Juliana na roda com João - DTRL34

“Por que os crimes passionais são em muito

maior número nas classes incultas? Porque

essas pessoas não sabem lidar com o problema,

não possuem meios de elaborar intelectualmente o drama.

Nem elas e nem o seu meio social. Então tudo vira tragédia.”

— Olavo de Carvalho.

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Era o seu trabalho. Atrás do balcão de jacarandá, à sombra de um fichário imponente, conferia o título da obra no catálogo e indicava a estante. Mas isso era duas vezes por semana, quando muito! Um túmulo aquela biblioteca no Méier, e Juliana passava os dias a polir as unhas e a retirar cutículas.

Porém, como em quase todo túmulo há defuntos, o lugar recebia a presença assídua de quatro figuras. Nadir Paranhos, que contribuía para uma revista de senhoras, instalava-se cotidianamente às sete e punha-se a datilografar em sua Olivetti portátil, emprestando com suas cãs e habitual sisudez muita respeitabilidade àquele verdadeiro antro do saber.

— Isso é uma cachorrada, Gouveia — o jornalista entrou esmurrando a porta entreaberta — Um atentado à democracia!

Cristóvão Gouveia, funcionário público, vinha atrás.

— Você não entende a situação do país, homem... O presidente sabe o que faz; isso logo vai ser revogado.

— Caça mandatos, o desgraçado. Começa assim — João Paranhos se queimava de indignação — Daqui a pouco está mandando matar.

— Como o seu Fidel tem feito em Cuba?

— Lá é diferente.

— Nosso presidente tem suas razões — disse Cristóvão, sentando-se ao lado do poeta — Estou certo de que o AI-5 será um grande bem para o Brasil.

João silenciou, acumulando uma fúria tremenda, mas não se conteve e golpeou a mesa com os punhos.

— Eu não agüento mais você defendendo aquele general filho da...

Antes que concluísse, o jornalista olhou de relance para a bibliotecária, que punha amavelmente o indicador diante dos lábios cheios. Nova ali, já conhecia o temperamento de João.

— Oh, mil perdões! — suavizou o tom — A senhora não sabe... O Brasil está em risco! — e deu um risinho constrangido, acomodando-se.

E assim ficaram os três ao redor da mesa principal, João, Cristóvão e o poeta Júlio Assunção.

— Júlio, meu amigo, como vai?

— Tudo na mesma, Paranhos — respondeu o poeta, pendurando um cigarro entre os lábios — Contas a pagar, falta dinheiro...

— Isso não é país para nós, espíritos superiores, homens das letras! — disse João, categórico — E aí? — aproximou-se, baixando a voz — Escreveu o que pedi?

Júlio passou uns papéis.

— Ótimo. Tenho que entregar ainda hoje na redação. O tempo ruge, amigos, o tempo ruge!

— É urge que se diz, seu asno! — pontuou Nadir lá do canto — E agora feche essa matraca!

— Titia... Já disse para a senhora não me envergonhar assim...

Júlio Assunção redigia artigos de crítica literária, depois João Paranhos assinava e os fazia publicar na Gazeta; em troca, o jornalista pingava uns cruzeiros ao ghost writer, sorrateiramente. O poeta vivia num tugúrio próximo dali, contraía dívidas e não pagava. Da verba que lhe entrava a partir de João, muito era desviado para os cigarros e outro tanto para a publicação de seus versos em jornal. “Livro de poesia ninguém edita. Põe na Gazeta que seu nome vai ganhando fama.” Passava horas a ler na biblioteca, seu jardim das delícias terrenas, e a presença da nova bibliotecária dava-lhe ainda mais gosto.

Juliana arrebatou o coração de Júlio logo que este a viu em seu primeiro dia. Enxergava nela, além do fascínio da pele negra, dos cabelos espiralados, dos olhos como jabuticabas, um ser para além do vulgo e de toda mesquinhez que o rodeavam; e seus nomes, desde a fecundação do mundo já propostos por Deus, sugeriam pela semelhança um amor perfeito. Com a cabeça povoada de quimeras, o trato equívoco com a realidade fez Júlio vislumbrar os mais nobres desejos em cada olhar, em cada gesto de Juliana.

— E aí, Gouveia — João recomeçou a conversa — não casa?

— Sou um homem maduro, cinqüenta e dois já. Quem deve pensar nisso é você, o Júlio, que tem ainda seus vinte.

— Tenho vinte e cinco.

— Sempre fui sozinho, vocês sabem, e sempre lidei bem com a solidão — o burocrata ajeitava os óculos — Mas confesso que às vezes sinto um vazio estranho...

— “Um não sei quê, que nasce não sei onde, vem não sei como e dói não sei porquê...” — fez Júlio, que não atraiu a atenção da moça.

— Haha! — João entusiasmou-se por exibir seu domínio da cultura lusitana — Isso é Bocage! Manuel Maria Barbosa du Bocage!

