OLHOS CÔNCAVOS

1981. Esse foi o ano da desolação para todos que habitavam a região nordeste, foi o ano em que a morte despejou toda a mágoa que sentia do povo nordestino. A miséria entrou em todas as casinhas de taipa, se infiltrou pelos buracos do barro, adentrou pelas brechas da porta de madeira da frente como um hóspede, arrastou para seus braços quem avistasse. A seca varreu grande parte da vida que ainda restava das brenhas do sertão. Raramente ainda se via um calango entre os cactos e rochas na areia vermelha meio alaranjada sob o sol efervescente no baixíssimo céu da caatinga. Francisco tentava enganar a miséria que rondava a sua família. Perderá dois irmãos na maldita seca daquele ano, nunca virá nada tão devastador. Parecia ser o fim dos tempos, pensavam todos aqueles que ainda tinha algo que as mantinha em pé.

— Fia, vai lá ajudar sua mãe a carregar os balde de água!

Disse Francisco, para uma de suas filhas, a mais nova e a mais teimosa, que raramente escutara o pai.

— Oh, pai! Queria ir não! Mas a Maria já não ta ajudando ela. — Francisco parou de alinhar as varas na construção da cerca para o gado, debaixo do sol escaldante, filetas de suar escorriam pelo seu rosto murcho.

— Mermo assim, o que custa Tereza? Sua irmã só farta morre de tanto ajuda sua mãe, e você fica matutando ai! Te alheia, Tereza. Acude tua mãe se tu ainda quiser ter uma. Proque do jeito que ta indo, só na fé em Deus pras coisa miorar pra gente.

Francisco alinhava as varas, uma a uma e continuava a falar.

— Num ta fácil pra ninguém, tu sabe disso, e continua desse jeito minha fia.

Seu Francisco tira o chapéu de palha surrada, e esfarrapado, se abana e volta para o serviço da cerca.

Sua filha Tereza entendia o que o pai queria dizer e fora ajudar a mãe e a irmã, mesmo com raiva. A mãe de Tereza vinha desfilando na terra seca, sua silhueta se remexia nas ondas de calor, usufruía de um vestido meio marrom, suas sandálias eram desgastadas na sola, rachadas como à terra em que viviam.

Seus calcanhares quase que penetravam o buraco na chinela, tocando o chão árido. Carregava um balde de água na cabeça, que vez outra cambaleava e às gotas de um oceano pulavam fora das bordas. Vindo acompanhada de sua filha mais velha que carregava um balde menor em punhos.

Francisco e sua família passaram por grandes tormentas naquela seca, temia que suas filhas sucumbissem à magreza extrema. As suas refeições eram porções mínimas que havia tirado da última safra, o milho, o feijão e a fava não tiveram tanto sucesso no ano. Muita gente encontrou alternativa de migrar para outras regiões, fugindo da morte, que chegava de todas as formas, pragas, seca, doenças, fome. Muitos acreditavam que o pecado do povo nordestino trazia consigo toda a desgraça. Vigílias eram feitas diariamente para santos. O povo suplicava por chuvas e misericórdia de Deus.

Seu Francisco não desistira, resistia sair das suas terras a força, por mais que sua mulher jogasse na sua cara o tempo todo que mais cedo ou mais tarde a água iria acabar, e a comida também.

§

Francisco estava sentado na cadeira de madeira encostando-se à parede taipada, o vento associava longe nas roças secas. O sol já estava se ponde nos confins das grotas e montes secos daquela região.

Estava acompanhado da gata-preta que não saia do seu pé, ela ficava rondando a cadeira e ronronando na sua perna.

Ele olhava para o pé de tamarindo, que mal se via uma folha verde. A árvore era enorme, corpulenta, galhos finos e grossos, espalhavam-se em todas as direções, como se mostrasse o caminho certo a se seguir.

Ao anoitecer o tamarindo era sombrio, seu espectro esquelético dava arrepios no estomago vazio. Distraído com a árvore fantasma, ele ouve o ranger da porta se abrir. Era a mulher de Chico, estava um pouco cansada, havia trabalhado muito na manhã daquele dia.

— Francisco — disse baixinho, puxando uma cadeira e sentando ao seu lado.

