Meu carro velho

Meu nome é Josiel, tenho 36 anos de idade. Moro sozinho e trabalho com vendas por atacado, ou seja, eu sou aquele cara que vende os produtos das distribuidoras para as lojas através do aplicativo das empresas para a qual eu trabalho no meu celular. Tenho um carro meio velhinho que uso pra trabalhar, que já tem seus bem rodados 75.000 km de uso em 15 anos. Já está até com o barulho do motor meio estranho de tanto rodar o dia inteiro pela cidade toda.

Hoje eu acordei disposto a cumprir a meta de vendas para ver se ganho o tão sonhado bônus que a empresa só dá a quem cumpre a meta mensal, da qual eu nunca consegui cumprir antes. Acordei mais cedo, treinei durante uma semana o meu jeito de falar e de me comunicar com os clientes. Ter uma boa lábia é de grande valia na minha profissão. Como em todos os dias, tomei meu banho, escovei bem os dentes e bebi o café apressadamente. Calcei os sapatos, que eu engraxei no dia anterior e estavam brilhando. Fiz a barba, coloquei o meu melhor perfume e escolhi a minha melhor camisa. Hoje eu quero impressionar!

Quando fui à garagem, entrei no carro e quando liguei, o motor de arranque começou a falhar. Pensei: “Ah, não! Hoje não! Funciona, carrinho, pelo amor de Deus!” Saí do carro e vi que o conector da bobina estava frouxo. Peguei meu alicate, apertei o conector e aproveitei pra verificar todas as outras conexões e emendas elétricas. Refiz uma emenda frouxa do fio do motor de arranque. Entrei no carro e consegui ligar sem problemas.

Visitei o primeiro cliente. Sucesso! Vendi mais do que eu imaginava vender à ele. Fui ao segundo cliente. Este não comprou o de sempre. Deixei de vender dois produtos, porque o comércio dele está indo mal e ele está prestes a fechar as portas. Derrotas da vida. Sem elas as vitórias não teriam nenhuma valia. No meio do caminho para o terceiro cliente, o motor do meu carro desligou. Justo no meio de uma espécie de floresta que eu estava rapidamente cruzando para chegar mais rápido ao outro lado da cidade! Um atalho que a maioria da população não utiliza, por conta da fama de a floresta ser assombrada. Saí do carro e verifiquei tudo. Bateria carregada, gasolina a meio tanque, todos os fios e conexões no lugar. Nenhuma mangueirinha vazando. Óleo ok. Nada frouxo ou solto. E agora? Não tenho dinheiro pra chamar um mecânico. Esse maldito carro tinha que “travar” justo hoje? Justo aqui? Justo agora?

Tentei virar a chave outra vez. Nem o motor de arranque deu sinal de vida. Abri o capô outra vez e verifiquei toda a fiação desde a bateria até a chave de ignição e Dalí até o motor de arranque. Nada de anormal. Verifiquei a bateria outra vez: 13,8V / 36 A. Carregadíssima! O que está acontecendo afinal!? Será que a fama de assombrada da floresta é real? Olhei o meu celular e este ficou com a tela toda quadriculada e colorida, emitindo uns sons estranhos bem baixinhos, semelhantes a pequenos gemidos. Aí eu comecei a ficar com medo. Gritei:

- Oh! Espíritos da floresta! Eu só quero sair daqui pra continuar o meu dia de trabalho! Desculpem se invadi um lugar sagrado sem saber! Por favor, permitam com que o meu carro volte a funcionar!

Voltei para o carro e nada de funcionamento. Saí e percebi que dentro do carro, os “gemidos” no celular desapareciam. Assustado, peguei o meu revólver calibre 38 no porta luvas, um facão que eu tinha na mala do carro para cortar aquele matagal e saí floresta adentro para o lado onde os “gemidos” no celular ficavam cada vez mais altos e começavam a tomar a forma de palavras incompreensíveis misturados a sons de máquinas e de fritura. Conforme eu fui chegando perto de uma grande clareira, vi algo estranho, parecia uma porta no meio de uma montanha, cheia de mato em volta e com um cheiro horrível. A porta era enorme, devia ter uns 5 metros de altura por 2 de largura. Já que eu havia cortado o mato na minha frente até chegar ali, eu pensei: “Eu tenho que descobrir o que está paralisando o meu carro, ou não vou conseguir sair daqui.”

A maçaneta da porta, ficava a dois metros de altura. Pensei em pegar alguma coisa ali que me servisse de escada improvisada, mas quando eu estava explorando o cenário em volta da porta, uma cordinha laçou o meu pé e eu fiquei pendurado de cabeça pra baixo. Putz! Só me falta ter sido pego por alguma tribo de canibais! Com o susto acabei deixando sem querer o celular, o facão e o revólver caírem no chão.

De repente, o que parecia ser um homem, com a pele esverdeada medindo 3 metros de altura, trajando uma calça social, camiseta de malha e tênis saiu da porta e começou a me tirar daquela armadilha. Ele foi me levando segurando pelas pernas de cabeça pra baixo. Eu disse:

- O que é você? O que vai fazer comigo?

A resposta foi um “Ssssshhhhhh!”

De repente ele passou por outro sujeito parecido com ele, que disse:

- Opa! Hoje o churrasco vai ser sinistro!

