As lágrimas de Nelly - DTRL 34- poemas sombrios

“Pré- história. A caverna ainda estava longe e a mãe, com a bebê risonha nos braços, apressava os seus passos. Não sabia por quanto tempo ainda ia agüentar sem água. A boca seca e a visão turva eram sintomas de que talvez caísse no meio do caminho. Seria somente mais uma vítima da seca, como os cadáveres que tinha visto ao longo do caminho. Tanto de pessoas como de animais que não conseguiram encontrar o precioso líquido a tempo.

O bebê começou a ficar mais quieto em seus braços. Buscando forças não se sabe de onde acelerou em direção a caverna visada. Torcia para que fosse real e não apenas mais uma ilusão da sua mente, como um lago que pensou ter visto momentos antes.

Quando chegou na porta de entrada, quase caindo no solo, não acreditou no que seus olhos viram. Havia um tipo de fonte de água no interior da caverna. Porém no rosto da jovem mulher o sorriso de alegria logo sumiu. Por algum motivo desconhecido ela tinha a expressão de quem ver um fantasma.”

-Corta!- gritou o diretor com uma leve irritação- Nelly, qual o problema? Essa cena era para ser de profunda alegria. Pela sua expressão fica parecendo que ela tem medo da água.

Nelly parecia paralisada. Era como se o diretor não estivesse falando com ela. Seu olhar estava na direção do homem que tinha acabado de chegar no set.

-Nelly , está tudo bem?- a leve irritação tinha ido embora e foi substituída por genuína preocupação. Se virando para a equipe disse – Uma pausa pessoal. Retomamos daqui há algumas horas, quando ela estiver melhor.

-Preciso sair daqui. Desculpe.- disse a moça entregando o bebê para uma assistente e saindo, quase correndo, em direção há algum lugar não revelado.

-As mulheres são assim mesmo.- disse a figura que tinha acabado de chegar ao set dando uma risada sonora. O diretor não riu. Um sentimento não revelado dançou pelo seu olhar. O homem estendendo a mão para ele enquanto falava- Jamie, posso lhe chamar assim não é? Vejo que está tudo correndo bem. Pode me chamar de Billy e sou especialista em jovens talentos e se permitir gostaria de ficar no set observando as estrelinhas que tem aqui. Tenho alguns contatos na industria, posso lhes ajudar a alcançar vôos mais altos.

-Pode ficar se quiser.- respondeu Jamie sem a emoção esperada. “Mas vou lhe vigiar cada segundo”. Ele permitiu que o homem ficasse principalmente porque queria confirmar o que pensou ter visto no olhar da sua querida Leela. Pediu o bebê que estava agitado nos braços da assistente. A criança se acalmou imediatamente em seu colo.

-Essa bebê até parece que é sua filha.- comentou a importante figura olhando para a criança.

-E ela é. Adotei-a tem alguns meses. Gosto de ter ela sempre por perto. - disse apenas isso aconchegando a bebê melhor em seus braços. Quando o homem foi embora após se despedir, Jamie sussurrou baixinho para o filha- Vamos descobrir o que esse homem mau fez com a nossa amiga Nelly. Vamos sim, Jocie querida.

De alguma forma foi como se a bebê concordasse com o olhar.

*

-Nelly, está melhor? Podemos recomeçar?Da parte que paramos!

“O sorriso logo surgiu no rosto da jovem moça ao ver a fonte de água que parecia brotar do fundo da caverna. Correu até ela com todas as suas forças, mas antes que pudesse a alcançar foi impedida por sombras disformes que moravam naquela caverna. As figuras saíram das paredes rochosas e formaram uma barreira entre ela e a fonte.

A moça pensou que devia ter suspeitado de alguma coisa, pois no meio de tanta seca uma fonte como aquela devia ter uma multidão ao redor dela. O que não era o caso. As criaturas logo foram ganhando forma e começaram a falar com uma voz que fazia o ouvido doer, quase a ponto de sangrar:

-Como ousa invadir nossa caverna? Saia. Saia.

A mulher estava fraca até mesmo para implorar e todas aquelas vozes a deixavam ainda mais confusa, porém tentou mostrar a bela bebê, para quem sabe trazer um pouco da luz da bondade para aqueles corações duros. Achava que eles talvez não tivessem coragem de deixar uma criança tão pequena morrer de sede.