— proque nois num vai embora de uma vez dessa terra maldita, nossa fia ta magra, o gado tá morrendo, a roça tá seca seca. — Seu Chico, como era conhecido, continuava olhando para o tamarindo.

— Não tem pra onde nois ir, Antônia. Oia ao redor, a gente ta a léguas de qualquer coisa. Se pudesse volta atrás, nois tinha ido junto com o cumpade Joaquim pra capital.

O sol terminara de se por e alguns bacuraus saltam no terreiro, engolindo besouros que pareciam brotar com o desabrochar da escuridão.

— A rente já perdeu muito, ocê sabe do que to falando. Se a rente continuar aqui, vamo perder muito mais. A Maria ta gemendo de febre lá na rede. Chico se volta para ela, levantando-se.

— Mas o que nossa fia tem?— Perguntou ele.

Adentrou as pressas para dentro da casinha, que só continha dois cômodos, a sala e a cozinha. Maria estava deitada numa rede na sala, de frente para a parede, onde se via um altar de adoração a todo tipo de santo, varias mini estatuetas acima de uma mesa improvisada e quadros enfeitavam aquela parede vermelha. O retrato de São Jorge era um dos mais recentes colocados ali. A menina se contorcia de dor, suava e tremia nas cobertas que mal a cobria.

— Fia, o que ocê tem? — perguntou Francisco, pousando sua mão sobre a testa da filha.

— Antônia, ela tá ardendo de febre, o que nois faz? Tenho força pra tudo, menos pra isso — arqueou os olhos para a mulher. Aquele olhar já era conhecido e queria dizer algo terrível! Antônia correu para o fogão feito de barro, pegou alguns pedaços de lenha e galhos finos, para acender o fogo com candeeiro.

Preparou um chá às pressas. Enquanto seu Francisco cobria a filha com mais alguns panos. A filha mais nova, Tereza continuara dormindo do lado da irmã em um colchão velho e surrado no chão. Seu Chico observara às duas com medo do que poderia vir por aí, sem chuvas e sem comida.

Antônia e Francisco não arredaram o pé do lado da filha, permaneceram ali até o sono pega-los de jeito.

Chico acordara de madrugada com uma voz sussurrante, chamando-o. Francisco se levantara devagar para não acordar a mulher e as crianças, e se ponha em direção a porta, tentou abri-la sem fazer barulho, mas foi quase impossível, a fechadura já era um pouco enferrujada e estava um pouco emperrada, fazendo um burburinho de ferro transpassar nos ouvidos da mulher, que se moveu.

Deteve-se por um momento, então abriu, cuidadosamente.

A escuridão era terrível aos seus olhos, não se via nada, a lua já estava bem longe dali, nem lua, nem sol, o lugar estava totalmente tomado pelas trevas. Sentiu algo roçar na sua perna, e teve um susto.

— Que diabos é isso! — murmurou sentindo calafrios. Era a gata, que em seguida deixou-se perceber, soltando um ronronar, passando a cabeça nas pernas de seu Francisco. Ele suspirou aliviado.

— Então é ocê. Preta. Que susto!

Chico acariciava a gata entre as suas pernas naquela madrugada, quando se ergueu e olhou para a direita e viu ao longe um brilho que se movia rapidamente.

Abismado com aquilo, e com o sussurro resolveu ir à direção daquilo. Ele sabia onde o brilho se encontrava, mas não poderia ser alguém, ninguém mais habitava aquela região fora eles. As pessoas daquele lugar haviam se mudado depois que seus parentes selavam as pálpebras num último suspiro.

Ele adentrou a casa e pegou o candeeiro aceso e seguiu na direção do brilho na escuridão, caminhava olhando para todos os lados. A luz do candeeiro clareava alguns palmos a sua frente, ele via o caminho já feito, estreito, com cerrado baixo, feito por outras pessoas que seguiam naquela direção com o intuito de diminuir a tristeza e a saudade de seus corações sofridos.

— O estou fazendo? Essa luz no fim desse caminho não é boa coisa.

Falava consigo mesmo, baixinho. A gata, como um cão fiel não saia de seus pés, seguia-o, balançava a calda, abanando as trevas do sertão.

Já estará bem próximo da fagulha de luz.

