A Aberração da Colina
NÃO ESPERO QUE QUEM QUER QUE TENHA ENCONTRADO ESTAS FOLHAS acredite no relato que farei a seguir porque nem eu, que presenciei de fato a tal situação medonha, consigo associar aquilo que vi com a realidade.
Todavia, duvidar é algo aceitável, já que o tal acontecimento é comparável apenas às velhas histórias conspiratórias que há muito foram acobertadas pela humanidade, e que jamais verão a luz do dia.
Ressalto que, mesmo não tendo provas concretas para apresentar além da minha palavra, devo contar com o juízo e o bom senso de quem quer que tenha encontrado estas páginas. O que relato que você lerá não se compara a nada que você tenha imaginado – nem em seus piores pesadelos.
No final da tarde de ontem, quando finalmente terminei os afazeres da fazenda, sentei na cadeira de balanço, acendi um cigarro e fiquei observando ao longe os tratores das propriedades vizinhas encerrarem quase que em perfeita sincronia mais um dia normal de trabalho. Apenas alguns meses após o fim da Grande Guerra, o produto do campo se valorizou e hoje vendemos trigo para a cidade como se fosse água. Por isso, geralmente todos os proprietários de terras da região iniciam o trabalho quando o sol nasce e só acabam mais ou menos quando o dia começa a ser engolfado pela escuridão.
Tomei um gole de conhaque para preparar o velho corpo para o frio da noite e, após esse rotineiro ritual, fui me deitar para recomeçar o ciclo habitual na manhã seguinte.
Era de madrugada quando ouvi o estrondo.
Acordei assustado, imaginando que teria vindo de dentro da minha própria residência de tão ensurdecedor que foi, tal como um trovão. Por vários segundos permaneci sentado na cama, tentando entender o que diabos estava havendo e então, mesmo um pouco desnorteado por conta do sono interrompido, levantei-me. Atravessei rapidamente o quarto em direção a sala com a lanterna em mãos e fiz questão de analisar cada cômodo da casa. Não havia nada de anormal, até então. Em seguida caminhei até a minha geral de energia e, felizmente, não havia nenhum sinal de explosão e também nenhum cheiro de queimado. Logo tive a certeza de o que quer que tivesse acontecido, não teria sido em minha casa.
Por precaução, apanhei o revólver no criado-mudo ao lado da cama e fui em direção ao curral em busca de respostas. Os animais da fazenda, apesar de também estarem tão assustados quanto eu, não tinham saído de seus estábulos. Tudo estava exatamente do jeito que eu havia deixado antes de ir dormir. Guardei o revólver dentro das calças e fui retornando para a porta da frente, ainda com as mãos tremendo um pouco.
Foi só quando olhei de relance pela janela do meu quarto que identifiquei, ao longe, uma imagem macabra – no topo de uma colina próxima, a mais ou menos uns dois quilômetros dali, havia uma enorme coluna de fogo que rodopiava e dançava em direção aos céus, como uma fornalha infernal. Mesmo de tão longe, era uma visão diabólica, comparável talvez apenas ao próprio Inferno.
Naquele momento eu estava mais atônito do que horrorizado, e talvez o susto da situação tenha feito com que meus sentimentos tivessem aflorado mais do que o normal. Então, tomado pela maldita curiosidade, tranquei a casa, fui até garagem, apanhei a caminhonete e parti em direção à colina para averiguar aquela situação com meus próprios olhos – algo que, nesse momento, me amaldiçoo por tê-lo feito.
Sob o preto e fúnebre céu da madrugada sem nuvens e a tímida lua cheia, o silêncio absoluto da noite só era quebrado pelo ronco engasgado do motor.
Chegando lá, estacionei o veículo longe do fogo, com receio de alguma segunda explosão acontecer, já que eu não sabia o que tinha acarretado a primeira. Concluí também então que não havia mais ninguém ali além de mim; provavelmente fui o único ser humano que ouviu o barulho – ou que foi idiota o bastante para sair de casa e ir até lá.
Tentei espreitar dali mesmo o que estava sob aquelas chamas de quase quatro metros de altura, mas não consegui discernir inicialmente muito bem aquela coisa. O calor estava insuportável, mas, mesmo assim, fui me aproximando com cautela; percebi que aquilo se assemelhava a uma espécie rústica de aeronave, ou o que sobrou de uma. Deveria ter cerca de uns vinte e cinco metros de tamanho, e o fogo também parecia não conseguir derretê-la. O design não se assemelhava a nenhum daquelas aeronaves de guerra que a gente vê nos filmes, nem com nenhuma outra que eu tivesse visto antes. E para completar, parecia também ter sido construída com uma chapa única de aço, o que despertou mais ainda a minha atenção. Simplesmente não fazia sentido algo como aquilo existir e funcionar.
