O demônio de Isabela - DTRL34 - Poemas Sombrios

DTRL34 - Poemas Sombrios

Tema: Critica Social

Autorizo a publicação e divulgação do meu texto nas mídias do DTRL.

A chuva fria caia lá fora enquanto Isabela terminava o dever de matemática. Conferiu a ultima resposta no final da apostila, viu que estava correta e fechou a brochura. Guardou tudo na mochila e deu uma esticada no corpo. Estava naquela cadeira a horas.

Naquela noite, após terminar a sua refeição, ela sentou-se no alpendre da casa com um livro na mão e ficou lá ora lendo, ora vendo a chuva cair. Um jovem rapaz vestido com uma calça jeans e camiseta preta passava correndo. Ele não se importava em não se molhar visto que estava com os pés na enxurrada que vinha se acumulando. Um carro preto passava com os faróis acesos. Uma forte luz se formou no horizonte, e segundos se passaram antes que pudesse ser ouvido o estouro do trovão. Aquilo a despertou de sua quase complacência.

O susto foi tanto que deixou escorregar o livro que estava em suas mãos. Abaixou-se para recuperar o Saramago derrubado e marcar a pagina do conto que estava lendo. Sabia que o conto se chamava “O Centauro”, mas precisou de alguns minutos para achar a parte até onde lera.

A chuva continuava a cair, agora mais forte. E a luz dos relâmpagos lhe incomodava a visão. “Estavam próximos”, pensou. Cerrou os olhos para apreciar melhor aquilo. E, naquele momento, em que tentava focar a visão no horizonte, uma imagem esfumaçada começou a se formar em frente a janela do alpendre. Ela não deu muita confiança a princípio, achou que era só uma ilusão de ótica por estar com os olhos cerrados, mas em determinado momento a figura estava cobrindo quase toda a sua visão. Ela virou sua atenção para aquela massa que se formara a sua frente.

A figura, se é que podemos dizer assim, se caracterizava por uma ausência de luz, no sentido de não refletir a luz que vinha do poste da esquina. Parecia que toda a luz era absorvida, como se fosse um buraco negro. Uma capa de tecido velho e rasgado cobria quase toda a sua extensão, deixando apenas dois buracos que emitiam luz branca. Emitia um barulho ruidoso, não alto, mas parecido com uma respiração forçada. Não sabia dizer ao certo se continha um aspecto humano ou animal. O coração de Isabela disparou, sua respiração ficou ofegante, mas ela não conseguia se mover. Estava congelada de medo.

Foi quando ouviu uma voz vindo da sala. Sua mãe estava chamando por ela. A luz do alpendre foi acesa e a figura desapareceu da visão de Isabela. A mãe estava dizendo que era hora de dormir. “Amanha tem aula”, dizia enquanto se aproximava da filha. A garota olhava fixamente para a janela, tentando discernir algum contorno, alguma coisa que lhe dissesse que foi só uma ilusão, nada demais.

***

Isabela acordou no dia seguinte determinada a não dar importância ao que acontecera na noite anterior. Seu lado racional a dizia que foi só uma impressão. Ao sair de casa para a escola, um frio percorreu seu corpo ao rever sob a luz do dia o local em que os estranhos acontecimentos da noite passada aconteceram. Sua mãe deixava umas plantas próximas a janela do alpendre. A explicação de Isabela para sua visão foi de que provavelmente o reflexo das plantas na janela confundiu sua cabeça. Tinha muita coisa acontecendo, e ela se deixou levar.

As aulas transcorreram normalmente, sem grandes desafios. Era uma aluna mediana-boa, não excelente, mas ia bem na escola. No recreio, ficou com seus amigos de costume. A conversa do dia era sobre como a Fernanda, colega de sala, estava ficando mal falada. A Fernanda foi vista se esfregando com um rapaz nos fundos do muro da igreja. E essa era a terceira vez que isso acontecia. “Aquela lá cobra um real para fazer as coisas”, diziam os meninos da sua sala. Isabela sentia que devia concordar com eles, apesar de sentir um certo aperto no peito. “E se descobrirem o que eu fiz?”, pensava.

Após o fim do recreio, todos voltavam para a sala de aula. Um dos amigos de Isabela passou perto da Fernanda e falou algo com ela que deflagrou uma discussão. Isabela entendia o que estava acontecendo. Seu amigo provavelmente insinuou que Fernanda era uma prostituta. A turma do “deixa disso” chegou, e os ânimos foram contidos, exceto por Isabela que podia sentir o olhar de Fernanda, mas não conseguia levantar a cabeça para encarar a outra garota. O aperto no peito aumentou de intensidade.

***

Na reunião do grupo de oração que ocorre toda semana após a aula e é presidida pelo padre Armando, diretor do colégio, Fernanda sentou-se mais isolada dos demais estudantes. Isabela notou o isolamento da colega. Durante toda a reunião, manteve sua atenção dividida entre os preparativos para a missa da juventude e Fernanda. A garota passou todo o tempo sentada num canto, rabiscando alguma coisa num pedaço de papel. Isabela estava com calafrios.

Isabela ficara responsável por ler alguma coisa na missa relacionada a importância da castidade, mas não sabia bem o que era. Seu foco era Fernanda. Ao final da reunião, todos rapidamente se levantaram e saíram da sala, exceto Isabela que viu que Fernanda deixara o pedaço de papel na carteira em que estava sentada. Ela correu para ver o que estava escrito.

