A MÁSCARA DE GUMMER
A máscara feita de marfim tinha aspecto demoníaco. Ela sorria, um sorriso maléfico e satisfeito. Seus olhos espremidos na expressão do riso eram buracos, através de onde olhos humanos deveriam enxergar, mas mesmo assim pareciam transmitir inquietação. O recorte da máscara acima dos olhos era circular e convexo, como uma meia lua. Emoldurada por chifres de ouro que diminuíam de tamanho partindo do centro para as extremidades, em volta dos quais pedras de rubis e esmeraldas cravejadas adornavam.
A peça, avaliada em 2 milhões de dólares tinha sido a grande atração do leilão aquela noite em Paris. Cada vez que a tirava da caixa ele lembrava. Ficava admirando a máscara sentado na sua poltrona giratória, com um copo de uísque e as lembranças das noites de Paris. Os bailes de máscaras encantados, cheios de glamour e requinte. Podia sentir o gosto do champanhe, o chão reluzente e espelhado dos salões onde os pés deslizavam suaves nos rodopios das valsas. As noites de boemia em que lindas mulheres aninhavam-se no calor dos seus braços, os beijos eram quentes como brasa e tinha seus sonhos todos ali debaixo dos seus pés para serem realizados.
Todas as lembranças o faziam fraquejar e querer usar a máscara de novo. Sentir o gelado marfim em contato com a pele e depois a irradiação de calor queimando o rosto como se cada poro fosse a boca de um vulcão explodindo em erupções arrasadoras. E por fim a sensação que imaginava ser do espírito fora do corpo. A ausência total de gravidade, desintegração molecular. Neste plano ele coexistia como uma criatura carnal, palpável, mas atrás da máscara o plano astral era visível e todo o inexplicável deste mundo tornava-se compreensível e até banal.
Com a máscara a centímetros do rosto ele olhava através dos buracos dos olhos. O desejo impelido pelo objeto parecia sobrepujar o seu próprio em querer afastá-lo. O copo de uísque que segurava se tornou o catalisador da sua energia e arremessando-o no chão, pôde finalmente desprender-se da atração da máscara, jogando-a contra a prateleiras de livros à sua frente. Tremia ajoelhado no chão. Os nervos abalados, a mão direita cortada por um estilhaço do copo. Chorava. O sangue das mãos espalhava-se misturando-se às lágrimas e se perguntava: “Porque, porque”! Assim resistindo sobreviveu a mais um dia.
A mansão o deprimia, estava definhando. Fugindo das festas, dos holofotes, de qualquer agitação. Sabia que a máscara queria isso e o induzia muitas vezes para esses caminhos. Por isso resolveu viajar. Decidido chamou os empregados, mandou arrumar as balas, preparar tudo, o voo, hospedagem. Angra dos Reis. Ficaria lá até que se cansasse. Pelo menos não precisava fugir dos prazeres da vida sem a máscara. Em menos de três horas já estava em Angra. Hospedou-se no Hotel Vila Galé Eco Resort. Não era temporada, mas mesmo assim estava cheio. O que achava bom por hora, quando mais estivesse cercado de pessoas melhor, era o que precisava. Passava os dias passeando de carro alugado pelas ruas estreitas de asfalto, toda aquela natureza exuberante, as montanhas, as casas, os muros de pedra, os pescadores. Sentia-se vivo e renovado.
