O FERRO-VELHO

Na fatídica noite que os céus lançavam a escuridão sobre o mundo, o meu ferro-velho era sempre o mais iluminado; o mais temeroso com sua incandescência. A lua era um mirante no céu negrito, nada escapava dos seus olhares brancos penetrantes. Estava sempre de olho nos meus carros velhos e enferrujados, tomados pelo tétano, nos confins circulares de uma cerca mal construída. Seu brilho reluzente refletia-se nas córneas das ratazanas grotescas de rabos escalpelados, do tamanho de um gato persa, que nas brechas escuras e úmidas do lixão viviam entocadas. Tudo, exatamente tudo, qualquer que fosse o movimento, ou reboliço entre as latarias empilhadas; ou entre os montantes de lixos amontoados do outro lado da imundice em que a minha velha existência parecia ter significado, nada escapava da sua vista.

Testemunha das minhas ruínas e das minhas preces diárias, ela sabe que tudo que fiz aqui nesse lugar foi por defesa, isso fora tudo que me restou, era do meu pai que herdara do dele e que há trinta anos herdei. Eu não saberia dizer com que proposito os homens tentam tomar coisas que não lhes pertencem. Talvez seja o diabo com olho gordo olhando através dos olhos dos homens, ou só a ganância comum do todo. Seja qual for à conclusão que se tire disto, a lua sabe que não tenho coragem de fazer mal a uma mosca. Bem, no entanto, aquele miserável era uma tremenda mosca, quase não parava de zombar nos meus ouvidos, dia e noite. Decidi dar um fim a sua zombaria, que já me atordoava os tímpanos a um bom tempo.

Certo dia ele veio novamente no meu lar enferrujado, eu já estava exausto, após carregar entulhos o dia todo. Não tinha tomado o meu banho semanal, estava fedido como um gambá, também não tinha jantado ainda e o suor escorria de todos os lugares, às vezes eu mesmo não aguentava ser tão rabugento. Minhas roupas, se é que devo chamar assim, eram apenas trapos que mal me cobriam por completo. A camisa continha bastantes furos na frente, deveria ser de alguém fuzilado na grande guerra, cujo nome não consigo entender por estar um pouco apagado. Encontrei-a enquanto procurava pilhas velhas para o meu rádio, também velho. Minhas botas eram particularmente canoas, a princípio, canoas furadas, onde meus dedões penetravam com facilidade nas suas extremidades.

Vi o falastrão de longe, não passaria despercebido, nem mesmo pelo meu único olho. A lataria do seu Mustang se destacava em qualquer ferro-velho, o ronco do motor, as laterais brilhando a luz do luar. Desceu do carro como se pisasse em ovos, vestia um terno preto, com gravata vermelha escura, a luz dos faróis irritava o meu olho. De todas às vezes que virá a meu lar, essa fora a única vez, vestido como se fosse um presidente americano. Seu terno brilhava na ascendência crepuscular, seu perfume deveria ser o mais caro das ‘vitrines’, mas tudo isso pouco me importava. Veio desfilando em meio às imundices que o rodeava, espantara ate os abutres mais famintos, que destroçavam restos de algum bicho no cume de uma pilha de destroços a lua cheia.

— Ora, como vai Dr. Orbes? Ainda apegado a esse monte de detritos?

Disse o jovem engomadinho, surgindo iluminado pelos faróis do Mustang, levando a mão ao nariz, acho que o meu odor fora mais forte que o seu perfume de milionário!

— Doutor? Não ouvia essa palavra a bastante tempo, acho que se tem metido demais na minha vida, não acha rapaz? — olhava-o com um sorriso sínico nos lábios.

— Ainda não sei o bastante sobre o Sr. Não o suficiente para tira-lo daqui de uma vez. — Assentiu rapaz espremendo os olhos com desprezo, olhando tudo em volta.

Comecei a empurrar o carrinho de mão cheio de entulhos, olhando para o cume, rodeado de abutres.

— Olha meu rapaz, você não é o primeiro que tenta-me tirar do que é meu, e com certeza não será o último, dei quantos avisos pude. Mas vocês, engomadinhos da Wall Street se sentem na autoridade de pisar em quem quer seja, como se as pessoas fossem o monte de merda.

O rapaz colocou as mãos nos bolsos, olhando para o céu, em seguida seus olhos desciam e caminhavam até minhas botas furadas.

— Quanto quer por todo esse monte de lixo que você julga ser o seu precioso lar? — Subiu seus olhares para o meu único olho.

— Nada aqui está à venda, você é burro meu rapaz?!

O garoto embrulhado de terno insistia sem pestanejar. Era uma cobra no meu encalço.

— Vá velhote, diga seu preço! Pago o que você quiser.

Meu interior dizia algo macabro de como lidar com aquela situação ferrenha.

Então lhe propus algo. — Venha comigo, meu rapaz, quero que veja algo, isso o fara mudar de ideia, eu não tenho menor dúvida quanto a isso.

Passaram-se dias, muitos dias. Ninguém veio atrás desse, talvez não fosse importante o suficiente para a classe alta de Nova York. Esse fora um dos que me dera mais trabalho, mas no fim, ele também acabara no alto dos detritos, e depois no estômago do abutre, e por destino da natureza se tornara um montante de bosta, a mais fedida. Ele não gemeu muito quanto a sua morte, já havia preparado os mínimos detalhes. Só esperava apenas pela ocasião que chegou antes que o esperado. Levei-o até a minha pequena cabana, contornada por papelão e garrafas plásticas. Segui a sua frente, enquanto ele vislumbrava os retratos dos meus ancestrais, desferi um golpe certeiro no seu olho com um martelo. O rapaz era frágil demais, pensei que fosse duro na queda. Caiu à cima da minha pequena mesa, que já estará arruinada pelos cupins. Seu rosto parecia derreter-se em sangue. Parti para cima dele, segurando-o pelo pescoço, enquanto ele se debatia como uma ave, dando-lhe mais uma martelada, dessa vez o golpe desferido acertara o nariz, jorrando sangue em minhas mãos. Não fora o crime perfeito, mas fora um dos mais excepcionais entre todos.

Ele adormeceu, não sabia se havia morrido por completo, então levantei o martelo o mais alto que pude e enterrei no seu crânio, bem na sua testa, abriu-se uma cova funda. Aquilo foi um ‘show’ de insanidade. Seu sangue espirou na parede como se fossem pinceladas de um artista louco. Seus olhos estufados sem vida pareciam se arrepender de terem me conhecido, seu terno cintilante vestia um cadáver em meu pequeno aposento. Sou um ser repugnantemente curioso, virei-o de bruços e martelei sua cabeça, batendo cautelosamente em seu crânio, abri em duas partes, vislumbrei o seu cérebro pulsar, e morrer lentamente. Arrastei seu cadáver por entre os lixos, ratos e baratas, até topo mais alto do ferro-velho, despejei seu corpo sobre a ossada de outros aventureiros da floresta de pedra. Não tardou muito para que corvos e abutres brigassem por suas vísceras no luar! Oh, Deus! Aquilo foi clássico. A lua como sempre presenciou cada detalhe dos meus feitos, sendo a minha eterna cúmplice.