SANGUE E VOLÚPIA
Quando a conheci, tive a certeza de que ela mudaria a minha vida. Seria uma divisão de águas em meu existir, a partir daquele instante e para todo o sempre. Ela veio de longe, de distantes paragens, um ambiente tão peculiar que mal consigo imaginar. Um lugar de sombras, temores, lendas e desejos. Terras que pulsam vivas, e, tal como um coração, bombeiam rios de sangue através de seus domínios.
Quando seus lábios tocaram os meus pela primeira vez, e pude sentir a essência de sua vida transcorrer em minha mente, vislumbrei todo o seu viver. Compartilhei suas decepções e amores...muitos amores, porém todos insípidos e efêmeros. Mas comigo seria diferente, pois senti a convicção dos sentimentos em seu olhar, algo bem diferente do que percebi em suas aventuras, como a vivenciada no dia em que fora obrigada a deixar o velho continente rumo às nossas terras...algo que agradeço com toda a minha intensidade.
Península Ibérica 1571
Eu vi, como se tivesse estado lá naquela noite de decisões, o sinuoso filete duplo que escorria pelo pescoço da jovem deixando um rastro pecaminoso de dor e prazer. A palidez da tez daquela menina só era comparável à brancura dos tecidos que a envolviam. Ambas as superfícies exibiam as marcas rubras da recente invasão, a qual, por mais que tivesse sido de certa maneira consentida, não deixava de ser um sinal inequívoco de violência.
- Estília...Estília...
O nome proferido pela boca entreaberta quase não era audível, o som saía de modo arrastado, murmurado, como se declamado por meio de derradeiros suspiros.
Ao toque, a fronte debilitada ostentava mostras das cascatas geladas dos Cárpatos, tanto pela temperatura, quanto pela umidade, a despeito da febre que consumia há dias o corpo da menina.
- Estou aqui, minha criança.
A mulher – motivo de atenção e súplica da jovem adoentada – refletia uma aura de magnetismo e carisma por trás das palavras e, sobretudo, da aparência. Sua pele era tão ou mais alva do que a da menina postada na cama, mas ao contrário dos cachos negros, característico das damas ibéricas, os cabelos de Estília eram longos, louros e pesados. E, por mais que ela se movimentasse, parecia que os fios permaneciam imóveis. O verde em seus olhos lembrava o tom escuro e mórbido das florestas mais reclusas de sua terra natal. No entanto, não era a peculiaridade da cor o que mais chamava a atenção em seu olhar, mas sim uma ferocidade latente, algo selvagem e imoral, um ingrediente totalmente irresistível para quem a encarava.
- Estília, minha senhora, sinto que os dedos finos e sinuosos da dama da foice acariciam meu rosto e estão na iminência de me tirarem de sua companhia. Eu não posso ir...não agora...nunca fui tão feliz em minha vil existência. Não deixe que ela me leve. Não deixe que me tirem de você.
- Minha criança. Minha pobre e doce criança. É verdade que a morte te levará em breve, e quanto a isso não há o que se fazer. Mas não se deixe levar pelo pensamento de que sua vida tenha sido em vão. Você atendeu a um propósito maior, e por mais que se vá, ainda viverá, pois sua vida corre em mim, não apenas nos nutrientes que me sustentam, mas nas memórias que hoje fazem morada em meu viver, algo que para a eternidade levarei comigo.
- Não diga isso, minha Estília. Por mais que suas palavras me tragam conforto nessa hora de incertezas, rogo para que permita a minha existência ao seu lado, não me abandone.
- Ora, minha querida, você sabe que isso já não é mais possível. Mas, para confirmar a estima que tenho por você, farei com que sua jornada seja rápida e quase indolor.
Logo após proferir tais palavras, Estília mudou de semblante, seus olhos tornaram-se em verde intenso, numa tonalidade mórbida, quase negros. Eles miraram com ferocidade os riscos escarlates no pescoço da jovem, a qual, mesmo se quisesse resistir, não teria tido a oportunidade. A boca da mulher prendeu-se como uma ventosa na pele ferida da menina. Com a mão esquerda, Estília segurava sua cabeça que sacudia em convulsão.
Alguns segundos bastaram para que o corpo exangue fosse abandonado. A mulher cumprira o que prometera no que dizia respeito à brevidade, quanto ao sofrimento, era impossível saber.
