O nome dela não era Teresa. Era Olávia. Mas ficou conhecida como Teresa por causa de uma canção que Raul Torres e João Pacífico escreveram sobre uma cabocla que se envolveu numa história semelhante à dela. Aliás, a história dela se parece com a da Cabocla Teresa da canção, que virou clássico da música sertaneja raiz na voz de Tonico e Tinoco, e também tem a ver com outra canção famosa, o Mané Fogueteiro, composta pelo saudoso João de Barro, também conhecido como Braguinha.
Fatos como esse que inspiraram o presente conto acontecem em todos os cantos do sertão brasileiro e acabam se tornando paradigmas para os contadores de histórias e cancioneiros populares. Câmara Cascuco, por exemplo, era mestre em contar essas estórias, que muita gente jura de pés juntos que não de se tratam de estórias, mas de verdadeiras histórias.
Olávia era prima da minha mãe, e quem me contou esta, que para ela era história de verdade foi ela. Minha mãe dizia que a Olávia foi a cabocla mais bonita que já nasceu lá pelas bandas dos Campos Novos, aldeia perdida na Serra da Bocaina, perto de Cunha. Nos dias de festa na Igreja da aldeia ela vendia doces numa das barracas da quermesse. Os “cavaquinhos” (doce em forma de cvaquinho, feito de melaço de cana, temperado com especiarias), os doces de leite, as paçocas e os curaus que ela fazia eram divinos, segundo os freqüentadores da quermesse. Tão gostosos como os lábios carnudos que ela tinha, feitos, segundo confessavam alguns caboclos mais ousados, para um longo e suculento beijo, daqueles que a gente fica pendurado nos beiços da menina até a morte chegar com prazer.
A Olávia tinha uns dezesseis anos quando se casou com o Chicão. Esse era um caboclo parrudo, que estava pelos seus vinte e dois anos e trabalhava para uma leiteria em Cunha. Sua família tinha uma tropa de burros, na época o único meio de transporte de mercadorias daquelas paragens. Ele passava pelos sítios de Campos Novos, Bocaina e adjacências recolhendo o leite que as vacas da região produziam, e levava tudo para uma fábrica, na cidade de Cunha, onde se produzia queijo e manteiga, um dos produtos que fazia a fama da região, juntamente com os pinhões da serra, cuja produção era farta ali.
O casamento da Olávia com o Chicão, segundo os moradores de Campos Novos, foi o mais bonito que já se viu por lá. O Chicão tinha dinheiro e convidou todo mundo. Minha mãe dizia que foi a primeira vez que se bebeu vinho por aquelas bandas. Pelo menos foi a primeira vez que ela e meu pai provaram essa bebida. A igreja estava lotada e uns três bois foram mortos para satisfazer a fome dos convidados.
Isso aconteceu antes da revolução de trinta e dois, dizia a minha mãe, pois essa era a única referência que ela ainda tinha do passado dela lá na Serra da Bocaina. Lembrava-se que o exército paulista tinha arrebanhado os caboclos da terra e obrigado os coitados a abrir picadas na serra para eles assentarem trincheiras e deslocarem as tropas que se acantonaram na serra para tentar deter o avanço dos soldados dos federalistas de Getúlio Vargas. Meu pai foi um desses caboclos que cavou trincheiras para os soldados constitucionalistas e minha mãe odiava os paulistas, comandados de Isidoro Dias porque, segundo ela, foi por causa deles que meu pai perdeu tudo que tinha, pois eles não só requisitaram os burros que ele tinha para puchar os canhões que eles assentaram na serra, e não devolveram, como também confiscaram toda a safra de milho e feijão que ele guardava no paiol.
