O DIABO DISSE...

... porque os anos cinquenta rompiam nas ondas do rádio, a marchinha martelando minha cabeça – “pega o retrato do velho/ bota no mesmo lugar/ que o sorriso do velhinho/ faz a gente trabalhar” – mas eu não sabia quem era o velho, ainda cheirava a cueiros, como se dizia, no alto de meus cinco anos, eu não sabia que o sorriso do velho se apagaria alguns anos depois e deixaria transida uma nação, e o rádio era o tênue contato com o mundo, um mundo misterioso que vinha em ondas hertzianas a povoar minha imaginação através de vozes, sons e músicas que saíam aos borbotões daquela caixa preta sobre a cômoda, em torno da qual os adultos – minha mãe sempre cosendo uma bainha ou arrematando um vestido, meus irmãos bem mais velhos e alguns poucos vizinhos – se assentavam com olhos de futuro e ouvidos sonhadores e eu ficava ali, ao redor daquelas figuras reais, sozinho comigo mesmo, a viver com amigos imaginários os sonhos e folguedos de criança, e acho que foram esses amigos que me socorreram no dia em que as chamas da chaminé de estopa do trenzinho de caixa de fósforo pularam para a minha perna e, durante seis meses, imobilizado numa cama, tentava entender como o cheiro tão bom da gasolina se transformara em tanto sofrimento e pudera fazer estrago tão grande, e minha mãe, para ter um pouco de sossego, enquanto pedalava noite a fora a velha máquina de costura, deixava ligada o dia inteiro a caixa preta que povoava meu quarto de carnavais, de teatros absurdos e de fogueiras de são joão, e ali, a ouvir as vozes que pareciam vir do além, de terras que eu não sabia que existiam, entre sonhos e brinquedos, no espanto de uma dor que doía como o cão, na lenta percepção de dias cada vez mais curtos, o rádio materializava em meus ouvidos nem sempre atentos um conhecimento tão distante de mim, um mundo entrevisto apenas entre as sombras da imaginação, reduzido aos limites daquela cidadezinha perdida no sul de minas e, então, numa noite de quase inverno, já fria e triste, devia ser maio, pois minha mãe redobrava suas rezas e suas costuras, apertando no peito a fita azul das filhas de maria, as ondas do rádio trouxeram, como um redemoinho de medo que virou pavor, pavor que se transformou em pesadelos e pesadelos que se cristalizaram em noites insones, a notícia de que, ali, bem perto, na cidade vizinha, ocorriam eventos extraordinários, e havia um padre, e havia rezas e preces atemorizadas, e havia um povo à noite escondido em suas casas, e havia um exorcista, que o demônio, o demônio em pessoa estava aprontando das suas e se apoderara do corpo de um inocente e expelia pela boca de um cristão profanas profecias e loucos impropérios e eu ouvia aquilo e meus pelos arrepiavam e eu não dormia à noite pensando que o diabo estava tão perto e ele podia a qualquer momento vir para o meu quarto, quantas desobediências à minha mãe e quantas palavras feias eu tinha na boca e o diabo estava tão perto, tão perto, e um dia a voz grave que vinha do rádio avisou que o diabo estava ali, que o diabo iria falar, uma mensagem que podia mudar tudo, mudar o quê, eu pensava, e eu sofria, e eu arrepiava de medo em minhas febres noturnas e chorava de medo da injeção e de medo do que o dianho, o cão, o coisa-ruim, iria dizer que pudesse mudar tudo ... ah, eu não podia esperar para ouvir, eu não aguentava esperar, tão longa a noite e tão fria e tão tarde, e eu tinha que dormir e crescer para uma vida que se alongava à minha frente, isso no início dos anos cinquenta e eu era muito pequeno e minha cabeça não estava pronta ainda e não podia nunca entender dessas artes demoníacas que vinham através do rádio e eu pensava – tão inocente eu era – que a voz dele, a voz do diabo, devia ser diferente de todas as vozes e eu sonhava todas as noites um pesadelo em que o diabo, que estava ali, na cidade vizinha, já se aproximava de mim, caminhava para mim, eu sei que ele estava vindo e sei o que ele disse, sim, eu sei, bem lá dentro de minha cabeça, hoje mais branca ainda que a cabeça de minha mãe que, aos trinta anos, depois de um grande desgosto, amanheceu assim de repente numa nuvem de primavera, eu sei que devia saber o que ele disse, oh, minha culpa, minha máxima culpa, eu não consigo me lembrar, era inverno, ou quase inverno, eu queria remir minha culpa, lembrando, e queria de volta a fé perdida, entendendo, entendendo como um cheiro tão bom quanto o da gasolina pôde fazer estrago tão grande e entendendo por que o velhinho cujo sorriso prometia fazer a gente trabalhar, alguns anos depois, deu um tiro no peito e deixou transida uma nação, mas agora que tudo já passou eu tenho certeza de que o longo inverno sobreveio porque, naquele começo dos anos cinquenta, quando eu tinha apenas cinco anos e uma vida pela frente, ouvi e não consigo me lembrar o que o diabo, que estava na cidade vizinha, tão longe de meus sonhos e tão perto de meus pesadelos, num fim de outono e começo de inverno, quando eu tinha apenas cinco anos e me embalava nas ondas sonoras do bom e velho rádio, buscando mitigar as dores de uma perna ferida, quando eu tinha apenas cinco anos e não podia nem ao menos imaginar que não ia nunca mais poder votar no velhinho da canção, e eu não consigo, não consigo me lembrar o que, afinal, o diabo disse...

3/10/02