Hereditário e congênito (terror mais ou menos)
O dia chegou, devagar, nebuloso e modorrento, prenúncio de um dia chato. Ah, vontade de não sair da cama, de ficar morcegando e tirando meleca. Mas já já a voz de megafone da minha mãe vai atravessar as paredes da casa e chegar aqui, avisando que é hora de ir para a escola. Mas eu estico a preguiça até ela vir bater na porta, ameaçando com todas as pragas infernais que conhece. Minha mãe deve ter sido uma das bruxas de Salen, executada na fogueira e eternamente indisponível ao bom humor
- Michaelaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa. Acorda, peste imprestável e preguiçosa.tira esse busanfan da cama e desperta pra vida, que a vida não vai esperar por você. Anda logo, coisa ruim, mini projeto do rabudo de tridente.
Minha mãe é um anjo de candura. às vezes eu penso que não sou realmente filha dela, que fui adotada ou encontrada numa lata de lixo. Sabido foi o meu pai, que saiu num domingo pra comprar cerveja e cigarro e não voltou mais. Já faz alguns anos. Eu tenho a impressão que minha mãe, até hoje não notou a ausência dele pois seguiu a vidinha morna como se nada tivesse acontecido. Não chorou - bruxa chora?- não reclamou e nem esbravejou como costuma fazer sempre que algo não sai ao seu gosto. Então, a conclusão é de que ela gostou que ele tenha saltado de banda e sumido. Enfim, é hora. Levanto e calço as meias, pretas, calço as botas, pretas, calça comprida preta, mais apertada que shortinho da Anita, coloco a blusa da escola e sapeco uma camisa de manga comprida, preta, assim escondo a vergonha. Desço lentamente as escadas como se arrastasse uma corrente com bola de ferro pesando 30 kilos na outra ponta. Na mesa o leite, a manteiga, os pães quentinhos, queijo e o iogurte. So porcaria. Pego dois ovo e o bacon fatiado na geladeira e vou fazer um Big qualquer coisa, fajuto, suburbano. Caramba. É fumaça e gordura na cozinha toda. Mó barato. Corro e fecho a janela, que é para concentrar bem a gordura e o vapor. Coloco um refrigerante num copão de plástico com escudo do Vasco, cato o sanduba e uns guardanapos e me mando antes que as pragas e a gritaria balance as paredes dos vizinhos. Na saída dou um bico nos pratos de ração e água do cachorro do meu irmão. Nãooooo, meu irmão não é um cachorro, ele tem um cachorro. que meleca. dá vontade de bater, espetar alfinetes em gente que não entende o que lê. Por azar ou maldição a escola fica a apenas uns 400 metros da minha casa. Dou uma olhada no programa de aulas e vejo que a primeira aula de hoje é de ingles. Definitivamente o dia hoje vai ser sombrio. Dona Ivone, professora de ingles, voz fanhosa, fala mole e óculos de mister Magoo. Eu mereço. Procuro um chicletes na mochila. Vou colocar na cadeira da D Ivone e fazer cara de noviça de filme dos anos cinquenta. Tá pensando o que? Que sou ignorante? Sou não. ou fã de filmes dos anos cinquenta. Droga. Eu sabia que o dia ia ser cinzento. Por que é que eu tinha que passar pelo Rúbio logo cedo? Cara pegajoso, só sabe falar usando as mãos e cospe enquanto fala Sem contar o mal hálito. O massacre da serra elétrica é comédia perto do Rúbio. Mas o pior de tudo, o drama, o fim do mundo é que ele espalha pra todo mundo que é meu namorado. Um dia eu tomo coragem, escrevo pra Ana Maria Braga pra ver se ela, que sabe tudo , me indica um psiquiatra, de preferência, bonitão e gostosão, que me esclareça o por que de tudo o que é sinistro só acontece comigo. Que sina.
Que meleca. ninguém me entende. E eu só tenho 11 anos. Vou ter muito o que sofrer.