Quando os olhos indiferentes deles viram a criança algo pareceu mudar. As vozes se calaram, mas eles continuaram em formação bloqueando sua passagem.

-Se nos entregar a criança, pode beber da fonte até se saciar, mas somente se entregar a criança.

A mulher olhou em desespero para a sua bebê enquanto sua língua seca clamava por água. Lágrimas começaram a se formar em seus olhos ressecados. Chorou e chorou.

O barulho da água da fonte torturava seus ouvidos, mas seu coração nunca permitiria que ela abandonasse a filha com aqueles monstros. A bebê começou a querer chorar. Nesse momento tomou sua decisão ainda com lágrimas enquanto cantava para acalmar a doce criança:

“Monstros cobram uma decisão

Em um cenário de sede, fome e exaustão

Mas nunca vou deixar parte do meu coração

Na mão de seres sem emoção ”

O bebê se acalmou na hora. Risadas de zombaria invadiram o local vindo das criaturas. Uma delas cantou em uma voz imitando a voz da pobre mulher:

“Porque iríamos querer uma simples humana?

Ainda mais uma tão pequena?

Essa bebê tem a nossa essência

Ela é mais importante do que pensa

Entregue o pequeno ser

E talvez consiga sobreviver”

-A resposta continua sendo não.- disse agarrando a filha e correndo para a entrada da caverna.”

-Corta. Substituam a pequena Jocie por uma boneca realista para a próxima cena. Ação.

“Estava quase na porta quando sentiu o chão se projetar a sua frente. Fez o máximo que pode para proteger sua filha na queda. E tentou segurar ainda mais forte quando sentiu que era cercada por aquelas criaturas que a puxavam, batiam, apenas para pegar a criança. Foi lançada para fora da caverna no momento em que uma das criaturas segurava sua bebê.Se sentindo mais fraca do que nunca se pós a chorar no momento em que ouviu um barulho estranho e alto vindo da caverna. ”

-Corta. Ótimo trabalho. Nelly , está tudo certo?- perguntou quando notou que ela não parava de chorar, mesmo com a filmagem terminada há algum tempo. Desde o começo da cena achou as lágrimas dela extremamente realistas. E agora era obvio que ela não estava chorando por causa da cena. Uma sensação estranha começou a tomar conta dele. Um nó na garganta. A sensação que aquela dor era dele também. Tinha que fazer alguma coisa. Envolveu-a carinhosamente em um abraço e como ela não estava bem se ofereceu para leva-la para casa.

-As filmagens acabaram por hoje.

Enquanto Jamie estava distraído conversando com Nelly não notou sua filha no carrinho de bebê encarando fixamente Billy como se o ameaçasse com o olhar. Billy reparou e riu, pois não era possível um bebê fazer isso. Tirou um cigarro do bolso e seguiu seu caminho.

-Nelly , tenho que te perguntar uma coisa. Sei que talvez esse assunto doa ainda.- perguntou Jamie quando eles estavam no carro.- Mas queria saber se... Queria saber...

-Se o Billy fez alguma coisa comigo? Acho que já deve ter percebido que a resposta é sim.- Nelly respirou fundo antes de dizer- Faz muito tempo, mas marcas de abuso parece que sempre continuam.

-Eu sabia, mas ele vai pagar. Amanhã ele vai está de novo no set vou aproveitar para acertar as contas com ele. Desde o primeiro momento senti que tinha algo errado.

Nelly abriu a boca para falar algo, talvez um agradecimento ou um pedido dele resolver as coisas com paciência, mas antes que pudesse notou algo ao olhar pelo retrovisor:

-Jocie? A sua filha simplesmente evaporou do carro. – a menina estava na cadeira de bebê um segundo e no próximo tinha sumido.

Jamie parou o carro naquele mesmo momento assustado e olhou para trás na direção da cadeirinha vazia. “Jocie querida, o que foi fazer?” pensou preocupado.

*

Billy achava que um passarinho colorido estava seguindo o carro. O pássaro parecia voar baixo sempre mirando o veiculo dele.

-Essa cidade está cheia dos mais diversos pássaros. Deve ser coisa da sua cabeça esse negocio de perseguição. – disse para si mesmo. Ele sabia o que precisava para relaxar.

