Mortos de Fome
Lara Koyama era uma mulher jovem, interessante e magnética, tanto com os homens, quanto com as mulheres. E não só pela exímia harmonia de suas curvas, mas também um esmero em se portar, se vestir, falar e ainda pelas extasiantes fragrâncias que utilizava. Era professora de Inglês. Não tardou para que fizesse amizades no seu novo local de trabalho, em especial com a docente de Artes, Harumi Kimura, e também com o de Educação Física, Keiichiro Shimizu, com o qual floresceu mais do que uma amizade.
O fim de semana havia chegado. Os três foram a um passeio pelas trilhas que levavam a uma montanha, lugar belíssimo, tranquilo, onde poderiam passar algumas horas deleitáveis. A simpática professora de Artes trazia sua biwa, um tradicional instrumento japonês de cordas, cujo som também era adorado pelos amigos. A ideia foi de Keiichiro, a princípio, tinha convidado apenas Lara. Naquele clima agradável, talvez, teria a deixa para um flerte – na verdade, queria pedi-la em namoro, mas só o faria se estivesse seguro diante da conjuntura. Contudo, quando percebeu que mesmo o interesse sendo recíproco, a moça estava hesitante e discorrendo subterfúgios, disse que convidaria também Harumi. Agora, lá estava o trio.
A temperatura apresentava-se amena. Após uma caminhada que durou cerca de uma hora, pararam num determinado ponto e sentaram. Harumi retirou a biwa da capa e se pôs a afinar o instrumento, enquanto o casal não assumido conversava assuntos aleatórios. A musicista começava a tocar algumas canções. Os amigos ouviam e observavam jubilosos, mas a atenção direcionada a Harumi se dissolveu. Uma garoa bem fina se iniciou. Lara e Keiichiro trocando olhares e sorrisos; com pensamentos cálidos e concupiscentes... Porém, o momento tão aprazível recebeu um ríspido corte. O chuvisco tinha cessado. Uma atmosfera macambúzia se instaurava no local.
Aproximadamente trinta minutos depois, de modo inexplicável, o clima aprazível de antes, agora jazia esfacelado, o ânimo do trio começou a esmorecer, foram dominados por uma sensação de fadiga, indisposição e fome aguda. Harumi já havia parado com a música. Eles se olharam, como se tivessem o dom da telepatia, a extrema necessidade de se alimentar vociferava em suas cabeças, seguindo de tétricas contrações em seus estômagos. Com uma fome voraz, Keiichiro abriu sua mochila às pressas para apanhar uns alimentos, no entanto, foi arrebatado por um assombro; tudo estava podre, chegando a exalar um cheiro repulsivo e insólito, com vermes se rastejando pela comida, o rapaz exclamou – as moças deram um grito, tomadas por um ímpeto de regurgitar – num misto de asco e raiva, arremessou a mochila com os alimentos longe, bradando palavrões. Os jovens, incrédulos, balbuciaram e permaneceram estarrecidos com aquele fato ininteligível, eles tinham comprado aqueles alimentos poucas horas atrás, numa loja de conveniência. Mas aquilo foi apenas o início de uma obscuridade ainda maior, o prelúdio de um concerto infesto que eclodiria.
...
Cansados, famintos, com humores execráveis e silenciosos, faziam o caminho de volta, mal podiam esperar até chegar ao estabelecimento mais próximo para comprar comida. Harumi foi subjugada por uma má sensação, calafrios e um súbito medo. Logo, começou a escutar vozes surrando em seus ouvidos. Lara infere a expressão facial estranha da amiga, quebra o silêncio e a indaga. A princípio, a professora de Artes não conseguiu compreender, e as vozes insistiam. Mas então, depois ela identificou as palavras: Darui... Himojii... Hidarui... Aquilo foi se repetindo durante alguns minutos.
Keiichiro teve uma síncope, caiu de bruços. Elas presumiram que a fraqueza havia chegado ao ápice. As docentes realizaram os estímulos para que o rapaz voltasse, não havia sinais de respiração, tentaram a reanimação cardiopulmonar. Todavia, o coração já tinha parado de bater. Mas num átimo, ele desperta com a visão arregalada. Na sequência começa a se debater, seus olhos reviravam, salivava com opulência. A pupila desapareceu por completo, ficando apenas a esclera. Escorria muito sangue de sua boca, visto que mordia a língua sem parar, estava devorando seu próprio órgão. Sua pele passou a ficar num tom azulado e foi escurecendo gradativamente. O corpo se transmutava num aspecto intangível, fumegante e num breu total, entretanto, possuía contornos antropomórficos. Havia se transformado num ser errante, um abantesma que era conhecido como Hidarugami...
As professoras já tinham escutado sobre aquilo, porém, achavam que não passava de lendas. Quando alguém assiduamente desperdiçava alimentos em vida, era amaldiçoado, e ainda, se perecesse em local profano, sem cerimônia fúnebre, era possuído por uma ou várias dessas entidades, que fazem suas moradas principalmente em trilhas, montanhas e florestas. O fim das vítimas era sempre morrer por inanição, mesmo que num corpo saudável, e por fim, se tornar um Hidarugami.
Fatidicamente, as duas professoras tiveram o mesmo destino.
F I M
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P S: Escrito dia 29/03/2019. O conto acima foi redigido com exatos 5000 caracteres, contando pontos, vírgulas, espaços e afins. Para quem desconhece o que isso significa, 5000 caracteres equivalem aproximadamente a duas páginas, digitadas no Word, em corpo 12, com fonte Arial ou Times New Roman. E creio que se fosse escrito à mão, seria mais ou menos isso também, duas páginas. Este é o primeiro conto pequeno, (miniconto talvez) que redijo.
Aceitei produzir assim devido a um desafio. Não costumo escrever narrativas tão diminutas, justamente pelas diversas limitações, impossibilidade de desenvolver um enredo consistente, empático e com personagens relevantes. Mas enfim. Este foi o resultado.
Pra você que leu até aqui, desejo-lhe um bom dia e um ótimo fim de semana.
Thiago S. Sevla