A ENTIDADE

I

Trovejava incessantemente, e lá fora, na escura realidade da noite os clarões dos trovões pareciam ser o despertar da ira de Deus, e parecia-me que a cólera seria toda embalada e jogada sobre o teto que me foi herdado. Particularmente já ouvi rumores de assombrar qualquer espírito valente que pusera as patas nesta casa. Não é de minha autêntica audácia descrever todos os fatos que me ocorrerá aqui nesta casa, num certo cômodo para ser mais exato, nestes últimos suspiros de sanidade. A minha formação de mexer e cutucar mentes, às vezes abri-las parte por parte, me faz pensar agora se eu também não precise ser um homenzinho prostrado a ter também a mente aberta e vasculhada. Quem sabe a insanidade tenha me pegado de jeito enquanto eu fora tomar um copo de água na cozinha desta casa, olhando para todos aqueles quadros de formas e tons estranhos e grotescos dos quais a maioria baixava o terror no meu espírito.

Só que o mais assustador de todos os demônios estava exatamente onde os meus sonhos tentavam criar asas e voar, mas eles eram puxados e mortos sem piedade, por aquelas mãos negras que surgiam do chão, mãos que queimavam até necrosar os meus membros. Minhas fantasias morriam sem nenhuma explicação plausível. O sonho sempre começava na mais fabulosa criatividade de um Da Vinci, e terminará pior que o inferno de Alighieri. E todas as vezes que isso acontecerá, aquela aberração em forma de retrato postiço, estará de olhos arregalados e vazios olhando para mim! Direto PARA MIM quando eu acordo meio melancólico!

Sempre duvidava daquele olhar agonizante, pensei talvez se não fosse apenas a minha mente querendo-me pregar peças, ou o espaço que havia entre nós, que na trivialidade das pequenas luzes piscantes da tempestade daria a impressão que eu até então temerei.

Quem me dera fosse essa a pequena explicação para essa atordoada e maliciosa noite da qual o demônio havia me preparado.

Antes de chegar a dormitar neste quarto, estava num outro ao lado, mas tive de me retirar. A podridão do cômodo incomodava-me o tempo inteiro, minhas narinas pediam socorro, e o teto estava com vazamento bem onde se encontrava a cama, havia também bastantes arranhões na madeira do piso, e toda a sujeira deixada ali, deixando com aspecto de quarto de porco, fora alguns ratos. Não havia ventilação, nem janelas, nem outros móveis fora a cama de madeira absurdamente pesada, estava cansado das gotas me acordarem nas madrugadas. Então a única opção que me dispunha fora o quarto ao lado. Nele há duas janelas grandes, com cortinas brancas como a neve, escaladas até o teto, com a vista para uma árvore, um velho jatobá cuja estava morto antes mesmo do mundo pôr os olhos em mim, creio eu. O jatobá parecia ser um fantasma no pátio da mansão, sem nenhuma folha nos seus velhos galhos contorcidos ou plantas ao seu redor. Outro dia ainda chego a ver uma ave negra, como abutre olhando diretamente para minha janela.

As luzes cabiam bem dentro do quarto, em que todo o calvário viria até mim. Não sabia do ser maligno que havia neste quarto, nem que aqui teria sido o lugar onde meu avô teria dormido e passado seus últimos anos de vida. Fui o único herdeiro do velho, o último dos Harmon, os amaldiçoados.

                                II

Tudo tinha começado com pequenas coisas, os minúsculos efeitos são os mais assombrosos. Havia entrado durante o dia no quarto, mas não tinha prestado a devida atenção na parede de frente para a cama. Desci as escadas devagar, queria apreciar o som do piso, a madeira rangendo como se estivesse se contorcendo aos meus passos. Na maior parte da mansão havia quadros para todos os lados, rostos, sombras, formas abstratas. O velho parecia gostar de pintar, apesar de nunca ter visto ele praticando.

Há também um lustre de velas na sala de jantar, uma grande mesa de madeira italiana com cadeiras clássicas. O velho tinha bom gosto.

Nunca deixei de admirar todas as vezes que fora para a cozinha e para a sala, a luz do candeeiro refletia em todas as artes monstruosas que me rodeavam, todas aquelas formas de pinturas foram tiradas da mente de um homem perturbado por seus demônios!