Agora, no casamento da Olávia, do que mais ela se lembrava eram os fogos. Nunca se vira, nos Campos Novos, um espetáculo daqueles. Morava por lá um rapaz chamado Gregório, moço talentoso, que além de saber ler e escrever - era o escrivão do cartório local - também se tornara especialista em espetáculos de pirotecnia. Era ele que organizava a queima de fogos em todas as festas da igreja e nas festas juninas das redondezas, quando Santo Antonio, São João e São Pedro eram homenageados por todos os portadores desses nomes com bailes, concorridas congadas e cateretês que só terminavam quando da fogueira acesa no quintal, ou em frente à casa, se extinguia a última brasa.
Linda Olávia, feliz Chicão. Não havia menina nas redondezas que não invejasse a cabocla pelo bom partido que ela arrumou. E não havia caboclo solteiro no pedaço que não invejasse o Chicão pela mulher bonita que ele levou para casa. A única coisa que ninguém entendeu bem foi porque ela chorou tanto na hora dos fogos. Não era para tanto, diziam as pessoas, pois mesmo sendo um espetáculo bonito, era banal. Ela e os habitantes de Campos Novos já tinham visto isso um monte de vezes. Talvez fosse a emoção pela beleza do visual, misturado com a emoção do casório, mas não era caso para se chorar tanto.
O estranho foi o que ocorreu depois. Minha mãe disse que o casal levou três dias para consumar o casamento. Isso foi a Olávia mesmo que contou para ela. Disse que ela não conseguia parar de chorar toda vez que o Chicão começava “a bulir com ela.” Ela resistiu até que ele ameaçou levá-la de volta para os pais. Aí então ela teve que ceder, pois essa seria uma vergonha insuportável para eles. Mas foi sem prazer nem alegria que ela se deitou com ele e lhe entregou a virgindade.
Esse prazer ela só foi experimentar uns meses depois. E não foi com o Chicão. Foi com o Gregório. O que aconteceu foi o seguinte. A Olávia na verdade, era apaixonada pelo Gregório. Desde os treze anos. Mas a família dele era inimiga figadal da família dela. Lá na serra tinha muito dessas coisas. É outro arquétipo comum que todo sertão cultiva. É preciso que existam famílias inimigas senão não é sertão.
Já ocorrera inclusive algumas mortes nesse conflito. Uns três anos antes do casamento da Olávia com o Chicão, um tio dela, o Genésio, havia sido morto numa emboscada e todo mundo sabia que quem o matara fora o pai do Gregório, um sujeito chamado Geraldo Lopes. Disputa de terras. Na serra, nessa época, ninguém tinha escritura de nada. Cada um ocupava tanta terra quanto queria e podia cultivar. E defender, pois sempre havia alguém para invadir a posse alheia.
Mas ninguém pode provar nada. O crime ficou por isso mesmo, até porque polícia, nesses tempos, quase não havia. Era uma tal de Guarda Nacional que fazia às vezes de autoridade policial e nem tinha gente suficiente para ficar cuidando dessas brigas de sertanejos.
Cada um que cuidasse de si mesmo e da sua família.Assim, em represália, o Benedito, irmão do Genésio, também matou a facadas um irmão do pai do Gregório numa briga de bar.
Lembro-me bem desse fato que minha mãe contava. Ela já havia se mudado de Campos Novos. Morava em Cacheira Paulista. Recebeu a notícia da morte do tio através de uma carta da Olávia que terminava assim: “ O tio Génésio morreu. O Geraldo Lopes matou ele a tiro. Mas não fique triste por isso não. O tio Dito já vingou ele. Matou Salustiano, o irmão do Geraldo, a faca. Tá tudo elas por elas.”
Isso foi antes do casamento dela com o Chicão. A história de Olávia com Gregório não tinha nada de Romeu e Julieta. Eles se gostavam, é fato, mas nunca tiveram coragem de desafiar as famílias para ficarem juntos. Se olhavam de longe, arriscavam, de vez em quando, um sorriso, uma piscadinha um para o outro, mas nunca passaram disso. Até o dia que o Gregório foi na casa de Olávia para levar a certidão de casamento dela com o Chicão.
