Um Bolo Para Mariana
Luciano levantou-se e fez o possível para não fazer barulho, não queria acordar a Dona Zélia e a filha dele, que dormiam sobre um velho colchão de palha. Tinha fé que conseguiria encontrar bastante papelão e latinhas de alumínio.
A garotinha estava fazendo aniversário e, se tivesse sorte, daria para comprar até um um pequeno bolo. Sobre o glacê cor de rosa pensou em acender cinco palitinhos de fósforo. Assim, Mariana poderia soprar as "velinhas" e, em meio a gritinhos de felicidade, lhe dar o primeiro pedacinho.
Chovia naquela manhã de inverno e tudo parecia ser visto através de uma cortina de fumaça.
Com as lojas ainda fechadas, Luciano começou a recolher os papelões ainda aquecidos pelos frágeis corpos que, como zumbis, haviam despertado dos pequenos sonhos para viver o grande pesadelo que era a realidade.
Luciano sabia como era perigoso ser um morador de rua pois, por diversas vezes, viu pessoas serem mortas da forma de que nem os ratos mereciam. Mas, no prédio abandonado, recheado de drogados, putas e vagabundos "FAMINTOS", ele e a garotinha estavam seguros. Afinal, depois que um homem sumiu lá dentro, quem ousaria entrar para jogar gasolina e atear fogo? Quem teria coragem de procurar criancinhas para fazer maldade? Quem...?
***
Cris já havia perdido a conta de quantos homens já havia exterminado. A sensação em vê-los agonizarem até o fim era a de tomar uma cachaça boa. Gostava de decepar primeiro os pés para que o filho da puta não pudesse correr. Usava uma espada afiadíssima, que herdou do pai: um lunático carroceiro. O velho tinha prazer em esquartejar belos garanhões para comer a carne e beber um pouco do sangue ainda espumante; acreditava que assim teria a força e a libido dos poderosos animais.
O jovem tomou gosto pela coisa depois de visitar o pai em um pequeno sítio. Ao chegar, presenciou a desconstrução de uma raríssima obra da natureza, cujo dorso negro, na mais completa agonia, fazia cavalgar o sol em infinitos pontos de luz.
O belo espécime amarrado a um tronco sentia a lâmina voraz invadir os nervos e as cartilagens que uniam seus possantes membros. O líquido que minava viscoso pelas articulações rompidas tingiu na areia branca um par de asas vermelhas, indispensáveis para levar a alma para o firmamento: mais uma estrela na constelação de Pégasus.
Cristiano, enquanto observava o animal ser sacrificado de forma atroz, voltou no tempo e teve a mente invadida por lembranças há muito adormecidas.
Ainda cedo, estava montando a boneca que o pai tinha destruído, quando ouviu os gritos da mulher que havia lhe dado o brinquedo. Foi pela pequena fresta da janela que viu a senhora amarrada no mesmo tronco onde o cavalo dava seus últimos suspiros.
Na ocasião, o pai dele com a barba por fazer afiava a lâmina em uma pedra tão abrasiva que fazia doer os dentes.
- "DESGRAÇADO, MENTIROSO!" Berrou Cristiano, agora homem feito, mas ainda com medo de que a voz saísse afeminada e, outra vez, o pai embriagado lhe espancasse com o chicote como fazia quando ele era criança. Cheio de ressentimentos, arrancou a espada suja de sangue das mãos do assassino e disse com a voz embargada:
- Papai, você matou minha avó, e com certeza como todos pensavam, também matou a minha mãe.
Cris nunca se lembrou exatamente o que fez com o pai, quando a fúria lhe inundou o coração, apenas que depois de chorar muito, juntou todos os pedaços dele até formar um grande boneco de papo pro ar. Depois de observá-lo bem, retirou parte da gasolina do tanque da moto e meteu fogo.
Não queria ficar com aquele boneco, queria aquela que o pai havia destruído quando ele ainda era tão pequeno: esse colado com sangue, era feio, e tinha os olhos vazados...
***
Cris, usava peruca e trajava um vestido verde quando entrou no prédio. A sede de matar lhe impediu de pensar sobre as consequências... Reconhecido por um assaltante, que há cerca de dois anos escapou da morte com um pé decepado, Saci, como ficou conhecido, não pensou duas vezes ao lhe estocar o punhal no peito. " Esse traveco gordinho, metido a Zorro, chegou em boa hora". Pensou Pererê enquanto lhe rasgava o bucho...
***
Luciano já estava com a carrocinha abarrotada de material reciclável quando viu o táxi avançar o sinal vermelho. Naquele exato momento um cidadão carregando uma maleta atravessava a faixa de pedestres. Foi tudo muito rápido. O catador, de forma instintiva, empurrou o veículo de tração humana, que chocando-se contra o homem, jogou-lhe para fora da pista.
