Toda vez que passo por aquela rua lembro-me do velho Alexandre. Já faz pelo menos uns trinta anos ou mais que ele se mudou para o Oriente eterno, onde algumas seitas espiritualistas acreditam que a nossa alma sobrevive, brilhando como estrelas, umas mais outras menos, conforme o mérito que adquiriram na terra. Não adianta dizer a eles que isso é uma mera superstição,  originária de uma antiga tradição egípcia que dizia que as almas que conseguissem atravessar a Tuat, a terrível e sombria região dos mortos, e fossem aceitas no céu de Rá, o deus Sol, se transformariam também em astros que ficariam brilhando eternamente no firmamento, para orientar o povo aqui na terra.
No fundo até que é uma bonita idéia, uma tradição inspiradora, essa.  Mas não sei se gostaria de me transformar numa estrela depois de morto, pois segundo os cientistas, os corpos celestes são estruturas muito frias ou muito quentes, e a maioria sequer tem condições de hospedar o fenômeno da vida. Quanto mais uma alma, pois quanto a esta, segundo os filósofos do evolucionismo, esses mundos celestes são etapas muito primitivas da criação cósmica e levarão ainda muitos bilhões de anos terrestres para atingir condições favoráveis para incubar a vida. Isso quando não são estrelas que já morreram há muitos milhões de anos e só agora a sua luz está chegando à terra.
Essa é uma idéia estranha, mas pode ser que ao contemplarmos aquela estrela tão bonita que brilha no céu das nossas noites, nós estejamos apenas a olhar um corpo que já morreu ha milhões de anos, mas sobrevive algures, na luz que dele se desprendeu quando a sua existência foi tragada por esse buraco negro que nós chamamos de morte e os cientistas de entropia, ou seja o esgatamento da energia nuclar que alimenta a nossa vida. Isso me leva de novo à velha visão espiritualista: somos corpos feitos de luz; energia que se condensou em massa por força da aceleração; massa que se organizou em forma de organismo por força do fenômeno da gravitação; forma que adquiriu vida em razão da complexidade do seu arranjo organizacional.
Com essa âncora no pensamento lembro-me de um poema do Fernando Pessoa, poeta favorito do meu velho amigo Alexandre:  

Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta e os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas.”


A reflexão metafísica do Fernando me leva de novo ao velho Alexandre. Que ele morreu é tão certo quanto o fato de que eu também morrerei qualquer dia desses. Sei que ele morreu porque fui ao enterro dele, bati espadas com meus Irmãos maçons na passagem do seu caixão pela abóboda que formamos na entrada da capela do cemitério, e vi, com estes olhos que a terra comerá, que seu corpo físico baixou á sepultura e lá ficou, quietinho e conformado, como ele havia ficado nos últimos anos da sua vida, passados quase em clausura por causa da artrite que lhe enfraquecera as juntas e dificultava a sua locomoção.
Por isso é que ele gostava de ficar, todos os dias, na janela da sua velha casa da Rua C..., sentado na sua poltrona favorita, vendo o mundo desfilar pela janela. E as pessoas passavam, cumprimentam-no, alguns pararam para um papinho, e depois iam embora, cuidar de suas vidas. E assim as coisas iam caminhando, para o velho Alexandre em um determinado sentido, e para o mundo lá fora, num outro sentido.
Isso é o que ele fazia pela manhã, quando o sol batia na janela da sua sala. De tarde, quando o caprichoso astro-rei (ou o deus Rá), como ele gostava de chamá-lo), dava meia volta no hemisfério  e sua luz mudava de posição iluminando o fundo da casa, o velho Alexandre também mudava de posição na sua casa. Então ele saia da sala e ia para o seu  quarto, e ali ficava sentado numa poltrona, em frente à janela que dava para o quintal, onde ele e sua velha companheira, nossa querida cunhada Elsa (que Deus a tenha como uma boa voluntárias das hostes celestes e não como uma estrela fria), criava umas galinhas.
Eram, se não me engano, umas cinco galinhas e um galo, que o velho Alexandre chamava de Nicanor. Bela ave era aquele galo. Másculo, imponente, com o peito estufado como um atleta olímpico, e uma crista altaneira de dar inveja a um general romano. E devia ser muito viril, pois servia muito bem a todas suas fêmeas. Dizia o velho Alexandre que nunca as vira reclamar de qualquer preferência dele por uma galinha em particular, nem que qualquer uma delas ficasse sem cobertura nos dias da sua necessidade.
“Esse galo devia se chamar Salomão, Ali Paxá, Casanova, e não Nicanor”, diziam os amigos do velho Alexandre.
“ É que ele é cristão e não gosta de muçulmano nem de judeu ”, respondia ele, rindo da sua tirada cultural.

Alexandre e o galo Nicanor eram tão amigos que o dia em que o velho, por algum motivo, não vinha á janela, a pomposa ave se recolhia ao seu cercadinho e não sai nem para comer. Nesses dias, se algumas das suas fêmeas precisasse de cobertura o Nicanor, com certeza, não ia funcionar. Todo macho têm esse direito. Afinal, não é todo dia que a maré sobe.
Mas o fato é que existia uma química estranha entre o velho Alexandre e o Nicanor. Eles conversavam como se fossem dois velhos amigos. A tarde inteira. O velho ficava na janela, falando com a ave e ela ciscando em baixo. Ele na sua linguagem matreira, chamando-o de safado, tarado, mulherengo, malandro, Casanova e outros epítetos do gênero; o galo respondendo num cocoricó zombeteiro, próprio dos grandes “pegadores” .