Chico sentia seus olhos marejarem de espanto, isso era um sinal ruim, pois, sabia que naquele lugar já ouvira histórias de fantasmas, principalmente depois de muitas mortes. Passava o candeeiro de um lado para o outro, buscava o restante do caminho, dando de cara com a mata seca. Parou por um instante, e fitou a escuridão.

— Eu vorto ou continuo? Olhou para a gata, esperando uma resposta. Balançou a cabeça.

— Seja o que Deus quiser, preta. — Chico deu o primeiro passo pisando nas folhas secas, lá dentro da mata havia muitos cactos, mandacarus, alguns pareciam ter forma de gente e de bichos na escuridão, não havia nenhum vento, nem um sinal de som. Ouviu apenas alguns bateres de asas de algo que dormiam ali, Francisco as espantavam com seus pisoteados nas folhagens que cobriam o caminho.

— Meu Deus! Esse lugar da medo demais, cruz credo. Essa mata a noite parece a casa do diabo. — Chico resmungava como se tivesse alguma alma penada na escuta.

— Né não preta? Preta?

Chico olhou para trás, encandeou rente ao chão, ao seu redor e nada, a gata sumiu misteriosamente.

— Cadê ocê? Preta? — Sussurrava chamando-a.

— Diabos! — A luz estava a poucos metros saindo da mata, ele sentia seu peito arder, arregalou os olhos e viu um vulto se afastar da luz, Francisco espremeu os olhos, para tentar se adequar a escuridão. — Quem ta ai?

Francisco gritou da mata. Por um momento hesitou em continuar após ver a placa, que ia sendo descoberta pela chama do candeeiro. Seu coração quase pedirá socorro, com batidas tamborilantes.

“Cemitério de Pitombeira”

— Acho mio eu voltar daqui mermo, antes que as coisa comece a ficar estranha pro meu lado! — Disse baixinho, como se não quisesse acordar ninguém ali.

— Francisco…

Chico arregalou os olhos num sobressalto, deixando o candeeiro cair e se apagar. Ficara imóvel ao ouvir aquilo. Um vento frio soprou a vasta margem da mata onde chico estava. Os galhos se remexiam no alto das árvores, como se dançassem no chamuscar do sussurro.

— Quem está ai? — Perguntou Francisco, ainda paralisado, sem mover um fio de cabelo. O silêncio parecia responder a sua pergunta. A luz que brilhava imóvel cresceu a sua luminosidade mudando para uma cor azul clara e sumindo em seguida.

Seu Chico continuou parado sem entender aquilo. Pegou o candeeiro e retirou do bolso uma caixa de fósforo onde continha alguns palitos e acendeu novamente o candeeiro. Colocando rente ao seu rosto e andando para frente, a claridade ia descobrindo aos poucos, túmulo, por túmulo, com cruzes de madeiras enfiadas quase completas na terra.

Na primeiro cruz via-se “João Ferreira Da Silva”

escrita na horizontal, (1960 – 1976).

Ao ler aquilo, sentiu um nó na garganta engolindo a seco o terror que aquele lugar lhe causava. Seguiu adiante erguendo os olhos, mas cruzes e mais calafrios, suas pernas dançavam no ritmo do medo, suas mãos soavam, o vento frio que do nada tinha surgido, havia sumido.

“Maria José do Carmo” (1926 – 1978) Estava escrita numa placa de madeira velha, quase completamente comida pelos cupins.

— Dona Maria, ocê foi uma sogra e tanto. — Sussurrou Agachado, passando a mão sobre a cruz enterrada numa cova que parecia um monte.

Chico conhecia muita gente ali debaixo daquelas terras. Levantou-se e continuou andando afastando-se da mata, o cemitério ficava num lugar descampado, só se via tocos de árvores queimadas e troncos caídos. Mas a frente havia outro cemitério localizado num monte elevado, esse em especial era enterrado apenas as crianças.

— Oh! Deus, quantas criança o sinhor teve de levar de nois, ainda ti pergunto proque. — Dizia Francisco enquanto olhava para todos os lados e quanta cova de criança seus olhos viam sem acreditar.

Até que seus olhos pousam tristemente numa familiar. Continha Flores de angico, ainda estavam conservadas, foram colocadas ali recentemente no pé da pequena cruz. Rodeada de pedras, e algumas bonecas de pano. Ele ponha o candeeiro na terra, e se ajoelha pegando uma boneca, passando os dedos e alisando-a.

