Brincadeira entre amigos

Foi uma noite muito animada, os quatro amigos beberam muito, afinal, era o festejo do município. Milhares de pessoas reunidas na praça central para ouvir bandas de gosto duvidoso. Márcio, Felipe, Raimundo e Paulo não se viam há seis meses. Cada um estava em uma capital diferente, cursando as suas respectivas graduações universitárias. Como as festas da cidade natal dos quatro aconteciam em julho, coincidia perfeitamente com as férias universitárias, o que significava muita farra. Naquela segunda noite de atrações, virada da sexta para o sábado, divertiram-se bastante.

Foram para a festa às 23h00 e decidiram que aquela noite seria dedicada a beber, cerveja, cachaça, whisky, topariam tudo que fosse líquido. Lá pelas 3h00 da manhã estavam sob influência do álcool, bastante desgrenhados. Saíram da mesa de metal montada no meio da multidão, como é comum fazer nessas festas, e foram para um pequeno bar nas imediações da praça central que ainda estava aberto. Queriam a saideira e entraram no estabelecimento aos tropeções. Após usarem o fedorento banheiro do estabelecimento, sentaram-se em uma mesa enferrujada e pediram algumas cervejas. Tentavam conversar, mas a voz dos quatro estava quase incompreensível. Quando Felipe se voltou para falar com Paulo, percebeu que ele estava com a cabeça recostada na parede, dormia. A sua boca jazia aberta.

Ao chamar a atenção dos outros dois colegas para a cômica situação, Felipe teve a original ideia de fazer uma brincadeira. Isso era comum entre eles. Eram amigos desde sempre. Costumavam caçoar uns dos outros, às vezes havia um estresse, mas a raiva logo passava. A união entre os quatro era para sempre. Todos tinham certeza disso. Pediram ao dono do bar que apagasse as luzes do estabelecimento e lhes trouxesse uma vela. Fariam uma foto muito engraçada para zoar com o bêbado no dia seguinte, talvez postassem as redes sociais.

O dono do estabelecimento atendeu o pedido dos clientes e lhes conseguiu a vela que foi acesa em cima da mesa, bem próxima a Paulo. Era só uma saudável curtição. Os três amigos sacaram seus celulares e fotografaram o dorminhoco em meio a muitas risadas. Estava realmente muito engraçado. No momento em que Raimundo foi fazer uma selfie com Paulo ao fundo, ele acordou. Ou foi o que pareceu. Ao abrir os olhos percebeu-se que estavam totalmente brancos, não haviam íris neles nem pupila. O verde que seduzira tantas meninas sumiu.

Raimundo percebeu que o amigo acordara e virou-se para lhe falar, quando Paulo saltou da cadeira derrubando a mesa, agarrando-lhe o pescoço com as duas mãos. Os dois caíram no chão, com Paulo por cima, suprimido as vias respiratórias do amigo. Felipe e Márcio riram muito, apontavam com o dedo e fotografavam. Até notarem o desespero de Raimundo, tentando pedir socorro.

Os dois foram até Paulo.

- Que é isso, cara, era só brincadeira! – Exclamou Felipe.

- Já deu, Paulo! – Falou Márcio. Mas nada acontecera.

Paulo continuou enforcando Raimundo. Os dois se desesperaram e tentaram arrancá-lo a força. Nesse momento se tornaram lúcidos, o álcool perdera o efeito ante a adrenalina que tomava a todos naquele momento. Enquanto Raimundo exalava os seus últimos suspiros, Felipe soltou o pescoço de Paulo, pegara uma cadeira de metal e lhe acertara nas costas. Pareceu ter o efeito do toque de uma pluma.

Ao perceber que Raimundo morrera, Paulo empurrou Márcio, que lhe agarrava o braço direito. O jovem cambaleou para trás e caiu a três metros de distância. O agressor ficou de pé, agarrou Felipe pela camisa e o arremessou contra a parede. A sua força era sobre-humana. O som do crânio de Felipe quebrando ao colidir com a divisória pôde ser ouvido com nitidez. Também morrera.

A essa altura o dono do bar já correra para fora em busca da polícia. Para sua sorte encontrou soldados com uniformes camuflados, típicos de uma força especial da Polícia Militar. Faziam parte do reforço que fora enviado para a cidade por ocasião do festejo. Ao entrarem correndo no estabelecimento, os quatro militares presenciaram Paulo dando uma “gravata” em Márcio, que estava de joelhos, com o outrora “amigo” agarrado ao seu pescoço por trás.

Três militares foram ao encontro dos dois, tentando livrar a vítima. Enquanto um deles sacou a pistola, mantendo-a apontada para o chão, aguardando. Com a sua força demoníaca, Paulo livrou o braço esquerdo e deu uma cotovelada em um dos policiais, mesmo momento em que puxou a arma deste e apontou para o policial que estava à sua direita, quando foi alvejado na testa pelo quarto militar que ficara olhando a cena com a pistola em punho.

Paulo morreu na hora. Márcio ainda estava vivo e caiu no chão retomando o fôlego. Olhou rapidamente para o amigo que jazia sem vida, com muito sangue jorrando da cabeça. Os olhos estavam arregalados, sem vida, mas tinham voltado ao normal. Ele também vira uma sombra sair do corpo do morto, como que abandonando-o.

A festa acabou e a cidade entrou em luto. A tragédia era horrível demais para acreditarem que havia realmente acontecido. Os moradores locais não entendiam o que tinha acontecido, o que provocara aquele acesso de loucura em um jovem comum, igual a todos os outros. Márcio também não sabia, mas estava decidido a descobrir. O único sobrevivente do massacre não deixaria as perguntas vagarem no limbo.

Ao termino da primeira semana de luto após a tragédia, ele e o pai de Paulo, o senhor Manoel, viajaram para Goiânia – GO, onde o jovem cursava engenharia. Após irem até a universidade e localizarem alguns colegas do estudante, descobriram que ele esteve envolvido em uma confusão, depredara um Terreiro de Umbanda. Procuraram esse lugar e confirmaram a veracidade da história. Os dois ouviram da Mãe de Santo tudo o que acontecera e também a garantia de que ela não havia amaldiçoado o jovem, apesar do desgosto. No entanto, tudo tem um preço.

- Quando ele esteve aqui e quebrou as imagem, zombando da nossa crença, perdeu a proteção dos Orixás. O mal passou a acompanhá-lo, apenas esperando a oportunidade de agir– Falou a idosa. – O seu filho deve ter sido possuído por um Espírito Obsessor do pior tipo. Pelo que me disseram dessa história, acredito que ele foi possuído no momento em que ficou no escuro, sob a chama de uma vela. O espírito ganhou força e se apossou dele. – Finalizou.

Ao ouvir o relato da Mãe de Santo, Manoel chorou tanto quanto no momento em que recebera a notícia da morte do filho. Os dois saíram do terreiro lamentando que Paulo tenha tomado aquela atitude de desrespeito quanto a outra crença e se colocado na mira de espíritos ruins. Infelizmente, nada mais podia ser feito. Havia apenas a lição, tarde para o jovem, mas válida para tantos: não caçoe da fé alheia.

Aermo Wolf
Enviado por Aermo Wolf em 29/03/2019
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