Naqueles dias isso não era feito na hora. Levava dias para o documento ser escrito e transcrito nos livros que eram guardados no batistério da igreja local.
Não vou ficar historiando aqui como os dois acabaram na cama. Isso daria matéria para um romance psicológico. Só vou dizer que aconteceu porque talvez tivesse que acontecer. Quem acredita em destino pode dizer que ninguém escapa dele. Quem não acredita pode botar na conta da coincidência ou das derrapadas a que toda criatura humana está sujeita a ter na vida. Não importa, porque o resultado é sempre o mesmo.
Nesse dia, o Chicão estava em viagem com sua tropa, recolhendo e entregando leite. Nessas ocasiões Olávia ficava sozinha em casa. Gregório, dizem, tinha uns olhos de águia quando olhava para cobra. E Olávia olhos de cobra quando olha para um sapo. Os dois se olharam e se atraíram. Não conseguiram desgrudar o olhar um do outro. O olhar atraiu os lábios. Os lábios colaram os corpos. Os corpos se juntaram pela volúpia de um desejo incubado por tantos anos. E eles se tornaram amantes. Não havia se passado nem três meses que a Olávia havia se casado com Chicão.
Como tropeiro Chicão passava a maior parte do tempo fora de casa. Por isso levou quase um ano para ele descobrir o par de chifres que o Gregório lhe punha em suas viagens. Campos Novos não teria, naqueles tempos, mais que uns quinhentos habitantes. Todo mundo sabia do lance, menos Chicão. Nos sábados á noite, quando não havia festa, os homens da aldeia costumavam se reunir no armazém do Zeca Virginio para tomar umas e outras e fofocar.
Homem fofoca mais que mulher. Durante a pingaiada havia sempre alguém jogando uma indireta. Mas o Chicão não era tão sensível a essas coisas. Pinguço fala muita bobagem. Aquelas indiretas sobre cornos e maridos que passam muito tempo fora de casa deixando a mulher para deleite de outros não tinha nada a ver com ele. Ele não era homem de ficar vendo assombração, como aqueles caboclos da aldeia. Todos eles já haviam visto a Miota. Ele não.
O que era a Miota? A Miota era uma lenda naqueles sertões. Uma espécie de assombração. Todo caboclo que morava naquelas serras e costumava andar por aquelas trilhas dizia que já havia visto, pelo menos uma vez na vida, uma Miota. Não sei explicar a etimologia do nome. Minha mãe também não soube. Ela só dizia que a tal assombração tinha a forma de uma mulher, que aparecia vestida nas noites daquelas serras, vestida com uma longa bata preta e uma tocha na mão.
Não atacava ninguém fisicamente, mas nem precisava. Quem via a tal assombração dificilmente escapava com vida. Ora caia do cavalo e quebrava o pescoço, ora saia correndo que nem um condenado e acabava se arrebentando num daqueles precipícios da serra.
Minha mãe disse que na noite em que aconteceu a tragédia que transformou a Olávia na cabocla Teresa de Campos, ela já estava morando em Cahoeira Paulista. Estava dormindo quando ouviu um barulhão atrás do paiol onde a família guardava o milho e o feijão produzido na pequena roça que a família cultivava.
Foi um baque surdo, como se alguém tivesse arriado no chão um feixe de lenha dos mais pesados. Ela e o pai se levantaram para ver o que era. A noite estava escura como breu. Só deu para ver o vulto que sumia no meio do milharal já seco. Era um enorme vulto preto, esquelético e sinistro, de mais de três metros de altura, segurando uma tocha na mão. Pelo arrepio que começou no alto do cocoruto e subiu pela espinha dorsal dos dois, e pelos cabelos que arrepiaram como se um vento de baixo para cima os tivesse levantado, eles sabiam que acabavam de ver a Miota.
A Miota sempre aparecia para alguém quando alguma tragédia de morte estava para acontecer na serra. Apareceu para o Tio João no dia em que uma cobra urutú picou a mulher dele. Ela morrera nessa mesma noite. Aparecera também no quintal do Zeca Virgínio quando o primeiro filho deles, o Toninho, morreu de varíola.