— Sinto muito sua falta, minha pequena. Muito. Não há um dia que eu não me curpe por ocê não ta aqui. — Os olhos de seu Francisco brotava filetas de lagrimas, que escorriam sobre seu rosto rugado, caindo sobre túmulo da sua filha, que morrera dois anos antes em consequência da seca.

Passará a mão sobre a cruz de madeira, alisando os contornos, quando um barulho surge abaixo do monte, como se fosse alguém caminhando entre as covas, as passadas eram pesadas, ouvia-se de longe. Chico arqueou os olhos acima dos ombros, ainda tentou enxergar de onde estava, mas seus olhos se recusavam a se adaptar as trevas daquela noite. Se despediu da sua filha dando um beijo na sua cruz, ergueu-se e desceu o monte elevado por pedregulhos que quase rodeavam aquele lugar.

— Quem ta ai? Aparece. Seu mardito.

Francisco olhava para onde quer que fosse, mas só conseguia ver a claridade que o candeeiro lhes proporcionava. Ele dará mais alguns passos a frente quando ouvira um grito que ecoava através da mata seca, um grito tão alto que pode-se ver que algo se moveu na floresta.

Os galhos e árvores pareciam cair quando aquilo correu na direção da mata. Seu Francisco não tardou, o grito vinha certamente da sua casa, correu o mais rápido que pôde, a chama do candeeiro dançava quase que apagando com o vento.

— Antônia!

— Antônia!

— Deus, minhas fia! — Seu peito pedia socorro, seus pulmões não aguentariam muito, já estavam bem gastos com os cigarros que ele fumava a um bom tempo escondido da mulher e dos filhos.

Seu chico gritava de longe por sua mulher, sua voz saia fraca, rouca. Estava quase chegando em casa. Abriu a porta rapidamente, mas estava tudo normal, a sua mulher que estava dormindo acordara com o barulho da porta. Suas filhas continuavam dormindo como pedras.

— Chico, que se ta fazendo essa hora acordado, inda mais no terreiro? — Eu eu... — Ele ficou sem entender nada. Deu mais uma olhada para além da escuridão.

— Pensei que tinha ouvido e visto algo na mata.

— Vem homi, deita aqui, proque daqui a pouco amanhece e ocê tem que ajeitar o gado.

Seu Chico deitou com aquilo na cabeça, a luz, a voz sussurrante, o bicho na mata e o grito que parecia ser um pedido de socorro. Era tudo estranho, aquelas terras eram realmente amaldiçoadas.

§

O dia amanhece, os raios de sol se lançam furiosamente pelas frestas do telhado mal acabado. Um dos raios atingiam Chico bem no rosto. Sua mulher já se levantara para fazer o café da manhã, preparava um pouco de cuscuz numa panela de barro.

— Chico, levanta. O gado ta esperando ocê lá no curral.

Chico ouve um burburinho chamando-o lá no fundo. Suas pálpebras pesavam uma tonelada, abriam e fechavam de sono. Maria ainda estavam dormindo, Antônia preparava o café dá manhã na beira do fogo, cuscuz com leite de gado, uma comida bastante típica da região nordestina. Francisco se levanta, esfrega os olhos e vai até a cozinha.

— Antônia, donde ta a nossa fia, Tereza?

Antônia pigarreou — Pedi pra ela ir buscar água mais cedo no poço uai.

Chico parecia não gostar de ouvir aquilo depois do ocorrido na madrugada

— Eu ouvi alguma coisa onte de madrugada.

Antônia se vira com sem entender.

— Ocê só pode ta brincando, Antônio.

— Brincadeira? Bem que fosse, eu escutei vozes e vi coisas na mata perto do cemitério.

— Chico! — Ela olha incrédula.

— O que ocê foi fazer lá homi? Ta biruta?

— Antônia, eu vi alguma coisa, alguma coisa me chamou lá. Eu senti! Primeiro ouvi uma voz chamando meu nome e dispois quando sai no terreiro eu vi uma luz fraca la na mata.

— Acho que ocê ta sentindo e vendo coisa demais. Vai acabar ficando maluco como o nosso ex vizinho, Cicinho. Ele ficou doido dispois que saiu dizendo que viu um homem por ali também, perto do cemitério.

