Sem deixar rastros

Sebastian Rose decidiu procurar a ReputAid não somente pelos anúncios que vira em páginas da internet sobre gerenciamento de reputação online, mas porque uma amiga, que possuía uma casa de festas em Albuquerque, lhe dera boas referências deles. Melina Acosta, a amiga, tivera problemas há alguns anos com um cliente, que além de não pagar metade do valor combinado pelo aluguel do espaço, entrara com uma queixa criminal contra ela - por descumprimento de contrato. Não satisfeito, enchera a internet com referências negativas sobre a casa de festas, o que causara grandes problemas para Melina - até que ela contratara os serviços da ReputAid.

- Não é mágica - explicou ao amigo. - Nem todas as páginas com informações negativas desapareceram, mas o que interessa, quando você faz uma busca na internet, são as duas primeiras páginas... talvez somente a primeira. O que vem a partir daí, pouca gente vai atrás.

A ReputAid desenvolvera um algoritmo cuja função era burlar os mecanismos de busca, de modo a fazer com que dessem relevância aos links para páginas positivas sobre o cliente, enquanto que outras contendo material negativo eram relegadas para baixo na pesquisa.

- Se eu entendi bem o que você me explicou, - avaliou Rose - esses caras descobriram uma mina de ouro. Promover páginas é uma das coisas mais difíceis de fazer... pense só no quanto uma empresa pagaria para alavancar as páginas dos seus produtos. Por isso os buscadores estão sempre mudando o algoritmo, para impedir que alguém burle o sistema.

- Não sei como fazem - admitiu Melina - mas o que importa é que os resultados positivos aparecem primeiro. Pra mim, foi suficiente. Não sei qual é o seu caso, mas eles possuem outras soluções, obviamente, mais caras.

Rose não estava interessado em revelar o que gostaria de varrer para baixo do tapete da internet, mesmo para sua amiga Melina. Alegou apenas que se tratava de curiosidade pessoal, e agradeceu pelas informações obtidas. Ao se ver novamente sozinho, pegou o celular e agendou uma hora no escritório local da ReputAid, para o dia seguinte.

* * *

A filial da ReputAid em Santa Fé, Novo México, estava localizada num grupo de salas dentro de um shopping, no centro da cidade. Rose aguardou por alguns minutos numa antessala, após ter sido atendido na recepção por uma jovem que parecia mexicana. O local lembrava mais um escritório de advocacia do que uma empresa de tecnologia, com decoração sóbria em tons pastéis. A única coisa destoante, era um nicho na parede em frente ao sofá onde estava sentado; dentro dele, uma estátua de cerca de dois palmos de altura da Santa Muerte, envolta em roupas coloridas e com o seu tradicional rosto de caveira, encarando-o com as órbitas vazias. Rose sentiu um calafrio, e não somente por conta do ar condicionado.

Instantes depois, a porta do escritório abriu-se e por ela passou um homenzarrão de terno escuro, que Rose reconheceu como sendo um dos conselheiros do condado, o qual, se não estava enganado, sairia candidato nas próximas eleições. Fazia todo o sentido um político estar ali, ponderou. O conselheiro o cumprimentou protocolarmente e saiu, deixando-o frente ao consultor da ReputAid, um rapaz de cerca de 30 anos, rosto escuro, cabelos negros e lisos, terno bem cortado. O jovem estendeu a mão para ele.

- Sr. Rose? Eu sou Carlos Mencia, representante da ReputAid!

Trocaram um aperto de mão, e Mencia convidou-o para entrar em seu escritório. O recinto estava mergulhado em obscuridade, com pesadas cortinas vedando a passagem da luz da manhã pelas janelas. Um abajur amarelo fornecia basicamente toda a iluminação do ambiente, e havia um monitor LED de 32" ligado, sobre a mesa de Mencia. O representante indicou-lhe que se sentasse à frente da mesa e tomou assento atrás da mesa de tampo de vidro. O monitor estava inclinado num ângulo que ambos podiam ver o que era exibido nele.

- Desculpe-me pela escuridão, senhor Rose, - justificou-se Mencia - mas como aqui discutimos assuntos confidenciais, manter as cortinas fechadas e o mínimo de luz ambiente possível, evita que sejamos espionados.

- É... conveniente - admitiu Rose.

- E o que o trouxe até nós? - Indagou Mencia, mãos entrelaçadas sobre a mesa.

Rose retesou-se na cadeira.