- Esse aqui eu to observando a um tempão. Quando eu vi ele entrando na floresta de carro, parei o carro dele e buguei o celular pra atiçar a curiosidade dele. Quando ele veio atrás do meu sinal, eu capturei.

- Maneiro!

Era surreal como aquelas criaturas falavam de mim, como se estivessem falando de um frango ou coisa assim. Instintivamente, eu disse:

- A minha carne é muito ruim! Você não vai gostar de mim!

Era uma coisa meio infantil pra se dizer em um momento como aquele, mas a primeira coisa que o sujeito perde em um momento como este é o raciocínio. Ele me deu dois tapinhas no tórax e disse:

- Fica quietinho, fica.

Enquanto ele me levava por uma espécie de vilarejo, vários iguais a ele o cumprimentaram. Chegamos então à uma espécie de restaurante, onde ele foi logo me levando para a cozinha, me amarrou as pernas com uma pequena corda e através da corda me pendurou de cabeça pra baixo a 1 metro do chão. Então eu vi uma mulher humana que há 5 anos eu não via! Minha ex, Mariana, que foi casada comigo durante 4 anos estava trabalhando de cozinheira para aqueles reptilianos gigantes. Com um cutelo na mão direita e um sorriso sarcástico no seu lindo rostinho, aquela mulher de 1,90m, cabelos pretos e lisos, olhos verdes, trajando um vestido longo xadrez laranja/amarelo e botinas de couro marrons, me olhou e disse:

- Huuuummm! Esse eu vou usar o meu tempero especial!

Indignado, eu gritei:

- Sua vadia! Você vai ver o tempero quando...

Ela chegou perto e encostando a lateral do cutelo na minha bochecha, dando duas batidinhas de leve, em tom sarcástico, disse:

- Quando o que? Quando eu te destrinchar todinho e te servir com salsa e pimenta pra estes répteis?

O sujeito que havia me levado até ali deu uma risadinha e disse:

- Ta nas tuas mãos, Mariana. Só quero ver o resultado.

- Em duas horas fica pronto, Patrão.

O reptiliano foi embora. Mariana então começou a cortar a minha camisa com uma tesoura de costureira. Ao ver ela cortando, eu disse:

- Eu não faria isso se fosse você!

- Você é cara de pau, hein, ô cara! Primeiríssimo de tudo, eu trabalhei duro pra te presentear com essa camisa, pra uma semana depois você me dar um par de chifres com aquela pirralha!

Mariana, apesar dos 34 anos de idade, tinha o corpo malhado de academia e por isso estava bem mais ‘sexy’ do que muitas adolescentes por aí. A tal ‘pirralha’ da qual ela falava tinha a mesma idade dela, que por ter só 1,60m, Mariana chamava de ‘pirralha’. Na verdade, aquela tinha sido a minha primeira namorada e nós só estávamos matando a saudade de quando éramos namorados. Só uma ficada, só uma transa, mas Mariana não sei como descobriu e isso causou a nossa separação. Eu sempre percebi que Mariana tinha força e agilidade incomuns, mas sempre pensei que fosse fruto de ela frequentar academia. Nunca imaginei nem de longe que ela fosse uma reptiliana, ou que reptilianos existissem, pois até hoje eu nunca acreditei nessas coisas.

Aquela bela mulher foi cortando toda a minha roupa me deixando nu. Logo em seguida, ela colocou uma enorme panela sobre o gigante fogão e começou a refogar cebola e alho. Ela disse:

- Huuuummm! Você não adora o cheirinho de cebola refogada?

Uma coisa eu tinha que admitir. Mariana era uma cozinheira excepcional. E realmente o cheirinho daquela cebola refogada no alho e óleo por ela estava o máximo! O que me incomodava seriamente era o fato de eu ser o prato do dia. Conforme foi fazendo os temperos e esquentando as panelas, ela foi comentando com tamanha frieza e sarcasmo como iria cozinhar as partes do meu corpo para os seus patrões, que aquilo me dava uma leve esperança de ser tudo uma brincadeira ou coisa assim. Até o momento em que ela pegou uma faca grossa, bem limpa e afiada e cortou a minha veia coronária, coletando o sangue que escorria do meu pescoço com uma panela. Senti a dor do corte e conforme o sangue foi jorrando da minha veia para dentro daquela panela da qual a cozinheira segurava esperando pacientemente o sangue acabar de espirrar, fui perdendo os sentidos e desmaiando aos poucos. Antes de ‘apagar’ totalmente a ultima coisa que eu vi foi o sorriso sarcástico de Mariana enquanto ela me dava um beijo selinho na boca e logo em seguida dizia:

- Tchau, meu ex-amor! É hora de mostrar aos meus chefes o quanto você é gostoso!

E foi assim que eu morri.

FIM

Para aqueles que perguntarem “O que o carro velho tem a ver com o final da estória?” a resposta é simples: Se ele tivesse levado o carro no mecânico pra fazer um check-up ao invés de insistir em usar o carro do jeito que estava ou não tivesse utilizado um atalho por não confiar no carro, ele estaria vivo e não morto, temperado, cozido e servido no almoço.

Eduard de Bruyn
Enviado por Eduard de Bruyn em 29/04/2019
Código do texto: T6635082
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2019. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.