Caixas de papelão e garrafas plásticas voaram pelos ares, enquanto centenas de latinhas cintilavam barulhentas pelo chão.
O homem de terno e gravata levantou-se, bateu a poeira da calça preta, pegou a maleta e pôs-se a agredir o pobre catador de papel.
Luciano olhou para a passageira, que estava em silêncio ao lado do motorista do táxi, e gritou:
- POR FAVOR, FALA PRA ELE QUE NÃO FIZ POR MAL.
O impacto havia deixado a porta do carona escancarada e ela, livrando-se do cinto de segurança, veio em sua direção.
- Siga seu caminho, você salvou aquele homem e o ingrato não se deu conta...
Ao ver a carrocinha destruída, o pobre rapaz fez uma expressão de dor e, de forma mecânica, pôs-se a juntar algumas latinhas em uma sacola. Mas, ela interveio e disse:
- Deixe isso por aí.
Luciano acreditava que estava diante de uma mulher muito rica. O vestido de brilho discreto era cinza, talvez para combinar com os grandes olhos azuis. Tinha um sorriso acolhedor no rosto de traços perfeitos, emoldurado por uma cabeleira negra levemente ondulada.
A mulher tinha pressa, disse que precisava voltar para o trabalho. Entretanto, antes de partir, perguntou se ele precisava de alguma coisa.
Luciano não era pedinte, o pouco que conseguia era através do seu trabalho. Mas, diante das circunstâncias, disse:
- A Senhora pode levar um pequeno bolo de aniversário para a minha filha? Moro naquele prédio que fica próximo à igreja.
A mulher fez uma cara de espanto ao perguntar:
- Aquele em ruínas? Mas, moço, aquilo vai desabar a qualquer momento...
- Dona, seria um favor se caísse sobre mim e todos os outros miseráveis que se escondem lá dentro. Mas, se eu pudesse fazer um pedido a Deus, pediria para que minha filha Mariana, a única inocente entre nós, pecadores, sobrevivesse, e fosse criada por uma família que pudesse lhe dar comida, estudo e uma grande festa de aniversário.
Luciano havia atrapalhado os planos dela. Mesmo assim, com um leve sorriso, prometeu que ainda aquela noite levaria um bolo para Mariana.
***
O taxista havia morrido. O susto que o velho safenado levou quando percebeu a velha ao lado dele foi o suficiente para que tivesse um ataque cardíaco e fosse direto para o inferno pagar pelas centenas de cães e gatos, que por maldade, havia atropelado ao longo da vida.
Giltine estava sempre em seus planos; Khalil, o homem que o catador havia salvo, tinha verdadeira adoração pelo prazer que ela lhe proporcionava. Os dois eram cúmplices, sendo ele o executor. Entretanto, tinha ela motivos para acreditar que dessa vez os planos dele seriam frustrados.
Khalil mancava, o impacto da maldita carroça fez com que machucasse o joelho esquerdo, e a bomba tinha hora certa para explodir. Podia ouvir o tique-taque dentro da maleta. Bastava apenas dar uma desculpa qualquer ao porteiro, entrar no colégio e colocá-la em ponto estratégico para que na hora do recreio pequenos corpos pudessem estourar feito pipocas. Depois era só passar dias curtindo as reportagens, e se deliciar na internet com as fortes imagens dos corpinhos despedaçados.
Khalil já estava bem próximo, bastava atravessar a rua e entrar na escola, mas, de repente, dividido em mil pedaços, voou pelos ares.
A explosão feriu e também ceifou a vida de outras pessoas, fazendo com que o pânico se irradiasse por toda a cidade.
***
Luciano só chegou ao prédio no final da tarde. A única coisa que conseguiu levar foi um marmitex que ganhou de um Senhor a quem devolveu a carteira. A comida foi divida entre a Dona Zélia e a menina Mariana.
Vendo a filha comer, Luciano alimentava a alma, e seu corpo, cada vez mais magro, sentia-se forte para continuar vivendo.
A noite veio e cobriu a cidade com seu manto frio, bordado de estrelas.
Luciano tinha esperança de que a mulher viria trazer o bolo, mas, para não gerar expectativas, não disse nada. Já estava cansado de esperar quando foi vencido pelo sono, e, então, amortalhada pelo vento, ela surgiu.
***
Giltine não precisou bater para que Luciano abrisse a porta dos seus sonhos. Estava ainda mais bonita, totalmente nua. Porém, por mais que tentasse seduzi-lo, ele a respeitou como se fosse uma santa, e de joelhos falou baixinho:
- A Senhora não trouxe o bolo. Por quê?
A mulher olhou para o homem sujo, tinha ele os dentes quebrados, os cabelos crescidos escondiam os olhos tristes em um rosto pálido. Ela sorriu ao dizer:
- Engana-se, pobre homem.