— É Camões, idiota!

— Tia...

Júlio era muito conhecido no Méier, menos pela sua verve que pelo jeito excêntrico. Era comum vê-lo falando sozinho, declamando Rimbaud na estação e Verlaine na praça. Apesar da loquacidade prodigiosa, quando tinha de falar a alguém ou resolver um problema, inutilizava-se. Fizeram-no, há certo tempo, entregador de mercearia, mas não era capaz de enfileirar latas de salsicha como enfileirava séculos de história na cabeça, muito menos memorizava endereços como o fazia com os versos da Odisséia.

— Acredita que o palerma me quebrou meia dúzia de ovos?

— É uma besta! A moça da biblioteca disse que ele fica o tempo todo agarrado em livro.

— Acho até perigoso ela sozinha lá com ele.

— Que isso, Cleuza! Aquele príncipe do olho azul, ela deve amar. Se Júlio não fosse o pateta que é, bem que eu também arrastava a minha asa.

— Duvido que ele ia querer. Homem que mexe com poesia é tudo viado!

Ainda na biblioteca, João expunha sua filosofia dos sexos:

— O homem, senhores, é como um cavalo... — afetou uma tosse — Age que nem burro, mas é como um cavalo. Tem a energia, a força, mas não tem guiamento. É pra isso que existe mulher, para não deixar o cavalo sair da estrada.

Atrás do balcão, Juliana rompeu num riso esganiçado, e essa vulgaridade largou fora o véu de recato com que Júlio, decepcionado, a envolvera mentalmente.

— Essazinha já está no papo — sussurrou o jornalista com os beiços a brilhar de lascívia.

Cristóvão formalizou-se na cadeira. Júlio, em vias de enterrar o canivete no peito do rival, se controlou. Desde menino, época em que se apaixonara por uma negrinha que prestava serviços domésticos à sua família, assumiu uma devoção quase idolátrica a mulheres negras. Não se tratava de um mero fetiche, a volúpia das carnes de ébano, mas um sentimento mais alto, uma reverência à antiga gente do Mali, de Gana, das tribos Iorubás e um dever de atuar na miscigenação do Brasil. Por isso, as palavras de João Paranhos lhe soaram como a mais infame das blasfêmias; todavia estava seguro, Juliana seria incapaz de entregar o ouro de seu corpo a um tipo daquele.

Dias depois, a caminhar pelas ruas luminosas de um sábado à noite, Júlio mirabolava planos de um grande futuro com sua musa. Prestes a entrar em casa, a repugnância de uma voz familiar turbou-lhe os devaneios.

— Eis que o poeta se recolhe ao templo de sua arte, onde o engenho mais se apura — falou João.

Um punho espectral atingiu o estômago do pobre assim que viu Paranhos pendurado em Juliana, deixando a mão solta tocar-lhe casualmente o seio. Ela sorria, os olhos distantes... Com os pés imóveis na calçada, incapaz de qualquer reação, Júlio não fazia mais que olhar aquilo embasbacado.

— Até a vista, Bilac.

O casal lhe passava indiferente, e o poeta entrou batendo a porta. Era matá-la. Era matá-la e depois atirar-se do Corcovado, da Pedra da Gávea ou sob as rodas de um auto. Em seu quartinho abafado, como quem de si arranca um verme, Júlio Assunção escreveu o seu último poema.

Ó tempo inexorável que me arrasta

E não entrega a paga pelo pranto.

Há muito só, a Deus eu sacrifico

No altar da ignomínia um sonho rico

E ganho de um demônio o horrendo espanto

De ver brotando cardo em meio às rosas,

No jardim das quimeras que eu plantava.

Mas o homem só vive porque sonha,

Dando a carne a morder vulgar peçonha

Que lhe arranca do olhar a luz que amava.

Galopai, galopai, ó infortúnios,

No peito onde aqueci mil sonhos nobres;

Sentenciai-me na lúcida justiça:

Levai a flor do estro que ainda viça,

O sino que ainda encanta com seus dobres.

Poeta, criatura sempre escrava

Das musas que o afagam e abandonam.

Tanto diz, tanto escreve, tanto canta,

Mas se abate ao notar que aos céus levanta

Gente lassa quais gatos que ressonam

E não vêem o esplendor que lhes envolve.

O livro rói a inépcia mais grosseira;

Compulsando vetustos alfarrábios,

Desejoso de haurir o ar dos sábios,

Eu entupo as narinas de poeira:

Maravilham-me arcanos primitivos

Apontados pelo ínvio Trimegisto;

Procuro nos escritos de Papus

Retomar o caminho que perdi

P’ro mundo que só penso... Não existo;

Reassumo a postura de um asceta

Lendo as obras de Afonso de Ligório;

Folheando São Tomás eu mais me ufano

E enxergo o medieval dominicano

Genuflexo diante do ostensório;

Em meio a galicismos e verdades,

A França me fascina como quer:

Lisle, Hugo, Dumas ou La Fontaine...