— Eu vi um vulto no cemitério. Não deu pra eu chegar mais perto, a coisa foi embora. Dispois eu fui na cova da nossa fia. Ocê ainda encontrou frores por ai, Antônia? Ela adorava aquelas frores de angico como ninguém. — Disse Chico, colocando mais uma colher se cuscuz seco na boca.

Antônia parecia não da muita importância ao que Chico contava. Ele tocara num assunto que no seu peito ainda sangrava dor e tristeza. Até mudou de assunto, aquilo a incomodava bastante.

— Chico, come rápido proque a vaca ta la esperando por ocê no curral.

Disse ela, metendo a colher de pau no cuscuz seco.

— Ta bom, ocê não gosta desse assunto mermo. Oia a nossa fia, não deixa ela piorar. Qualquer coisa ocê me chama.

Chico se levanta e vai até a filha, beijando-a no rosto e em seguida vestindo sua roupa surrada para o trabalho.

§

Já estará tarde, Antônia estranhara a demora de Tereza. Havia se passado quase uma hora, ela só perceberá a falta da filha por conta da água que precisará para fazer o almoço.

— Chicooooo!

Seu chico ouvirá um berro chamando por seu nome, ele até se assustara com aquilo, vira de longe sua mulher no terreiro se esgoelando por ele.

Seu Francisco corre, quase caindo entre as fezes do gado no curral, passará a porteira de madeira como um animal atrás da caça.

— Mas que diabos aconteceu muie? — Disse Chico com falta de ar.

— Nossa fia, Chico! Ela...

— Ela o que muie? — Sua voz vacilava, seu chico interrompeu-a e começou a suar sob o sol maldoso daquela manhã.

— Nossa fia, Tereza ainda não vortou do poço.

Seu rosto britou de preocupação — Como ela não vortou? Antônia.

— Não vortou homi, já fez mais de uma hora.

A mulher de chico segurava um pano e o apertava forte com as duas mãos rente ao peito.

— Chico, vai atrás de nossa fia. Vai! Não quero perder mais nenhuma delas nesse lugar abandonado por Deus.

Chico ficará perplexo, nunca virá sua mulher agir daquela maneira inquietante.

— Eu vou la agora mermo. Eu vorto já com ela, fica calma, nossa fia só deve ta brincando com alguma coisa que achou.

Seu Chico entra dentro de casa e pega a sua velha espingarda que guardará no teto da casinha, seu velho chapéu de palha e botas de couro de raposa.

A sua mulher olha-o com temor. — O que se vai fazer homi, com isso?

— Só pro precaução. — Ele se virou e seguiu em direção ao poço que ficava depois da mata, próximo do cemitério de crianças.

§

Tereza passeava pela mata silenciosa, parecia um ponto ali, uma agulha no palheiro de trevas. Nenhum som, nada. Ela olhava de um lado para o outro e para trás, parecia estar com medo. O caminho estreito parecia um bosque de jurema seca, onde a luz se encontrava no fim do caminho.

Seus passos eram rápidos, quase que tropeçando um no outro. Seus vestido lilás balançava com sua pressa, e seus cabelos cacheados roçavam de um lado para o outro. A alça do balde rangia com o balançar da lata. Bem adiante estava o cemitério de pitombeira.

Ela havia chegado no poço. Era profundamente escuro no seu interior, a luz não existia. O universo se comprimia ali dentro, seus contornos e bordas tinham tijolos vermelhos, alguns desgastados por conta do sal.

Tereza se inclinara na borda, e jogará o balde, batendo no decorrer do percurso até o fundo, zumbindo, fazendo o poço cuspir um eco de lata.

— Desse jeito a mãe vai arrancar a minha ureia, tomara que não tenha amassado.

O balde chegará no fundo do poço, fazendo novamente um barulho de lata colapsar com a água.

Tereza tentou erguer o balde, mas não terá força suficiente, de todas as vezes que fora ao poço sua irmã ou mãe estavam por perto para ajudar.

— Ah! Eu não consigo. Tá muito pesado, E agora?! Mãe vai me matar se eu vorta sem água pra casa.

Ela tentou novamente erguer o balde, mas a corda podre quebrará e o balde afundara, como um navio. Viu-se apenas o brilho da lataria do balde antes dele se contorcer e afundar, soltando bolhas na superfície da água.