Um pequeno bolo surgiu sobre o caixote que usavam como mesa. Dona Zélia e Mariana acordaram e o pequeno cômodo se iluminou quando uma estrela desceu do céu e se debruçou na janela. Todos os miseráveis que moravam no prédio surgiram do nada e cantaram: "Parabéns pra você..."
Mariana, dando gritinhos de felicidade, quase não teve forças para partir o primeiro pedacinho e entregá-lo ao pai. Aos prantos, Luciano abraçou e beijou a filha, e a festa começou...
Saci, com umas cachaças na cabeça, dançou com a bela mulher, e enquanto rodopiava, percebeu que tinha os dois pés. A felicidade foi tanta que resolveu contar que os churrasquinhos, que vez ou outra oferecia, era de carne de gente. Ninguém o recriminou: era de graça e dava para matar a fome.
Dona Zélia confessou que, ainda na adolescência, envenenou os pais e foi viver em um bordel.
Todos, sem nenhum pudor, falaram sobre seus infortúnios. Giltine não se abalava, parecia entender da bestialidade humana. O único que entrou em pânico foi Luciano, que pôs-se a gritar:
- POR FAVOR, VÃO EMBORA!
Giltine estalou os dedos e todos desapareceram. Luciano ficou sozinho em meio a escuridão, era como se estivesse em um pequeno cômodo sem portas e sem janelas. Desesperado, tateava as paredes e gritava em crescente desespero:
- MARIANA, MINHA FILHA, ONDE ESTÁ VOCÊ?
De repente, suntuosos lustres se acenderam e, ao contrário do que imaginava, estava em um belo salão de festas. Havia um gigantesco bolo sobre uma grande mesa de mogno. Os garçons circulavam por toda parte oferecendo bebidas e iguarias diversas.
Luciano estava escondido atrás da cortina, observando tudo em silêncio. Assustado, tinha medo de que as pessoas lhe vissem e pensassem que fosse um ladrão. Mas, Giltine apareceu vestida de branco e o levou para o meio do salão. A linda debutante veio cumprimentá-lo. Mariana não se importou que o pai estava sujo e maltrapilho, que era desdentado e tinha os cabelos em desalinho. Depois de abraçá-lo e beijá-lo, disse aos prantos:
- Papai, o Senhor nunca saiu dos meus sonhos.
Giltine acompanhava o bailar dos dois com um suave sorriso, mas, ao término do espetáculo, mostrou a sua verdadeira face...
Envelhecida e com um longo nariz azul, disse:
- Eu precisava atender ao seu pedido. Sua ação em salvar aquele homem fez com que eu lhe conhecesse. Poucos são aqueles que conseguem me ver antes da hora derradeira: sou a morte. Eu estava ao lado do motorista do táxi e você falou comigo. Lembra?
- Mas por que então a Senhora sendo a morte estava usando cinto de segurança?
A morte riu alto antes de falar:
- Meu caro, já vi tanta gente estragada por não usar o cinto que até eu, veja só, fico apavorada.
Luciano riu. Nunca imaginou que a morte também tinha seus medos. Depois disse:
- Sei que estou sonhando, nada disso é verdade. Não fiz nada demais em salvar aquele homem.
- Ele deveria morrer antes de entrar na escola e matar dezenas de crianças. Era a minha missão apenas capturar e levar a alma dele, não tenho o poder de matar. Forças conspiraram para que um garotinho, em especial, morresse no atentado. Não importa se esse menino será do bem ou do mal, mas terá seu nome eternizado na história da humanidade. Sua atitude não salvou o terrorista, mas salvou as crianças.
- Mas como?
- Com o impacto a maleta caiu longe e desconfigurou o relógio, fazendo com que adiantasse alguns minutos. Tive o prazer de prender a alma do imbecil dentro de uma garrafa pet e entregar no inferno.
Por conta disso seu desejo vai ser realizado, sua filha será criada por uma família com muitas posses. A parte do sonho em que você estava na festa é uma projeção do futuro. Agora prepare-se para deixar esse mundo...
***
Eram quatro horas da manhã quando o prédio ruiu. Durante cinco dias as equipes de salvamento tentaram encontrar sobreviventes. Entretanto, apenas cadáveres eram retirados do meio dos escombros. Já estavam desistindo quando um bombeiro ouviu o fraco choro de uma criança.
A menina, que não deveria ter mais que cinco anos, depois de um emocionante resgate foi levada para o hospital. Quando restabelecida e sem nenhuma sequela, disse que se chamava Mariana e passou o tempo todo conversando com o pai e, quando tinha fome, ele colocava em sua boca um pequeno pedaço de bolo.
FIM
Nota: Gostaria de agradecer a Escritora Cristina Gaspar, por deixar-me espelhar em sua obra: "O livre garanhão cor de ébano" de onde veio a inspiração para criar o personagem Cristiano.