Na família de Olávia todo mundo já tinha visto a Miota. Na família do Gregório também. Cada vez que um membro da família de um matava um membro da família do outro, alguém do clã desfalcado via a Miota rondando a casa do defunto.
Minha família já não morava em Campos Novos quando minha mãe recebeu a notícia de que a Olávia tinha morrido. Já fazia mais de um ano que isso tinha acontecido. A carta do primo Nenê dizia que ela foi encontrada morta em casa. Tinha levado três tiros. E na estrada que ia de Campos Novos para Cunha, um tropeiro havia encontrado também o corpo do Gregório, estirado no chão. Fora abatido a tiros. Era um sábado à noite e ele estava voltando de uma festa de São João na casa do Chico Neves onde ele soltara fogos e balões. Daí muita gente andar dizendo que aquela música do Braguinha, o Zé Fogueteiro, tinha sido inspirada nele, da mesma forma que a Cabocla Teresa, cantada pela dupla Torres e Florêncio, era a Olávia. Bobagem. Foi tudo uma baita coincidência, pois caboclas Teresas e Zé Fogueteiros são tipos arquetípicos que existem aos montes pelos sertões do Brasil.
Ninguém precisou pensar muito para adivinhar o que acontecera. O Chicão descobrira o caso dela com o Gregório. Matara primeiro a esposa e depois saíra à procura do amante. Descobriu que ele estava na festa do Chico Neves. Emboscou-o no caminho e sapecou-lhe dois tiros no peito.
Chicão não passou mais de dois anos na cadeia. Muitas circunstâncias atenuantes foram levantadas. A traição da Olávia, a lavagem da honra, o estado de intensa emoção, tudo concorreu para aliviar a pena. Eram tempos e lugares diferentes aqueles.
Mas esse não foi o resultado mais interessante que ficou dessa tragédia cabocla. Foram os desdobramentos dela. O Chicão foi morto numa emboscada uns dois meses depois que saiu da cadeia. Todo mundo sabia quem fora o assassino dele, mas não se pode provar nada. Ninguém foi preso por isso. Depois disso mais cinco pessoas, contando as duas famílias, foram mortas, num espaço de dois anos. Dois da família da Olávia, três do Gregório.
E a Miota se tornou uma aparição constante naquelas serras. Todo mundo via Miotas piscando por todo o sertão. Eram tantas as aparições que o Padre Bernardo, pároco de Campos Novos, foi convidado a dar seu parecer. Escrevendo para o jornalzinho de Cunha, o bom pároco afirmou perentoriamente que a Miota não existia. Era tudo crendice daquele povo supersticioso que só conseguia resolver seus conflitos na base da violência.
A Miota, na verdade, era um reflexo da consciência dos caboclos, e que o povo da serra só deixaria de vê-la depois que a educação e a luz elétrica fossem implantadas naqueles sertões. Disse também, com a ironia que lhe era própria, que uma escola e a Light eram os melhores exorcistas que ele conhecia.
Minha mãe achava que não. Mesmo morando na cidade há mais de vinte anos já, quando ela recebia a notícia de que alguém das suas relações de família ou amizade estava para passar desta para a melhor, ela não botava a cara fora de casa. Tinha um medo danado de ver a Miota. Antes de a levarmos para o hospital, onde morreu três dias depois, ela disse que havia visto a tal assombração no quintal dela olhando para as galinhas que ela criava, como se as estivesse contando. Coincidência ou não, depois que ela morreu todas as galinhas dela também morreram num prazo de três dias. O veterinário disse que foi uma doença que deu nelas. Eu não sou supersticioso e sempre acreditei nos homens de ciência, por isso acho que o veterinário estava certo. Mas por vias da dúvida não costumo sair de casa quando alguma tragédia anunciada está para acontecer.