Eu sei que em sua verve todos têm

A sina do albatroz de Baudelaire.

Erigindo castelos formidáveis,

Estúpido arquiteto me tornei;

Tudo aquilo que tu, livro, me ensinas

Desaba sobre mim como as ruínas

Do templo sem pilar que levantei.

E o tempo segue... Eu sigo sempre o mesmo,

O mesmo que se aflige no caminho,

O mesmo que caminha em turba néscia,

Aquele que se torna a cada dia

Mais triste, mais calado, mais sozinho...

O mais pontual dos galos não cantara ainda e Júlio já estava de pé, qual estátua, o olhar preso na escuridão. Quatro horas no relógio. Encontrara uma machadinha e fazia de si um Raskólnikov justificado.

Uns bêbados tateavam paredes, suas casas lhes fugiam, e Júlio Assunção dirigia-se para a biblioteca. O peso do dever fazia leve a machadinha. Com enorme destreza arrancaria dedos, desmembraria braços, partiria em dois o mais simétrico dos crânios.

Próximo a entrada, aguardava a vítima sempre pontual. Ela abria a biblioteca às cinco e meia. Metido num arbusto, Júlio escutava cada vez mais alto os toques dos tamancos na calçada. Juliana retirou as chaves da bolsa. Era a hora. Ela verificava o molho nas mãos. Júlio em movimento, a machadinha erguida. Pôs a chave na porta. A lâmina descia como um raio.

Prestes a fazer alguém se unir à Eternidade, a mente do poeta também não se baixava à cronologia. Os mais lúcidos pensamentos de sua vida o atingiam, era capaz de vê-los, revirá-los, ponderá-los por quanto tempo quisesse. Em meio àquele torvelinho de idéias, perguntava-se: “Por quê?” “É sensato?” Uma balança lhe apareceu, onde comparou os seus motivos: viu o dente férreo do instinto mais leve que o diadema da razão. E soube, enfim, para que serviam os livros: para evitar uma loucura.

Mas era tarde, mas não tão tarde. Júlio foi capaz de desviar a lâmina, porém não impediu que a machadinha roubasse uma orelha e abrisse uma larga ferida no ombro da mulher. Ela virou-se, muda, sem compreender. Olharam-se, petrificados. A dor veio em seguida, Juliana deixava-se cair com o corpo a deslizar pela porta, chorando baixo e se afastando do maníaco.

Júlio, atabalhoado, corria as mãos pelo sangue derramado. Apanhou a orelha. Queria restituí-la. Mas a feirante apareceu, e o padeiro apareceu. O poeta tremia, não dizia coisa com coisa, se lamentava confusamente aproximando da moça sua orelha cortada. “É só colar”. “É só colar”. Juliana se pôs de pé e correu até ser aparada por Cristóvão Gouveia. Um policial que passava perto evitou o linchamento.

EPÍLOGO

Meses depois, Nadir Paranhos redigia para a revista:

“Tudo está formalizado para o casamento do competente Cristóvão Paes Gouveia e sua senhora, a doce Juliana do Nascimento Araújo. A noiva se recupera de um atentado que, por intermédio da mão de Deus e do zelo, primeiramente paternal, de seu amado Cristóvão, não lhe roubou a juventude. Há cerca de um mês, J. A., um notório insano, conhecido por declamar versos pelas ruas, golpeou a pobre com um machado. Um atentado racista, de acordo com o que informam fontes confiáveis. J. A. se mantém internado num manicômio judiciário.''

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Era noite de festa. No parque, uma formidável roda gigante magnetizava os olhos infantis de Juliana.

— Vamos, Cristóvão — ela entusiasmava-se, segurando uma rosa e um sorvete de morango — Vai ser divertido.

Cristóvão admirava-se daquela criatura, olhava as bandagens ainda ao redor de sua cabeça e derretia-se em afetos. Saiu e voltou com os bilhetes.

Juliana meteu-se em uma cabine, mas se espantou. Quem era aquele ao seu lado? A roda começou a girar, a cabine subia, e Cristóvão, lá em baixo, ficava menor.

— Desculpa, moço — ela riu — entrei na cabine errada.

O estranho, de costas, não respondeu.

— Agora não tem mais jeito — ela continuava a dizer.

O estranho virou-se: era João.

Olhando para cima, o desesperado Cristóvão pôde ver sua amada sendo rebatida pelas ferragens da roda gigante. Por algumas vezes a estrutura do brinquedo impediu o corpo de chegar ao solo, até que a cabeça da mulher se prendeu entre duas barras de ferro. Juliana ficou girando, girando...

Logo em seguida o corpo do ciumento João Paranhos atingiu o gramado.

TEMA - Crítica Social

Marcel Sepúlveda
Enviado por Marcel Sepúlveda em 13/04/2019
Reeditado em 14/04/2019
Código do texto: T6622861
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