O Diabo me quer e me procura,

Como um predador e sua presa.

Para o que eu sinto não há cura,

E nem chance de ser coesa.

Ao ler aquilo, os cabelos na nuca de Isabela se eriçaram. Ela sabia do que Fernanda estava falando porque também sentia aquilo. A diferença entre as duas era que enquanto Fernanda escancarava a verdade e a dor, Isabela enterrava cada emoção mais profundamente em sua alma. Estava sendo atormentada por sonhos, pensamentos e até mesmo vendo demônios, mas não queria que o mundo soubesse de seus encontros secretos contra a vontade de Deus. Afinal de contas, ela sabia que isso não tinha perdão e que se sua família e o pessoal da igreja soubessem, sua vida como conhecia estaria por um fio.

***

O medo crescia dentro de Isabela. Ela sabia que Fernanda estava por um fio. A qualquer momento, ela podia perder tudo. Não achava que Fernanda conseguiria guardar segredo. As vezes guardamos tão profundamente nossos segredos que nos surpreendemos quando eles vêm à tona em nossos pensamentos. E os pensamentos de Isabela estavam gritando dentro da sua cabeça. Tanto que tinha até medo que sua mãe pudesse ouvi-los.

A mãe de Isabela, notando o silencio da filha, mas inconsciente da batalha que estava sendo travada na cabeça da menina, começou a puxar assunto. “Sabe quem eu vi hoje na feira? A mãe da Fernanda. Ela disse para você ligar para a Fernanda.”, disse a mãe. Isabela tremeu-se toda. “Ah, tá’”, disse sem querer esticar assunto. A mãe, notando que havia algo nessa história, intrometeu-se mais um pouco. “Filha, está tudo bem? Vocês sempre foram unha e carne. Estou estranhando seu comportamento.” E Isabela sorriu para despreocupar a mãe. “Não tem nada não, mãe, está tudo bem”.

Mas Isabela sabia que não estava tudo bem. Desde aquele dia no muro dos fundos da igreja a amizade entre as duas passou por um turbilhão de emoções. Isabela tem uma memoria confusa sobre o que aconteceu, mas ela sabe que aconteceu, e sabe que foi errado, que foi pecado. Não podia arriscar que ninguém soubesse, nunca. Tinha que conter Fernanda, que estava lidando com aquilo de jeito ruim. Tinha que calar sua amiga.

Resolveu então mandar uma mensagem para Fernanda, perguntando se podiam conversar. Depois de algumas mensagens trocadas, bem secas, decidiram se encontrar na biblioteca da escola, que ainda estava aberta e era pouco frequentada. Se encontraram, como de costume, na seção mais deserta. E Isabela foi clara: “Você tem que parar de agir assim. Está colocando nós duas em risco. Você pelo menos imagina o que minha mãe faria se descobrisse? O que padre Armando faria se descobrisse?”, inquiriu.

“A vida pertence a nós. Somos nós que temos que decidir. Você que está me ignorando. Você sabe que aconteceu algo importante, e não adianta lutar contra. Não tem volta. Deixa de ser hipócrita e assume para você mesma!”

“Não fala comigo assim. Você tem que se acalmar. Se você quer estragar sua vida, vai. Estávamos sob uma influência maligna. Foi obra do diabo aquilo que aconteceu. Você não consegue ver? Temos que liquidar este sentimento em nós mesmas.”

“Não, não temos. Temos que aprender o que fazer com esse sentimento. Eu não te desejo mal nenhum...”

“Mas parece que deseja sim. Onde já se viu deixar um poema falando do demônio em cima da carteira. E se alguém visse? Isso geraria perguntas.”

“Não estou nem aí.”

“Pois deveria.”

“Você precisa aceitar.”

“Eu aceito que estou sendo tentada. Eu aceito.”

“Eu deveria contar a verdade para todo mundo. Seria mais fácil para você.”

“Não se atreva. Eu te mato.”

“Pode ate matar, mas duvido que não vai tirar uma casquinha.”, provocou Fernanda.

A vergonha daquela insinuação tirou Isabela do sério. Para ela, aquilo foi a comprovação de que estava sendo tentada e precisava agir e cortar o mal pela raiz. Fernanda era a sua tentação, aquilo que a fazia cair em pecado e desgraça. Ela sabia que tinha que agir. Este era o momento para ação.

Dominada pelo medo e pelo fervor religioso, ela viu uma figura se formar no canto da biblioteca, perto de onde estava. Ela soube o que precisava ser feito. Sorriu para a Fernanda, um sorriso quente e descontraído e passou as duas mãos pela cabeça de Fernanda. Fernanda relaxou. Isabela continuou descendo as mãos até parar no pescoço de Fernanda e começou a acariciar gentilmente a amiga. Fernanda riu e fechou os olhos. Isabela puxou a cabeça da amiga para perto e lhe beijou a boca enquanto apertava com toda força o pescoço de Fernanda. Quando Fernanda percebeu o que estava acontecendo já era tarde. Tentou lutar, tentou soltar as mãos de Isabela, mas não havia mais ar, não havia mais força em seu corpo. A visão foi ficando cada vez mais escura ate que o tempo parou. O corpo imóvel de Fernanda foi deixado ali, nos fundos da biblioteca e só foi notado no dia seguinte. Isabela não foi a aula naquele dia.

Patricia Onofrio
Enviado por Patricia Onofrio em 29/04/2019
Reeditado em 30/04/2019
Código do texto: T6635272
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