____________
Nota: o presente conto, embora cite locais e cidades com seus nomes reais, foram compostos com fatos imaginados pelo autor e com personagens fictíciios. Qualquer semelhança, ou evocação a acontecimento e pessoas reais terá sido mera coincidência.
Fatos como esse que inspiraram o presente conto acontecem em todos os cantos do sertão brasileiro e acabam se tornando paradigmas para os contadores de histórias e cancioneiros populares. Câmara Cascuco, por exemplo, era mestre em contar essas estórias, que muita gente jura de pés juntos que não de se tratam de estórias, mas de verdadeiras histórias.
Olávia era prima da minha mãe, e quem me contou esta, que para ela era história de verdade foi ela. Minha mãe dizia que a Olávia foi a cabocla mais bonita que já nasceu lá pelas bandas dos Campos Novos, aldeia perdida na Serra da Bocaina, perto de Cunha. Nos dias de festa na Igreja da aldeia ela vendia doces numa das barracas da quermesse. Os “cavaquinhos” (doce em forma de cvaquinho, feito de melaço de cana, temperado com especiarias), os doces de leite, as paçocas e os curaus que ela fazia eram divinos, segundo os freqüentadores da quermesse. Tão gostosos como os lábios carnudos que ela tinha, feitos, segundo confessavam alguns caboclos mais ousados, para um longo e suculento beijo, daqueles que a gente fica pendurado nos beiços da menina até a morte chegar com prazer.
A Olávia tinha uns dezesseis anos quando se casou com o Chicão. Esse era um caboclo parrudo, que estava pelos seus vinte e dois anos e trabalhava para uma leiteria em Cunha. Sua família tinha uma tropa de burros, na época o único meio de transporte de mercadorias daquelas paragens. Ele passava pelos sítios de Campos Novos, Bocaina e adjacências recolhendo o leite que as vacas da região produziam, e levava tudo para uma fábrica, na cidade de Cunha, onde se produzia queijo e manteiga, um dos produtos que fazia a fama da região, juntamente com os pinhões da serra, cuja produção era farta ali.
O casamento da Olávia com o Chicão, segundo os moradores de Campos Novos, foi o mais bonito que já se viu por lá. O Chicão tinha dinheiro e convidou todo mundo. Minha mãe dizia que foi a primeira vez que se bebeu vinho por aquelas bandas. Pelo menos foi a primeira vez que ela e meu pai provaram essa bebida. A igreja estava lotada e uns três bois foram mortos para satisfazer a fome dos convidados.
Isso aconteceu antes da revolução de trinta e dois, dizia a minha mãe, pois essa era a única referência que ela ainda tinha do passado dela lá na Serra da Bocaina. Lembrava-se que o exército paulista tinha arrebanhado os caboclos da terra e obrigado os coitados a abrir picadas na serra para eles assentarem trincheiras e deslocarem as tropas que se acantonaram na serra para tentar deter o avanço dos soldados dos federalistas de Getúlio Vargas. Meu pai foi um desses caboclos que cavou trincheiras para os soldados constitucionalistas e minha mãe odiava os paulistas, comandados de Isidoro Dias porque, segundo ela, foi por causa deles que meu pai perdeu tudo que tinha, pois eles não só requisitaram os burros que ele tinha para puchar os canhões que eles assentaram na serra, e não devolveram, como também confiscaram toda a safra de milho e feijão que ele guardava no paiol.
Agora, no casamento da Olávia, do que mais ela se lembrava eram os fogos. Nunca se vira, nos Campos Novos, um espetáculo daqueles. Morava por lá um rapaz chamado Gregório, moço talentoso, que além de saber ler e escrever - era o escrivão do cartório local - também se tornara especialista em espetáculos de pirotecnia. Era ele que organizava a queima de fogos em todas as festas da igreja e nas festas juninas das redondezas, quando Santo Antonio, São João e São Pedro eram homenageados por todos os portadores desses nomes com bailes, concorridas congadas e cateretês que só terminavam quando da fogueira acesa no quintal, ou em frente à casa, se extinguia a última brasa.