Chegou na sua luxuosa casa e foi tomar um longo banho. Estava ainda no banho quando começou a ouvir barulhos estranhos vindo do seu quarto. Ignorou. Estava cansado. Um barulho mais alto se fez ouvir e dessa vez teve certeza que algo estava errado. Se enxugou e vestiu rapidamente. Pegou um vaso que encontrou no corredor e se direcionou a passos lentos para o quarto. Morava apenas ele naquela casa, talvez se tratasse de algum ladrão.

Abriu a porta lentamente e encontrou uma garotinha de uns seis anos sentada no sofá do seu quarto mexendo em uma caixa cheia de DVDs e outras coisas. Sentiu um arrepio percorrer todo o seu corpo. Se aquelas gravações caíssem nas mãos de alguém estaria perdido. Mas uma menina daquela idade e tamanho não entendia ainda a gravidade do que tinha nas mãos. E além disso, a companhia dela seria bem-vinda seja lá como a pequena tinha conseguido entrar. Ainda era uma garotinha.

-Olá, amiguinha. – disse se aproximando como quem não quer nada. Como sempre fazia.

-Você machucou a Nelly ?- perguntou a menina o encarando. Percebeu assustado que não era uma pergunta.

-Não, amiguinha. Apenas...brincamos. Podemos brincar juntos se quiser.

A menina se afastou com a expressão de raiva e repulsa crescendo em seu rosto.

- Você é um monstro e acho que merece conhecer um ser como você.- disse a pequena menina antes de mudar sua aparência para horror de Billy que não conseguia nem gritar diante o medo.

*

Jamie sabia que Jocie uma hora voltaria. Estava a esperando no quarto dela perto da janela, Nelly estava com ele com uma cara de muito confusa. Viram o momento em que um pássaro colorido pousou na janela e logo se transformou em uma garotinha. Notou que havia um pouco de sangue na roupa dela.

-Jocie, o que você fez?- perguntou Jamie se aproximando da filha – Está machucada?

-Fiz o que o senhor mandou fazer. O senhor disse que a gente ia descobrir o que o homem mau tinha feito com a Nelly e ia fazer justiça.

-Eu não te mandei fazer nada. Já falarmos sobre isso, Jocie.

-Desculpa, papai.- disse a menina o abraçando. Naquele abraço sentiu que a menina estava queimando de febre. Toda vez que ela mudava da sua forma de bebê ficava meio febril, mas dessa vez deve ter mudado muitas vezes e feito muito esforço.

-Tudo bem, pequena.- disse sentindo Jocie diminuir de tamanho e voltar a ser sua bebê.

*

-Vocês souberam do que ocorreu com o Billy?- comentava toda a equipe no set no dia seguinte- Ele está no hospital e ainda não acordou.

-O que ocorreu com ele?- perguntou Jamie como se não suspeitasse de nada.

-Encontraram ele na casa dele e pelo estado do ambiente parecia que ele tinha sido atacado por algum tipo de cachorro ou até tigre.

Jamie olhou para Jocie que estava em seu carrinho de bebê e a criancinha desviou o olhar para o outro lado. Depois falaria com ela.

Nelly chegou com mais animo, deu um sorriso para ele e outro maior para Jocie e quis logo gravar a cena final do filme.

“A mulher ouviu aquele barulho estranho e correu para a caverna. Talvez sua filha precisasse de sua ajuda. Ao entrar ficou chocada com o que viu. A bebê que ela carregava alguns minutos atrás estava transformada em um garotinha de uns seis anos. Estava sentada perto da fonte. Não se via sinais das criaturas. Pelas paredes e no chão da caverna haviam sinais de intensa luta que pelo jeito sua filha tinha levado a melhor.

-Mamãe, porque não vem beber um pouco de água.- disse a garotinha calmamente. –Aqueles seres maus não vão mais lhe incomodar.

No canto escuro da caverna as criaturas se encolhiam como se temessem uma das formas que aquela garotinha poderia ter.”

“Em Hollywood é difícil diferenciar o que é ficção ou realidade.” Pensou Jamie antes de gritar para a equipe:

-Corta. Fim de gravação.

Temas: Pré-história, água, metamorfo

Ana Carol Machado
Enviado por Ana Carol Machado em 30/04/2019
Reeditado em 03/07/2020
Código do texto: T6636234
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