A noite fui para o quarto, acendi algumas velas, pois, na mansão ainda não há fiação elétrica. Olhei para a janela e começará a neblinar, e a trovejar ao longe, às gotas começaram a rolar na claraboia. Precisava arrumar as tralhas, carreguei algumas caixas para o quarto às cegas, recostando-se na parede, ao longo da escada até a alcova, tropeçará nos últimos degraus, derrubando todas as coisas já adentrando no quarto, no entanto, o ocorrido me fez reparar em algo que até então não tinha notado, e essa fora a hora em que notei o quadro de face maligna no quarto, e para baixo, ao chão ele me olhava, a luz do candeeiro jazia aquela rosto brilhar. Olhei-o por um tempo, passei a encarar destemidamente a pintura do homem meio-caveira, um raio azulado me roubará a atenção inteira lá fora na janela. Comecei juntando as coisas a caixa outra vez, em seguida peguei o candeeiro e sai procurando livro por livro na pequena estante que há no quarto. Meu avô fora um homem de conhecimento, e um excepcional psicanalista, sua estante estava recheada dos melhores títulos, de Freud a Lacan.

Ainda estava cedo, a noite só começará, mas tão logo me deitei nos velhos lençóis da cama com um livro em mãos, estava fazendo um pouco de frio, o silêncio tomará conta do lugar inóspito, era possível escutar cada gota na janela, uma por uma. Começarei a ler, mas logo em seguida escuto algo ranger no quarto ao lado, no qual eu dormia.

Apesar de não crer em fantasmas, meu coração estava começando a fiar-se,  batia abafado, como se tivesse coberto por um pano, fazia tic-tac aos meus passos, ele tamborilava mais rápido. Fui até o umbral do outro quarto, mas não tive ousadia de abrir, apesar de minha mão suar para realizar tal loucura, fiquei parado ali por um tempo, com o ouvido apurado, grudado na porta.

Nada ouvi, senti que fora apenas coisa da minha cabeça, ou as ratazanas da casa, ou que o sono me causará isso, voltei para a cama e dormi.

O pesadelo das garras negras aconteceu na madrugada, acordei com um nó na garganta, sentia meu corpo pesado, e extremamente suado, pegajoso, a luz do candeeiro estará nas últimas chamas… a chuva tinha parado, diante disso decidi ir tomar água, descendo para a cozinha pisando leve como uma pena, meus olhos não poderiam piscar em momento algum, todos aqueles demônios pintados em quadros me assustam, notava que onde fosse estariam me olhando, com bastante penúria.

Voltei rapidamente, aquele ambiente a noite me dava nó nas entranhas. Tentei dormir de novo depois da noite conturbada, estava com medo de selar as pálpebras ali, de frente para o demônio que de mim não tirava os olhares.

Acordei cedo, o sol adentrava nas minhas pálpebras irritantemente, levantei para tomar um café na cozinha, naquela imensa mesa de madeira, precisava abrir algumas janelas da sala, a casa tinha um cheiro de mofo por toda a parte, a chuva entrará em alguns lugares do lar. Fui ao cômodo em que ouvi barulhos, abri cautelosamente uma brecha para espiar, estava um pouco escuro, acendi um candeeiro, vasculhei cada parte do dormitório e nada vi. Dei meia volta para o quarto deparando-me com a maléfica tela novamente, encarou-me com olhos famintos, louco por uma mente são. Não sei o porquê da minha intriga com tal figura, mas que estaria por fim toda essa cisma, decidi arrancá-lo da parede e queimá-lo de imediato, quem sabe assim as coisas sinistras acabassem de vez.

Queimei-o ali mesmo no quarto, no balde de lixo, não parei de encará-lo, abri um sorriso maldoso vendo a sua cor se esvair, desbotando-se do quadro, e se transformando em cinzas. Agora eu estava alegre, como se tivesse vencido a maldade do mundo, mesmo assim, ainda olhará para mim uma última vez, antes de se consumido pelas chamas.

Não fora uma ideia muito boa queimar o diabo, só estava atiçando ainda mais a sua malignidade, que começará a piorar em seguida… enquanto termino de abrasar o quadro, algo chega a bater fortemente na janela, fazendo surgir uma pequena fissura, pondo-me à beira do medo novamente.

Fui receoso até a janela, aos passos de uma lesma, estiquei o pescoço, não tive tanta coragem de encostar na vidraça, e avistei apenas uma ave fúnebre soltando o seu lúgubre grasnar dos infernos. Aquilo não era um bom sinal, andei para trás devagar. O mau cheiro começará de novo, e dessa vez mais forte, uma carniça insuportável.