No dia em que o velho Alexandre teve a sua parada cardíaca definitiva e foi para o hospital tentar uma última abreviação no embarque para esse outro lado da vida onde a gente diz que vai para descansar, embora todo mundo prefira se cansar ainda mais um pouco, o Nicanor passou o dia inteiro ciscando e cocoricando em baixo da janela do quarto, como se estivesse perguntando por que o amigo não aparecia para conversar. Ele decerto tinha tanta coisa para contar. Naquela manhã tinha coberto duas de suas fêmeas, num espaço de cinco minutos. Que outro macho seria capaz de tal façanha? Queria cocoricar se vangloriando de sua potência, mas cadê o amigo para ouvir?
E assim foi durante dois dias. O Nicanor ficava ciscando em baixo da janela esperando o confidente. Mas ele não veio nesses dois dias nem nos dias que se seguiram. E ele, sentindo que algo havia contecido com o velho amigo, enfurnou-se no seu cercadinho e ficou lá. A cunhada Elsa estranhou a tristeza do galo. Não saia mais do seu cercadinho nem para comer. Seu peito murchou como uma bexiga vazia. Sua crista baixou como uma antena de TV derrubada pelo vento. As galinhas ficaram indóceis porque o Nicanor já não as atendia mais.
Não sei se tem a ver, mas não havia decorrido ainda uma semana depois da morte do velho Alexandre quando a cunhada Elsa abriu a janela do quarto e viu lá em baixo o Nicanor, morto. A impressão é que ele passara a noite em baixo da janela. Coincidência ou não, a cunhada Elza morreu oito dias depois. Dois dias antes tinham morrido todas as galinhas também.

Talvez uma doença qualquer tenha atingido as aves, mas eu acho que foi o rompimento de um dos elos da cadeia emotiva que os ligava que acabou levando a energia dos demais.
Os espiritualistas dizem que quando as pessoas vivem juntas por muito tempo e constroem uma vida feita de propósitos idênticos e semelhantes aspirações, elas se ligam não apenas pelos laços do corpo e das estruturas sociais, mas também criam uma espécie de “solda” espiritual que não se rompe com o desaparecimento de um de seus elos. Elas continuam “ligando” as pessoas por um sentimento de pertencialidade e apego, que vai sugando a energia de quem fica e as faz, mais depressa do que se espera, ir atrás do parceiro.  Por isso é que se observa, com uma regularidade que não pode ser atribuída à mera coincidência, a tendência de certos cônjuges, que viveram muito tempo juntos, falecerem um após o outro, em intervalos muito curtos.
Na tradição judaica essa “espiritualização” da relação simbiótica entre as pessoas recebe o sugestivo nome de “gilgou”, ou seja, o conjunto das almas que pertencem a uma mesma família, ou grupo simbiótico, formando uma alma coletiva que protege o clã. É uma relação que se estabelece em nível de espírito e funciona tanto para promover a sinergia do grupo, fortalecendo –o , quanto para provocar a entropia, enfraquecendo-o quando um dos elementos do grupo desaparece.
Seja o que for essa estranha relação que se estabelece entre duas ou mais almas que se ligam pelos laços do afeto e da cumplicidade emotiva, o fato é que ela parece sobreviver ao tempo e à extinção dos nossos invólucros carnais. E por isso, quando eu passo em frente á janela do velho Alexandre me parece que ele ainda está lá, conversando com o Nicanor. Sinto essa sinestesia como se estivesse segurando uma pedra de carvão que ainda conserva um resquício de calor.

Não gosto de pensar que ele e todos os membros da minha família que já se foram são estrelas frias ou quentes brilhando com maior ou menor intensidade no céu. Assim elas ficam distantes demais. Não os alcanço nem com o socorro da extensividade  extraordinária do meu espírito. Prefiro pensar que eles permanecem aqui na terra como “formas-pensamento” que sobrevivem no plano astral e dos quais posso receber bons influxos energéticos para me ajudar a cumprir o que ainda me resta fazer nesta minha jornada. Isso me leva de novo ao Fernando Pessoa e eu concluo que assim eu só vou desaparecer definitivamente quando o sistema, por inteiro, desaparecer. E sendo o universo um sistema, eu sobreviverei até o seu último suspiro porque faço parte dele. E como o universo é atributo existencial de Deus, eu também jamais deixarei de existir porque Deus é eterno. Essa é a diferença entre a metafísica do Fernando e a minha. Ele desaparece na primeira chupada do buraco negro. Eu fico até o fim e espero sobreviver para além dela.
Com essa esperança no coração, paro na calçada e olho para a janela do velho Alexandre. Lembro-me das palavras de um  personagem do filme o Gladiador, quando se refere aos seus mortos queridos: “ Eu vou vê-los outra vez. Mas ainda não. Ainda não.”