Estília abandonou o local e embarcou numa caravela muito antes dos membros da Inquisição Espanhola adentrarem pelos domínios do castelo. Os meses no Atlântico a ensinaram a não temer as águas, ao passo que quase a totalidade da tribulação a nutriu em suas necessidades. As lendas do mar e as dificuldades da travessia não eram páreo para sua voracidade. Um novo mundo se abria, com possibilidades infinitas e, para alguém de sua estirpe, a certeza de sucesso.
Rio de Janeiro, dias atuais
Entendam, eu não tinha a menor intenção de alcançar esse sentimento nessa altura da minha vida. Casada de modo estável com um bom homem, ajudando a criar uma enteada de dez anos, uma menina incrível, no entanto certas coisas acontecem sem que tenhamos qualquer intuito.
E posso garantir que tudo o que eu achava que sentia, todo aquele sentimento de amor e família evanesceu-se de forma súbita quando a vi. A partir daquele momento tudo a minha volta se tornou tão mundano e insignificante. Os olhos de Estília acenderam uma fogueira adormecida dentro de mim. Com ela pude entender de fato o que era um sentimento real, algo que transcendia o corpo e a alma.
Ela estava postada na porta de um cinema de rua, num dos poucos que ainda resistem na capital carioca. Sei que pode parecer piegas, mas sua beleza transbordava a normalidade, algo tão intenso que transformou minhas convicções e gostos de maneira imediata. Fui até ela, ou melhor, acho que fui capturada por sua vontade.
- Oi, boa, boa noite, meu nome é...
- Isabela, eu sei, uma designação apropriada para a imagem que representa. As pessoas me chamam de Estília, um epíteto tão antigo como minhas raízes. E estou encantada em conhecê-la, Isabela.
- Eu, não sei direito porque vim até aqui.
- Claro que sabe, Isabela.
Ela se aproximou de mim. Pude perceber o vazio esmeralda em seu olhar, como uma armadilha armada e fatal. Impossível de resistir. Seu hálito remetia a orvalho em folhas jovens. Ela encostou seu rosto no meu, ao passo que deslizava a ponta dos dedos em minha nuca, descendo levemente pela coluna. Com um tom mais baixo, ela falou diretamente em meu ouvido.
- Você me quer, Isabela, por isso veio até mim.
- Sim. Eu quero. Não sei explicar como isso aconteceu. Mas eu quero mais do que tudo na vida.
- Claro que quer.
Senti a aspereza de sua língua tocar o lóbulo de minha orelha. E, sem qualquer exagero, vislumbrei um arrepio percorrer minha alma. Seus lábios, que apresentavam naturalmente uma tonalidade viva semelhante ao caramelo reluzente de uma maçã do amor, resvalaram em meu pescoço. Um torpor dominou a área tocada, senti um filete quente escorrer pelo meu braço.
Ela se afastou e me ofereceu um sorriso úmido e rubro. Não resisti e a beijei. Toques agudos feriram minha língua e lábios, logo minha boca foi tomada por um gosto de fel. Ao mesmo tempo em que queria me soltar, uma vontade maior desejava mais e mais o toque. Senti que iria desfalecer num delírio existencial. Mas, de súbito, ela me soltou.
- Aqui não.
Ela me ofereceu um lenço alvo de seda, enquanto o dorso de sua mão tratava de limpar seus lábios de maçã.
- Estília, eu...
- Sim, eu sei. Faça assim, minha doce Isabela, me convide para a sua casa. Convide. Deixe-me entrar em sua vida.
.- Sim, Estília, Sim. Me abrace forte, por favor.
- Aqui não. Mas já que me convidou de bom grado, eu irei até você.
Num piscar de olhos, ela desapareceu da minha frente, me deixando uma lembrança e a convicção do que fazer.
Corri para casa e sem maiores explicações disse ao meu marido que estava indo embora. Sem me importar com sua perplexidade, tomei algumas roupas numa bolsa e ganhei a escuridão da noite. Acho que ele demorou a entender a situação, pois não veio atrás de mim, como seria de se supor.
Rapidamente cheguei à casa que era dos meus falecidos pais, há muito insistia junto a meu marido para que nos mudássemos para ela, pois se tratava de uma construção maior, com quintal, melhor para a menina, a despeito das dimensões reduzidas do nosso apartamento. Mas seu orgulho impedia a mudança...enfim, isso já não importava mais.
Deixei aberta a janela do quarto. A luz do luar incidia sobre a alcova na qual eu a esperava tendo apenas a seda e o cetim dos lençóis a me resguardar. Meus pensamentos voavam e me levavam diretamente a ela, em minha mente e coração apenas Estília fazia morada. Em nenhum momento passou pela minha cabeça o que meu marido poderia estar fazendo a respeito de tudo. Ainda assim, mesmo alheio ao meu interesse, naquele momento ele estava agindo.