Linda Olávia, feliz Chicão. Não havia menina nas redondezas que não invejasse a cabocla pelo bom partido que ela arrumou. E não havia caboclo solteiro no pedaço que não invejasse o Chicão pela mulher bonita que ele levou para casa. A única coisa que ninguém entendeu bem foi porque ela chorou tanto na hora dos fogos. Não era para tanto, diziam as pessoas, pois mesmo sendo um espetáculo bonito, era banal. Ela e os habitantes de Campos Novos já tinham visto isso um monte de vezes. Talvez fosse a emoção pela beleza do visual, misturado com a emoção do casório, mas não era caso para se chorar tanto.
O estranho foi o que ocorreu depois. Minha mãe disse que o casal levou três dias para consumar o casamento. Isso foi a Olávia mesmo que contou para ela. Disse que ela não conseguia parar de chorar toda vez que o Chicão começava “a bulir com ela.” Ela resistiu até que ele ameaçou levá-la de volta para os pais. Aí então ela teve que ceder, pois essa seria uma vergonha insuportável para eles. Mas foi sem prazer nem alegria que ela se deitou com ele e lhe entregou a virgindade.
Esse prazer ela só foi experimentar uns meses depois. E não foi com o Chicão. Foi com o Gregório. O que aconteceu foi o seguinte. A Olávia na verdade, era apaixonada pelo Gregório. Desde os treze anos. Mas a família dele era inimiga figadal da família dela. Lá na serra tinha muito dessas coisas. É outro arquétipo comum que todo sertão cultiva. É preciso que existam famílias inimigas senão não é sertão.
Já ocorrera inclusive algumas mortes nesse conflito. Uns três anos antes do casamento da Olávia com o Chicão, um tio dela, o Genésio, havia sido morto numa emboscada e todo mundo sabia que quem o matara fora o pai do Gregório, um sujeito chamado Geraldo Lopes. Disputa de terras. Na serra, nessa época, ninguém tinha escritura de nada. Cada um ocupava tanta terra quanto queria e podia cultivar. E defender, pois sempre havia alguém para invadir a posse alheia.
Mas ninguém pode provar nada. O crime ficou por isso mesmo, até porque polícia, nesses tempos, quase não havia. Era uma tal de Guarda Nacional que fazia às vezes de autoridade policial e nem tinha gente suficiente para ficar cuidando dessas brigas de sertanejos.
Cada um que cuidasse de si mesmo e da sua família.Assim, em represália, o Benedito, irmão do Genésio, também matou a facadas um irmão do pai do Gregório numa briga de bar.
Lembro-me bem desse fato que minha mãe contava. Ela já havia se mudado de Campos Novos. Morava em Cacheira Paulista. Recebeu a notícia da morte do tio através de uma carta da Olávia que terminava assim: “ O tio Génésio morreu. O Geraldo Lopes matou ele a tiro. Mas não fique triste por isso não. O tio Dito já vingou ele. Matou Salustiano, o irmão do Geraldo, a faca. Tá tudo elas por elas.”
Isso foi antes do casamento dela com o Chicão. A história de Olávia com Gregório não tinha nada de Romeu e Julieta. Eles se gostavam, é fato, mas nunca tiveram coragem de desafiar as famílias para ficarem juntos. Se olhavam de longe, arriscavam, de vez em quando, um sorriso, uma piscadinha um para o outro, mas nunca passaram disso. Até o dia que o Gregório foi na casa de Olávia para levar a certidão de casamento dela com o Chicão.
Naqueles dias isso não era feito na hora. Levava dias para o documento ser escrito e transcrito nos livros que eram guardados no batistério da igreja local.