Voltava ao hotel pra dormir, pouco tempo passava lá. A maior parte do tempo procurava os lugares mais afastados e embora entendesse de início que o melhor seria se cercar de pessoas, com o tempo passou a sentir-se enojado de toda aquela badalação. Os coqueiros, quiosques, as piscinas. Mesmo a areia branca, as águas em tons verdes de uma beleza tão idílica, as ilhas. Ali naquele hotel não conseguia apreciar nada disso. Ia para as vilas dos pescadores, os lugares mais afastados do centro. Numa dessas noites agitadas no hotel depois de beber champanhe demais no seu quarto preparou-se pra sair. Tomou um banho e vestiu-se de forma simples: bermuda, camiseta e chinelo. Ao abrir a porta do guarda-roupa, pra pegar o perfume, derrubou uma bolsa deixada ali que nem tinha notado antes. A bolsa caiu se abrindo. Era uma dessas bolsas que se amarra com corda. Quando viu o que caiu da bolsa Jonas teve um susto, gritando de horror. A máscara, a maldita máscara. Impossível, pensou. Não tem como ter trazido a máscara. Só se ela o abduzira em sonho, e se fosse verdade, isso indicava que o poder dela estava mais forte, porque isso nunca tinha acontecido. Talvez porque ele não tivesse conseguido resistir tanto ao seu poder como agora. Então ele se aproximou e simplesmente colocou a máscara, desmerecendo todo o esforço requerido até ali.
Agora, vestido com a máscara, sabia que podia fazer o que quisesse. A máscara ficava invisível para as pessoas enquanto tudo era tão claro para ele como num espelho. Imaginou onde queria estar naquele momento e antes que abrisse os olhos estava no quarto dela, Jenevieve. Ela estava com outro homem. Deitados na cama lado a lado, nos braços um do outro, nus, cobertos apenas por um lençol. Concentrando-se nos pensamentos dela ele tentava encontrar alguma parte sua ainda, uma lembrança, um sentimento, uma saudade. Não demorou muito até encontrar. Ela ainda pensava nele. Vieram nos pensamentos dela os dias em Paris e as juras de amor que ele quebrou e logo todo o sofrimento e a tristeza. Tão magoada, ainda assim em seu coração pedia uma chance de reencontrá-lo, para saber o que aconteceu. Porque na noite em que juraram amor e deixariam tudo pra ficarem juntos, ele não apareceu, sumindo pra sempre da vida dela? Sumindo, na verdade, da vida de todos ao seu redor. Sucumbia nessa época aos efeitos poderosos provocados pela máscara, adquirida recentemente naquele leilão. Os sortilégios de que era capaz com a máscara rapidamente o seduziram. A capacidade de enxergar as pessoas como eram de verdade, diferenciar suas intenções de suas palavras. As mentiras encobertas por trás de todo falso sorriso. Os enganos evitados, mesmo à custa de revelações desconcertantes. A invisibilidade que o revestia tornando seu corpo oculto a todos os olhos, humanos ou não. Mas a máscara expunha sua fragilidade ao mantê-lo no mundo sobrenatural de onde ela fazia parte. O poder que tinha para expor a verdade alheia, servia para fazê-lo mentir, trapacear, matar. Fazia os demônios e anjos, invisíveis a todos nós, exporem sua eterna guerra pelas almas bem na sua frente. Deixava-o refém dessas entidades, cada vez mais exposto às influências positivas e negativas, exaurindo sua energia humana e deixando no lugar o piche negro e viscoso da maldade e do conhecimento além da pequenez do homem.
No final foram inúteis todas as tentativas de resistir ou destruir a máscara. Era indestrutível e assim como Gummer, que confeccionou a máscara, segundo leu nos livros antigos, conforme as orientações de um demônio, não conseguiu dominar seus desejos para o controle de seus impulsos e definhou diante de seus esforços de controlar a máscara, ou seja, controlar a si mesmo através da máscara. Perguntava-se como Gummer tinha se livrado dela. Teria que buscar nos livros, na ciência, alquimia. Faria o que fosse necessário para livrar-se da maldição e quem sabe não fosse tarde para viver aquele amor. A doce Jenevieve, que ainda pensava nele, o amava. E o amor era o impulso que precisava pra poder seguir. Enquanto a máscara mostrava o quão baixo poderia descer, se igualando aos demônios que o atormentavam, o amor o elevava, alado que é, ao céu onde moram os anjos.