comer seus corações é claro. Se alimentar de um coração inocente. Carne de ‘filhotes humanos’ são mais macias e mais suculentas. Ele sabia disso. Mas não poderia falar uma coisa dessas para a mãe.

De onde ele tirou isso mesmo?

O problema desses medos é quando temos vergonha de contar para alguém, pois eles acabam por nos consumir mais facilmente à cada dia. Se ninguém perguntar, só você sabe. Pior ainda é quando você não sabe se o seu ‘medo’ é real ou não.

A avó de Marcos adoeceu e sua mãe teve que viajar às pressas para vê-la. O garoto tinha aula, então só lhe restou a companhia de ninguém menos que a tia maluca dele. Ele não estava acostumado a ficar sem a mãe por mais de algumas horas.

A primeira noite foi difícil pegar no sono. Na segunda noite também. Entretanto ele pôde perceber que não era tão ruim ter a tia doida por perto. Ela era muito responsável. O fato de achar ela doida era só pela razão dos seus gostos peculiares, tanto nas vestimentas, como nos assuntos que a empolgava, sem dúvida. Lobisomens e vampiros eram seus preferidos. Com certeza Clara a orientou para não se empolgar dessa vez com esses seus assuntos místicos. “Você não vai querer xixi na cama todos os dias certo?” foi como ela terminou por convencer que a irmã deveria guardar suas histórias para um outro momento.

Após três dias sem qualquer conto de terror, qualquer conversa esdrúxula, o menino se sentiu seguro, contudo, um desejo perturbador passou a dominá-lo, obviamente. Precisava conversar sobre seus medos com alguém, por mais que fossem ruins, ele precisava muito. Isso é natural. Todavia, criou expectativa de que sua tia excêntrica iniciasse alguma conversa estranha ou viesse com aquelas lendas que adorava contar. Sem esse gatilho, Marcos não criou coragem para desabafar sobre o que lhe amedrontava.

- O que faremos para o jantar hoje, hein, rapazinho?

- Macarrãããoo!! - Gritou empolgado e gargalhou junto com a tia. Era um segredo entre eles, mas Jane fazia o melhor macarrão do mundo.

- Bom, deixa eu ver, preciso disso e disso também e… - tagarelava sozinha enquanto vasculhava a despensa, até perceber que faltava um ingrediente para completar a receita maravilhosa.

- Preciso de mais molho. Vou dar um pulo lá no mercado rapidinho tá? Quer ir também? Ou prefere ver desenho?

Ele estava se sentindo tão à vontade com sua tia que nem pensou na situação que se encontraria à partir daquela decisão. Adoraria ficar vendo desenho àquela hora. Seria muito melhor do que encarar as duas quadras sob ventos gelados do início da noite para fazer compras.

- Desenhooooo - respondeu sorrindo.

- Imaginei. Mas eu volto logo, não é longe. Cuide bem da casa viu? - deu um beijo na testa dele e saiu.

Estava tão despreocupado, sorrindo para a TV, largado sobre o sofá, ainda com o uniforme da escola, que nem se deu conta do tempo passar. Engraçado, não? Quando estamos cautelosos demais é difícil ter necessidade para tal cautela. Basta um pouco de distração e coisas indesejadas começam a acontecer, de repente.

Preguiçosamente, o pequenino levantou para ir ao banheiro e dessa vez sem se incomodar, como todas as vezes. Nem parecia o mesmo que quase desmaiou ao ver um gatinho inocente no quintal de casa. Estava submerso na fantasia que os desenhos proporcionavam. Tão envolvido, de um jeito, que era capaz de ignorar o mundo real facilmente.

Um barulho agudo, atípico, surgiu distante. Ele mal percebeu. Pensou que vinha da TV.

Estava um tanto complacente, ainda, ao ouvir pela segunda vez o barulho.

‘Acho que a titia já chegou. Ela não ia demorar mesmo’. concluiu.

Foi seguindo pelo corredor, logo, soube que não era ninguém mesmo. Pois a luz do corredor ainda estava apagada.

‘Pode ser outro gato… eu acho…’

- Titia?... - disse quase resmungando, com uma falsa esperança.

- Tia Jane? - seguiu dobrando o corredor lentamente para o acesso que dava na cozinha. Engolindo seco. E antes que chegasse no cômodo sua visão se escureceu por meio segundo e voltou…

‘O quê?’

‘A luz piscou… Ou será que foi impressão?’

- A Bruxa. Ela tá aqui. - falou consigo mesmo.

“Que aroma delicioso esse… poderia te mastigar sem tempero….”

Sua espinha gelou.

Alguém disse alguma coisa? Não, claro que não. Sua mente te trapaceando de novo. Parece que Marcos tinha acabado de ser expulso do paraíso dos desenhos e agora enfrentava as masmorras escuras que aprisionavam seus medos.

Paralisou olhando para as pernas que tremiam, enquanto apoiava uma das mão contra a parede do corredor. Dessa vez a curiosidade não podia vencer, pois o pavor era muito mais forte. Ele não olharia. Resistiria.

Escutou de novo e dessa vez notou que uma das cadeiras arrastou provocando algo parecido com um relinchar curto.

‘Ela tá aqui. eu sei… Vai me devorar…’

‘Não… não seja medroso, não tem ninguém… ‘

‘Ela tá aqui sim, posso sentir… ‘

Discutiu por alguns segundos com a própria mente.

Precisava olhar. Era a única maneira de saber se era verdade ou não. Não passava pela mente que estivesse louco, ou algo assim. Para ele tudo era possível.

Arranhou a parede, involuntariamente, e sentiu que ia chorar. Seu queixo começou tremer. Mas mesmo assim, tomando as últimas forças que lhe restaram, deslizou um dos pés para a porta da cozinha, como se estivesse em uma esteira. Aproximou o rosto do batente e, sorrateiramente, foi expondo os olhos à luz do cômodo. Semelhantemente a um soldado à espreita em um fogo cruzado, evitando ser atingido.

Respirou fundo de alívio, ao reconhecer que não havia ninguém ali mesmo. E mais calmamente, certificou-se de que todos os móveis estava em ordem. Exceto por…

VINICIUS S FONTES
Enviado por VINICIUS S FONTES em 12/05/2019
Reeditado em 21/05/2019
Código do texto: T6645247
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