- Bem... estou com uma situação que gostaria de remover dos buscadores. Tenho uma empresa de relações públicas, e como agora surgiu a possibilidade de fechar um bom contrato, que resolveria todos os meus problemas financeiros, isto talvez possa ser um... impeditivo.

- Antes que diga qualquer coisa, Sr. Rose, - atalhou Mencia, erguendo as palmas das mãos - caso se trate de assassinato ou crime de ódio com grande repercussão de mídia, não suprimimos este tipo de informação.

Rose encarou-o, chocado.

- Não... não... nada disso. Eu fui pego há alguns anos dirigindo bêbado na interestadual... dia ruim... bom, fui preso, tiraram minha foto na delegacia. E isso caiu na internet, como pode imaginar.

- Sim, entendo a sua situação - ponderou Mencia, tamborilando no tampo de vidro. - Algum concorrente poderia se valer desta informação e usá-la contra o senhor.

- Precisamente.

- Então, vamos ver o que há contra o senhor na internet - sugeriu Mencia, puxando um teclado sob o monitor LED. - Diga-me o seu nome completo e dados pessoais...

O representante foi digitando a medida em que Rose ia falando. Finalmente, apertou a tecla ENTER. Quando a tela encheu-se com os resultados da busca, Mencia ergueu os sobrolhos.

- Parece-me que não se tratou apenas de um caso de embriaguez ao volante, não é mesmo, Sr. Rose?

Rose abaixou a cabeça, envergonhado.

- Não se preocupe - prosseguiu Mencia. - Não é algo tão grave que não possamos corrigir...

- Acredita nisso? - Indagou Rose, esperançoso.

- Já resolvi casos bem mais complicados do que o seu - informou confiantemente Mencia. - Poderemos suprimir completamente toda a informação negativa a seu respeito, acessível por buscadores convencionais. Mas não nos responsabilizamos por dados offline ou que estejam na deep web. Isso lhe basta?

- Creio que será suficiente - avaliou Rose. - Mas você disse "suprimir"... e não apenas diminuir a relevância?

- No seu caso específico, não creio que apenas jogar os links para baixo resolveria o problema. Estou certo?

- Sim... mas não pensei que fosse possível suprimir informação da internet.

Mencia sorriu condescendentemente.

- A web da superfície, aquela que pode ser indexada e pesquisada por navegadores convencionais, corresponde a apenas 1% de toda a internet. E, mesmo assim, representa uma quantidade absurda de informação... bilhões de páginas, em todos os idiomas do mundo. Os outros 99%, da deep web, não nos interessam, até porque normalmente não estão acessíveis ao público, muito menos indexados. O nosso trabalho é grande, mas nos limitamos à esta ponta do iceberg.

- Compreendo - disse Rose, sabendo que Mencia não iria lhe dar qualquer informação técnica sobre o procedimento. Todavia, caso funcionasse, o problema estaria resolvido, e para comprovar, bastaria abrir um navegador e repetir a busca.

- Gostaria de contratar os seus serviços - declarou Rose.

- Muito bem - replicou Mencia. - Vou lhe apresentar o contrato que iremos assinar.

- Antes disso, preciso lhe fazer uma pergunta - solicitou Rose.

- Naturalmente... todas que eu puder lhe responder - redarguiu Mencia, recostando-se em sua cadeira.

- Ouvi comentários de que vocês trabalham apenas com pessoas físicas, o que me surpreendeu. Se vendessem os seus serviços para empresas, seriam uma das maiores organizações de relações públicas dos EUA.

Mencia sorriu novamente.

- A filosofia da ReputAid é a de ajudar pessoas a obterem o que desejam, Sr. Rose. Cobramos preços módicos para resolver problemas relativamente simples, como o da sua amiga Melina Acosta...

- Vocês... sabiam que vim indicado pela Melina? - Indagou Rose, sentindo um ligeiro desconforto tomar seu corpo.

- Sabemos tudo sobre o senhor, Sr. Rose - replicou Mencia, sem deixar de sorrir. - Mas como eu ia dizendo, nossos preços estão dentro da realidade do mercado de gerenciamento de reputação... eles servem para bancar o custo de instalações como esta, pagamento de taxas, empregados etc. Só que esse não é o objetivo principal da nossa organização, Sr. Rose, e é exatamente nele que se enquadra o seu caso. Também é por conta disso que não trabalhamos para empresas. Sabe o porquê, Sr. Rose?

Diante do silêncio do interlocutor, Mencia inclinou-se para a frente, os dentes muitos brancos brilhando sob a luz do abajur.

- Empresas não têm alma, Sr. Rose.

- [30-04-2019]