Quando de súbito um abutre se choca com a janela quebrando por inteiro a vidraça, caindo próximo de mim, ainda agonizando da batida!

Meus olhos quase saltam das órbitas, corri para a porta e desci rapidamente para o andar de baixo, chegando na metade da escadaria, parei!

Olhei para cima, bateu-me a curiosidade dos arranhões e o cheiro no outro quarto. Não poderia deixar que tais fantasias me tirassem dali.

Peguei um pé de cabra e corri para o quarto escuro, usei novamente o candeeiro.

Senti que estava entrando noutra esfera, noutra atmosfera, empurrei a cama com toda a força, ela rangia, mas consegui afastar boa parte, e lá estava os vários arranhões no piso de madeira, enterraram as unhas no chão, e quem o fizera com certeza estava sendo puxado por algo.

Agachei e avistei um pequeno buraco, aproximei o candeeiro e contemplei uma mosca e depois outra, o cheiro estava insuportável.

Cravei o pé de cabra na madeira e levantei as tábuas do piso.

Mal saberá que ali embaixo tinha um enxame de moscas-varejeiras, tomei um susto que caí para trás, vomitei todo o café da manhã ali mesmo, sai do quarto meio esverdeado para respirar, não aguentava o cheiro. Adentrei novamente no quarto e clareei na brecha que abrirá, estava lá o meu velho e quase irreconhecível avô dentre os besouros que o devoravam e as larvas que rolavam nos seus restos mortais. Estava murcho como uma uva-passa e de pele escura, seus olhos pareciam chorar tapuru.

Não aguentei ver aquelas imagens, vomitei novamente e não ousei entrar ali outra vez. Morar aqui nesta casa é uma tremenda loucura, da qual no fim acabo por descobrir. Entrei no quarto para ver se o abutre não estará vivo, mas não havia nada... Não tinha ave alguma! A janela estava intacta, e o “quadro”...a maldita “TELA” refletia o meu vulto aos cacos, totalmente fragmentado! Sem nenhuma fagulha de cinzas, nada!

Aquilo me intrigou abruptamente, corri para o quarto fedido e estava tudo normal também, não havia o cadáver do meu avô debaixo do piso, nem moscas, nem vermes. Aquele ambiente estava me deixando louco de pedra. Tinha de ir imediatamente embora, quem sabe o mesmo  não aconteceu com o meu avô, que fora de encontro a morte.

Tentei manter a calma, como eu, um renomado dr de mentes, ficar louco dessa maneira! Como? Não parava de pensar um minuto se quer.

Peguei a minha mala no quarto e algumas outras coisas, não ficaria ali nem mais um segundo. Quando escutei a ave negra e seu tenebroso cântico de morte lúgubre. Estava amedrontado, a madeira rangia por todo o piso e o vento forte tentava entrar pelas brechas da janela. Olhei para o jatobá do pátio e lá estava o meu avô balançando-se pelo pescoço e os corvos comendo o que restava de seus olhos. Andei para trás até a porta, o quarto parecia escurecer, esbarrei na estante de livros de onde caiu um jornal e alguns documentos aos meus pés. Olhei para o jornal, a manchete estampada na capa me tirou todas as dúvidas que até então eu tinha.

“UM DOS PSIQUIATRAS MAIS RENOMADOS DO ESTADO, O DR STEVEN HARMON, É ACUSADO DE MATAR E OCULTAR O CADÁVER DO SEU AVÔ NO PISO DA SUA CASA.

As autoridades encontraram o psicanalista enterrado no piso do seu quarto, já no estado de extrema decomposição. Contendo algumas marcas de enforcamento, e várias lesões na cabeça e no peito, várias outros ferimentos foram encontrados causados por provavelmente corvos e abutre. A Polícia ainda está a procura do seu neto, o dr steven, que fora encontrado no local do crime, logo após dar o seu depoimento, seu paradeiro ainda é um mistério”

Não lembrará de nada, havia um espaço em branco na minha linha do tempo.

Estava paralisado, e ali mesmo permaneci por um bom tempo. Essa seria a explicação para os repentinos apagões que tivera quando criança.

Que homem consegue respirar após praticar tal atrocidade com alguém de mesmo sangue!?

O demônio morava dentro de mim o tempo inteiro, o gênio maligno! Não posso deixá-lo solto por aí. Não tenho escolha alguma, ele irá morrer essa noite quando mergulharmos juntos de cabeça nessa janela até o chão lá embaixo.