— Merda! Estou lascada!

Minha mãe vai me matar.

A preocupação deu lugar ao medo. Tereza sabia que não poderia voltar pra casa sem água e sem balde. Iria tomar uma surra de cipó.

A menina de cabelos encaracolados fazia rodeios ao redor do poço, observara a água chacoalhar no fundo. Quando uma voz melancólica atrás de si, se proclama para ajudar.

— Olá, minha criança. Esta precisando de ajuda?

Tereza virou-se num sobressalto arregalando os olhos, cambaleou para trás de susto, dando um suspiro longo e cansado quase caindo no poço.

— Quem é você? — Disse Tereza olhando com temor para o homem esquisito.

Sua boca se esticou como um elástico, seus dentes estridentes amarelados foram mostrados um a um, seus lábios eram negros.

Sua pele parecia a lua pálida e branca nas noites mais altivas do céu. Trajava um roupão negro, com mangas longas, seu cabelo era crespo negrito debaixo de uma cartola escura. Seus cabelos se estufavam para os lados, e a cartola tinha uma fita branca acima da aba.

Seus olhos eram fundos como uma caverna, pareciam mortos, ao redor era escuro. Os braços eram longos como tentáculos negros, com garras enormes em cada mão. Seu caminhar era de um espectro arrepiante, suas costas eram curvadas, parecia esconder um casco de jabuti debaixo das vestimentas negras.

— Quem sou eu criança? Perguntou o homem estranho sua voz rouca e tenebrosa, prosseguido de seu sorriso maléfico.

— Sou apenas um homem comum. Um homem que só quer te ajudar. — Sua risada aumentou o tom, deixando a menina assustada.

— Não preciso de ajuda, eu já estava indo pra casa! — Disse Tereza, dando passos para trás calmamente, como se andasse sobre espinhos.

O homem estranho soltou outra gargalhada medonha.

— Sabe criança, acho que você não vai a lugar nenhum! Estou com fome, já faz meses que não tenho uma boa refeição. — Ele lambia os lábios com sua língua longa e negra. Deixando escorrer uma baba no canto da boca.

Seus olhos côncavos penetrantes intimidavam Tereza.

— O que você quer? — disse Tereza, olhando em outra direção rapidamente vendo além do emaranhado de mata seca.

— Eu... Eu estou com fome!

Sua boca abriu, sua garganta parecia uma caverna escura, e o pinguelo da garganta balançava como um sino, anunciando comida fresca.

A menina soltou a corda do balde e deu um grito agudíssimo, que até os ouvidos mais entupidos de cera ouvirá o eco de longe. Ela correu em direção a mata olhando para trás assustada. Pisara em espinhos e tropeçara em vários tocos ali no lugar descampado, mas não se renderá ao medo paralisante.

Tereza deu de cara com um amontoado de cactos. Os espinhos daquela planta penetraram sua pele, como agulhas num pano. Uns se infiltraram no seu braço atravessando a pele, outros na sua mão, chegando a quebrar dentro do musculo. O sangue escorria pelos seus braços. Seu vestido mudara de cor. Correra na mata aos berros, chamando por seu pai.

§

Já estará escurecendo, Francisco e sua Mulher e a filha mais velha passaram a maior parte do dia procurando pela ente querida desaparecida nas brenhas daquele lugar estranho. Francisco ouvirá apenas o grito da filha além da mata, não chegará a tempo, dizia para a mulher e filha, se lamentando.

— Eu não consegui, Antônia. Eu não consegui, alguma coisa pegou nossa filha.

Seu chico caiu de joelhos no chão, debaixo de um pé de juazeiro. Seu chapéu cairá da cabeça. Sua mulher o abraça, se enlaçando no seu pescoço. Maria ficará em pé enxugando as lagrimas dos olhos. Antônia encostara o rosto no do marido.

— Mai num foi curpa sua, não foi. Eu quem pedi pra ela ir lá pegar água. — Disse Antônia, com os olhos marejados, ajoelhada abraçada em seu chico. Ele soluçava, segurando um pedaço do vestido da filha que estará manchado de sangue.

A noite estava chegando, e não muito distante deles, os olhos côncavos assistia os três lamentando o desaparecimento da menina. Ele lambia aquele pedaço de carne fresca, antes de rasgar em seus dentes laminados.