- Isabela está completamente fora de si, minha filha. Eu não sei o que está havendo, mas é certo que ela não está raciocinando.
- Onde ela está, papai?
- Para o único lugar que ela poderia ter ido.
Um vento gélido entrou pela janela no exato momento em que uma chuva inesperada se fez presente. Era um prenúncio de sua chegada, pois tão logo após a ocorrência da mudança no lado de fora, percebi sua presença na janela como uma névoa súbita.
No vão escancarado Estília se mostrava de forma impávida, tão linda como alguém jamais poderia ser. A despeito da tempestade, nenhuma gota da chuva a atingira. Com uma leveza indescritível, seus pés já tocavam o carpete do quarto.
- Estília, minha Estília, você veio até mim.
- Estou aqui, Isabela. Nossos destinos estão entrelaçados, nossa história em comum já estava escrita há muito.
Ela se aproximou e, ao passo que se chegava mais perto, a palpitação em meu peito aumentava na mesma proporção do suor gelado que escorria pelas minhas têmporas.
A sutileza de sua presença já estava ao meu lado. Tentei me erguer, mas com suavidade e, ao mesmo tempo, impulso, uma de suas mãos me impediu. Delicadamente, ela abriu espaço em meus ombros deslocando meus cabelos. Seus lábios de intenso vermelho me cativavam, enquanto seu hálito cítrico me convidava. Leves toques de sua boca percorriam o espaço marcado pelo meu ombro, clavícula e pescoço, alternando entre leves mordidas e toques ásperos de sua língua. Contatos esses que entorpeciam minha pele e extinguiam qualquer possibilidade de dor. Eu estava paralisada, totalmente entregue em minhas vontades. Estília segurou a minha cabeça de maneira decidida e se prendeu ao meu pescoço como um imã num objeto metálico. Ela sugava a minha essência e eu sentia minha vida se esvair. Mas eu não estava consternada, muito pelo contrário, tratava-se de um eventual sofrimento para o que estava por vir.
Mas, como num despertar de um sonho, ou pesadelo, me senti livre, e essa liberdade veio acompanhada de um grito, um grito estridente proferido pela garganta de minha amada.
Estília foi jogada ao chão, transpassada pela ponta aguçada de um objeto improvável: um guarda-chuva. Diante de mim surgia a figura assustada e confusa do meu marido.
- Não! O que você fez com ela? O que? Seu maldito!
- Não se preocupe, Isabela. Te livrei desse monstro. Você está livre.
Não conseguia nem ouvir o que ele dizia. Corri de encontro àquela que jazia no chão. Um líquido negro vertia do vão aberto em seu peito. Não tive dúvidas e mergulhei naquela poça de sofrimento e dor. Sorvi seu néctar da vida na certeza de que isso era o que faltava para o que eu precisava fazer.
Numa fração de segundo morri e revivi, e minha ferocidade determinava minhas vontades e ações. Voei na direção daquele que enterrou meus sonhos. Cravei meus dentes em seu pescoço e exigi o pagamento por tanto sofrimento. Mas não o deixaria morrer, não mesmo.
Com ele desfalecido, o levei para o quarto ao lado e o prendi nas grades da janela com o auxílio de uma algema, objeto que meu falecido pai sempre guardava numa das gavetas da cômoda, ao lado de uma pistola carregada.
Então, mordi meu pulso e abri um sulco ensanguentado, para em seguida posicioná-lo em sua boca.
- Beba, maldito. Logo você se transformará, mas ficará trancado aqui. Sua sede aumentará a cada dia, até se tornar insuportável. E, nesse momento, somente nesse momento, jogarei aquela criança que está lá fora no automóvel para você. Esse será seu castigo.
Sem esperar por qualquer reação do homem que um dia acreditei amar, voltei para Estília. Ela estava paralisada pela ação daquela estaca improvisada. Agarrei o objeto com as duas mãos e o arranquei. Na mesma hora ela despertou, mas estava muito fraca ainda.
- Isabela, minha doce Isabela, se aproxime de mim.
- Estou aqui, Estília.
Postei meu corpo sobre o dela e mal pude entender o que veio a seguir. Senti minhas costelas sendo partidas por uma pressão incomensurável. Logo, percebi seus dentes em meu pescoço e minha garganta partida. Minha vida terminava ali.
- Isabela, minha pobre Isabela. Seu amor é doce, não posso negar, assim como o seu sangue. Mas diferente dos seus sentimentos, o líquido rubro de suas veias foi capaz de me nutrir.