Em meio as chamas, consegui enxergar uma espécie de cockpit que, com mais um pouco de esforço, revela alguns botões luminosos na parte de dentro da aeronave, com alguns entalhes esquisitos que lembravam caracteres rupestres feitos à mão, totalmente desconhecidos por mim.
Fiquei confuso com aquilo tudo, mas no momento me convenci que deveria ser algum projeto secreto do exército que tinha dado errado e que encontrou o seu declínio naquela pobre colina no meio do nada.
Estava com mais perguntas na minha cabeça naquele momento do que antes de ter visto aquela aeronave, mas pensei em partir em retirada dali o quanto antes; mais pelo motivo de não querer maiores problemas, pois ali a pouco, com certeza, estariam as autoridades e, conhecendo os seus modus operandi, se vissem um caipira ali dando mole no meio da madrugada, não pensariam duas vezes em levá-lo para um burocrático interrogatório – e provavelmente até apagá-lo do mapa, dependendo das circunstâncias.
Foi então que eu ouvi algo totalmente bizarro.
O sibilo horrendo que foi proferido naquela colina não se assemelhava a nada que eu já tivesse escutado antes na vida. Minha nuca arrepiou-se enquanto as minhas pernas fraquejaram instantaneamente. O motivo de eu não ter ido embora naquele exato momento, eu não sei. Burrice, talvez. Só lembro que a minha única reação foi dar um passo para trás e sacar meu revólver na mesma hora. Olhei em volta e permaneci imóvel por uns vinte segundos até ouvir o mesmo sussurro medonho novamente. Era um som tão surreal que, naquele momento, eu tinha certeza de que não fazia parte deste planeta; tal qual aquela nave destruída ao meu lado.
Eu não tinha certeza se aquilo provinha de algum animal selvagem mas, talvez por instinto ancestral, fui andando em direção ao som, que vinha perto de uma pequena clareira próxima de onde eu estava. Quanto mais eu me aproximava, mais um odor incrivelmente putrefato se impregnava no ar, bastante semelhante a peixe podre ou a algo que o valha.
A clareira não possuía muitas árvores, mas estava bastante escura. Nem a luz do fogo e muito menos a da lanterna eram capazes de revelar com clareza o que poderia estar escondido ali. Com cuidado, fui adentrando aquele pequeno aglomerado de plantas com a lanterna em mãos com aquela luz iluminando apenas parcialmente os trechos que ela conseguia, por sorte, revelar.
De repente, eu vi a criatura.
Naquele momento, eu achei ter ficado finalmente maluco. Entre a luz das chamas e a escuridão da clareira, consegui enxergar por alguns instantes aquele ser que se encontrava ali. A besta deveria ter cerca de dois metros e meio de altura, e estava contorcendo-se como uma cobra endemoniada sobre as raízes de uma das árvores. Deveria estar gravemente ferido por conta da queda da aeronave, pois do que seria provavelmente a cabeça faltava-lhe um naco enorme, de onde se esvaia um líquido escuro como piche e que certamente era o motivo do odor horripilante que senti momentos antes. O pouco que consegui concluir sobre a sua fisionomia é de uma sensação tão infernal e abominável que sequer teria as palavras certas para discerni-la aqui. Algo terrivelmente sinistro.
Logo a criatura anormal percebeu a minha presença e fitou-me. Seu imenso corpo esquisito e fora de proporção tentou ficar em posição vertical enquanto seu sibilo naquele instante tinha se tornado um som que sequer ouso falar detalhadamente. Minha única reação foi de descarregar o revólver naquela coisa e sair correndo em desespero até minha caminhonete, em completo pavor. No calor do momento, sequer tive coragem de olhar para trás para confirmar se aquela criatura estava mesmo morta ou não. Não me importava mais. Tinha que sair dali o quanto antes.
Não tenho muitas lembranças concretas após isso. Quando me dei por mim, estava em minha cama, com o corpo febril, molhado de suor e minha arma em punho, sem nenhuma bala para contar história. Provavelmente devo ter tido algum pesadelo macabro com o acontecido, pela forma brusca com que acordei esta manhã. Ponderei sobre a situação macabra em que me encontrei e que, se o Deus da Bíblia realmente existe, onde ele estaria na única noite em que precisei dele. Ainda não consegui sequer comer alguma coisa, pois logo vem-me às narinas aquele cheiro de carne podre oriundo da aberração da colina.
Nunca saberei o resultado final do acontecimento de ontem, pois não voltei ao local e nem pretendo voltar tão cedo. Talvez jamais chegarei a relatar este acontecimento diretamente para alguém, muito menos para as autoridades. Até porque ser tachado de louco seria o menor dos meus problemas, se eu o fizesse. Contento-me então em escrever tudo isso que aconteceu nestas folhas de papel, rezando para que a bebida, aos poucos, amenize esse sentimento de irrealidade e desolação que sinto ao lembrar daquele amaldiçoado ser alienígena contorcendo-se diante de mim!