Num Canto Qualquer
Não havia mais meias limpas ali, as mãos nodosas de Marta acariciavam os puxadores da cômoda, enquanto olhava mais para o fundo da gaveta, tocou algo macio e trouxe para si, rosa, felpudo, seus olhos castanhos inundaram-se e as lágrimas ardidas rolaram o rosto, levou ao peito a roupinha e infeliz tentou sentir algum cheiro de Bia.
Marta era somente mais uma sombra na casa, tão velha quanto ela, dizia sozinha: _A solidão dos velhos não os deixam dormir.
Os dias passavam sem sentido, devia ser quinta ou sábado então perto da escada Marta viu o fantasminha de Bia.
Passou a chamá-la, deixava bolachas e brinquedos por toda parte, ouvia passinhos no andar de cima, mas há meses não conseguia subir as escadas.
Marta tinha seu universo entre o banheiro pequeno, a cozinha e a sala, com a poltrona de couro falso rachado, seu pequeno corpo cabia ali, tantos cochilos e num deles sentiu Bia se aconchegar em seu colo vagarosa, não quis abrir os olhos mas sorria de amor e saudades, dormiu como nunca.
Acordou, e sua cabeça doía mais que o normal, aprontou um chá e uma fatia de pão. Trêmula tilintava a xícara no colo, a manta suja amparava os farelos, sua boca aftosa lutava para se alimentar, o chá empurrava o pão que lhe descia doloroso pela garganta, chorava e Bia lhe abraçava as pernas.
Com a noite chegou a chuva, os uivos do vento vindos do andar de cima, misturavam se aos chorinhos de Bia, seu fantasma teimava agora em chorar na sua antiga caminha, chamando Marta.
Não havia dor maior na alma de Marta, sua filhinha lá chorando e uma escadaria no caminho.
Ela decidiu que seus frouxos joelhos a levariam até lá, deixou o andador encostado e seus débeis braços começaram a escalar o corrimão como quem segurava uma corda, no primeiro lance suas têmporas já explodiam de dor. Já se arrastava, tossia e sentia náuseas. Assombrou se ao acender a luz do corredor e ver todo aquele abandono, uma súbita dor no peito quase a fez sentar no chão, o fantasma a chamava. Marta tateou o interruptor do quarto e a luz não acendeu, viu a caminha de Bia e lutou passo a passo, encostou na cabeceira, afastou o mosquiteiro, seus olhos brilharam, a boca sorriu com dentes falsos e a dor no peito se foi.
Se alguém lembrou-se de Marta, foi depois de alguns dias, seu corpo caído ao lado de uma caminha infantil com ossinhos felinos.