Não vou ficar historiando aqui como os dois acabaram na cama. Isso daria matéria para um romance psicológico. Só vou dizer que aconteceu porque talvez tivesse que acontecer. Quem acredita em destino pode dizer que ninguém escapa dele. Quem não acredita pode botar na conta da coincidência ou das derrapadas a que toda criatura humana está sujeita a ter na vida. Não importa, porque o resultado é sempre o mesmo.
Nesse dia, o Chicão estava em viagem com sua tropa, recolhendo e entregando leite. Nessas ocasiões Olávia ficava sozinha em casa. Gregório, dizem, tinha uns olhos de águia quando olhava para cobra. E Olávia olhos de cobra quando olha para um sapo. Os dois se olharam e se atraíram. Não conseguiram desgrudar o olhar um do outro. O olhar atraiu os lábios. Os lábios colaram os corpos. Os corpos se juntaram pela volúpia de um desejo incubado por tantos anos. E eles se tornaram amantes. Não havia se passado nem três meses que a Olávia havia se casado com Chicão.
Como tropeiro Chicão passava a maior parte do tempo fora de casa. Por isso levou quase um ano para ele descobrir o par de chifres que o Gregório lhe punha em suas viagens. Campos Novos não teria, naqueles tempos, mais que uns quinhentos habitantes. Todo mundo sabia do lance, menos Chicão. Nos sábados á noite, quando não havia festa, os homens da aldeia costumavam se reunir no armazém do Zeca Virginio para tomar umas e outras e fofocar.
Homem fofoca mais que mulher. Durante a pingaiada havia sempre alguém jogando uma indireta. Mas o Chicão não era tão sensível a essas coisas. Pinguço fala muita bobagem. Aquelas indiretas sobre cornos e maridos que passam muito tempo fora de casa deixando a mulher para deleite de outros não tinha nada a ver com ele. Ele não era homem de ficar vendo assombração, como aqueles caboclos da aldeia. Todos eles já haviam visto a Miota. Ele não.
O que era a Miota? A Miota era uma lenda naqueles sertões. Uma espécie de assombração. Todo caboclo que morava naquelas serras e costumava andar por aquelas trilhas dizia que já havia visto, pelo menos uma vez na vida, uma Miota. Não sei explicar a etimologia do nome. Minha mãe também não soube. Ela só dizia que a tal assombração tinha a forma de uma mulher, que aparecia vestida nas noites daquelas serras, vestida com uma longa bata preta e uma tocha na mão.
Não atacava ninguém fisicamente, mas nem precisava. Quem via a tal assombração dificilmente escapava com vida. Ora caia do cavalo e quebrava o pescoço, ora saia correndo que nem um condenado e acabava se arrebentando num daqueles precipícios da serra.
Minha mãe disse que na noite em que aconteceu a tragédia que transformou a Olávia na cabocla Teresa de Campos, ela já estava morando em Cahoeira Paulista. Estava dormindo quando ouviu um barulhão atrás do paiol onde a família guardava o milho e o feijão produzido na pequena roça que a família cultivava.
Foi um baque surdo, como se alguém tivesse arriado no chão um feixe de lenha dos mais pesados. Ela e o pai se levantaram para ver o que era. A noite estava escura como breu. Só deu para ver o vulto que sumia no meio do milharal já seco. Era um enorme vulto preto, esquelético e sinistro, de mais de três metros de altura, segurando uma tocha na mão. Pelo arrepio que começou no alto do cocoruto e subiu pela espinha dorsal dos dois, e pelos cabelos que arrepiaram como se um vento de baixo para cima os tivesse levantado, eles sabiam que acabavam de ver a Miota.
A Miota sempre aparecia para alguém quando alguma tragédia de morte estava para acontecer na serra. Apareceu para o Tio João no dia em que uma cobra urutú picou a mulher dele. Ela morrera nessa mesma noite. Aparecera também no quintal do Zeca Virgínio quando o primeiro filho deles, o Toninho, morreu de varíola.
Na família de Olávia todo mundo já tinha visto a Miota. Na família do Gregório também. Cada vez que um membro da família de um matava um membro da família do outro, alguém do clã desfalcado via a Miota rondando a casa do defunto.
Minha família já não morava em Campos Novos quando minha mãe recebeu a notícia de que a Olávia tinha morrido. Já fazia mais de um ano que isso tinha acontecido. A carta do primo Nenê dizia que ela foi encontrada morta em casa. Tinha levado três tiros. E na estrada que ia de Campos Novos para Cunha, um tropeiro havia encontrado também o corpo do Gregório, estirado no chão. Fora abatido a tiros. Era um sábado à noite e ele estava voltando de uma festa de São João na casa do Chico Neves onde ele soltara fogos e balões. Daí muita gente andar dizendo que aquela música do Braguinha, o Zé Fogueteiro, tinha sido inspirada nele, da mesma forma que a Cabocla Teresa, cantada pela dupla Torres e Florêncio, era a Olávia. Bobagem. Foi tudo uma baita coincidência, pois caboclas Teresas e Zé Fogueteiros são tipos arquetípicos que existem aos montes pelos sertões do Brasil.
Ninguém precisou pensar muito para adivinhar o que acontecera. O Chicão descobrira o caso dela com o Gregório. Matara primeiro a esposa e depois saíra à procura do amante. Descobriu que ele estava na festa do Chico Neves. Emboscou-o no caminho e sapecou-lhe dois tiros no peito.
Chicão não passou mais de dois anos na cadeia. Muitas circunstâncias atenuantes foram levantadas. A traição da Olávia, a lavagem da honra, o estado de intensa emoção, tudo concorreu para aliviar a pena. Eram tempos e lugares diferentes aqueles.
Mas esse não foi o resultado mais interessante que ficou dessa tragédia cabocla. Foram os desdobramentos dela. O Chicão foi morto numa emboscada uns dois meses depois que saiu da cadeia. Todo mundo sabia quem fora o assassino dele, mas não se pode provar nada. Ninguém foi preso por isso. Depois disso mais cinco pessoas, contando as duas famílias, foram mortas, num espaço de dois anos. Dois da família da Olávia, três do Gregório.
E a Miota se tornou uma aparição constante naquelas serras. Todo mundo via Miotas piscando por todo o sertão. Eram tantas as aparições que o Padre Bernardo, pároco de Campos Novos, foi convidado a dar seu parecer. Escrevendo para o jornalzinho de Cunha, o bom pároco afirmou perentoriamente que a Miota não existia. Era tudo crendice daquele povo supersticioso que só conseguia resolver seus conflitos na base da violência.
A Miota, na verdade, era um reflexo da consciência dos caboclos, e que o povo da serra só deixaria de vê-la depois que a educação e a luz elétrica fossem implantadas naqueles sertões. Disse também, com a ironia que lhe era própria, que uma escola e a Light eram os melhores exorcistas que ele conhecia.
Minha mãe achava que não. Mesmo morando na cidade há mais de vinte anos já, quando ela recebia a notícia de que alguém das suas relações de família ou amizade estava para passar desta para a melhor, ela não botava a cara fora de casa. Tinha um medo danado de ver a Miota. Antes de a levarmos para o hospital, onde morreu três dias depois, ela disse que havia visto a tal assombração no quintal dela olhando para as galinhas que ela criava, como se as estivesse contando. Coincidência ou não, depois que ela morreu todas as galinhas dela também morreram num prazo de três dias. O veterinário disse que foi uma doença que deu nelas. Eu não sou supersticioso e sempre acreditei nos homens de ciência, por isso acho que o veterinário estava certo. Mas por vias da dúvida não costumo sair de casa quando alguma tragédia anunciada está para acontecer.
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Nota: o presente conto, embora cite locais e cidades com seus nomes reais, foram compostos com fatos imaginados pelo autor e com personagens fictíciios. Qualquer semelhança, ou evocação a acontecimento e pessoas reais terá sido mera coincidência.