A Curva da Morte
Eu era muito criança quando fomos morar no alto da serra. O lugar era úmido e frio, e, para ganhar a vida, meu pai passou a cultivar bananas que eu vendia às margens da rodovia.
Passei uma boa parte da vida sentado em um caixote esperando pacientemente alguém parar o carro e perguntar o preço. A maioria levava sem reclamar, afinal, as frutas de um amarelo ouro eram doces como o mel.
Apesar do pouco movimento acidentes aconteciam. Passei a alertar aos motoristas.
Bom observador notei que quando o céu anunciava a última tempestade do mês de março, acontecia um acidente, cujo veículo envolvido era sempre um ônibus de passageiros.
O veículo vazava a defensa e descia a ribanceira deixando um rastro de destruição, ao fundo com grande estardalhaço, chocava-se em uma gigantesca pedra para depois ser absorvido pelo rio. O estrondo podia ser ouvido a quilômetros de distância.
O resgate exigia um dia inteiro de trabalho árduo e, às vezes, parte da noite. Depois que a polícia isolava o local, o caminhão munck chegava. Alguns homens, trajando macacão laranja, auxiliavam na descida do cabo de aço sobre as árvores revolvidas pela recente avalanche de ferro.
À beira do rio os bombeiros mergulhavam e a dezenas de metros de profundidade prendiam o gancho no eixo ou chassi. Depois de tudo preparado o sistema hidráulico era acionado e o emaranhado de ferro começava a ser içado lentamente. O cabo flexionado parecia emitir um triste lamento que até hoje ecoa em meus ouvidos.
A expectativa era grande quando o coletivo, jorrando água barrenta pelas janelas e portas quebradas, era retirado do fundo do rio.
O que deixava todos intrigados, era o fato de que nenhum corpo era encontrado em seu interior. Parentes das vítimas até contratavam equipes especializadas na vã esperança de enterrarem seus mortos, porém, as buscas eram sempre infrutíferas.
As autoridades, mesmo sem nenhuma prova concreta, atribuíam tanta dificuldade à correnteza que levava os corpos para cavernas submersas.
Apavorado, quando o verão se findava, passei a armar minha barraquinha bem próxima da curva da morte. Assim, a qualquer sinal de chuva forte, eu enchia a pista de galhos, pedras e pedaços de pau; foi a melhor forma que encontrei para chamar a atenção dos motoristas. Mas, mesmo com todo o cuidado e velocidade reduzida, o primeiro a chegar no topo da serra sempre ia parar no fundo do rio.
Eu já contava onze acidentes dessa magnitude quando naquele ano a seca foi intensa. Todos, ao contrário de mim, rezavam para chover. Até as bananeiras sentiram a estiagem e pararam de produzir. Sem bananas para vender, eu estava ajudando meu pai a regar as plantas quando um vendaval inesperado trouxe o cheiro da terra molhada. Dei um pulo quando um relâmpago fez com que o céu gritasse anunciando a temida tempestade.
Saí em disparada e ouvi meu pai gritar: "LEANDRO, VOLTA AQUI!"
Fingi não escutar, e do fundo da grota, com os pés descalços e feridos pelos espinhos, surgi às margens da rodovia. Escalei a defensa metálica e correndo feito um louco, cheguei à funesta curva. Para o meu desespero o asfalto estava coberto por um muco transparente e de cheiro adocicado. Escorreguei e girando, girando, girando, deslizei por toda a extensão. Por pouco não fui lançado ao abismo. Quando consegui ficar de pé, eu estava impregnado daquela substância fria e pegajosa.
Ainda tonto olhei para o céu e vi quando outro espetáculo de luz abriu o telhado do universo.
A chuva de forma torrencial começou a cair e, em meio a raios, trovões e pedrinhas de gelo, ouvi o barulho do veículo pesado que de forma preguiçosa chegava ao topo da serra. Tentei correr para o centro da pista; minha intenção era abrir os braços e gritar desesperado para que parasse. Foi em vão, meus pés sapatearam frenéticos naquela gosma nojenta... Caí, e ao me levantar senti o deslocamento do ar gelado produzido pelo veículo, que ganhou velocidade espantosa ao deslizar pelo asfalto gosmento.
Houve uma gritaria assim que o monstro indomável, no momento em que foi atingido por um raio, rompeu a barreira metálica. Depois só ouvi o som das árvores sendo massacradas por aquela força colossal.
Fui lançado na ribanceira e impulsionado pela enxurrada, era como se eu despencasse de um sonho: deslizei peixe por galhos e raízes revolvidas, até que bem lá no fundo, deparei-me com um terrível pesadelo.
***
O ônibus abrigava em seu interior muitas pessoas; algumas urravam de desespero e dor, e outras gemiam baixinho. Por sorte, ao contrário dos acidentes anteriores envolvendo esse tipo de veículo, esse não foi engolido pelo rio.
Muitos corpos mutilados ficaram pelo caminho, alguns pendurados nos galhos quebrados das árvores, pelo menos dessa vez haveria funeral. Mas, naquele momento, tinha coisas mais importantes para pensar... Eu precisava arranjar forças para ajudar os que ainda estavam vivos.
Levantei-me e sai em disparada, quase perdi os sentidos ao ver pela porta escancarada que havia outros ocupantes dentro do ônibus. Eles regurgitavam aquela baba transparente sobre as vítimas. As vivas momentaneamente paravam de gritar. Sim! Era por isso que eu estava com o corpo queimado e cheio de escoriações e não sentia dor: a estranha substância além de escorregadia tinha poderes anestésicos.
As imensas lesmas alimentavam-se da carne humana. Os gritos insanos dos que, infelizmente, ainda estavam vivos, enfraqueciam quando as vísceras eram arrancadas da cavidade abdominal, e só cessavam no momento em que o cérebro começava a ser sugado pelo orifício onde antes estava o nariz. Graças a Deus, não havia crianças vivas quando o banquete começou.
Os cadáveres que foram lançados para fora também tiveram o mesmo destino. As criaturas estavam por toda parte. Achei que seria o meu fim quando uma delas chegou bem próximo e encostou a cavidade babenta em meu pé. Uma língua comprida e fria foi projetada. O órgão serpenteou por todo o meu corpo.
A coisa não tinha olhos e nada que indicasse o nariz. Mas respirava. Pude sentir o hálito fedido quando estava com a boca escancarada bem próxima à minha.
Eu ainda estava impregnado por aquela gosma viscosa, e isso fez com que o bicho me confundisse com um deles. Não vejo outra explicação...
Depois que o alimento findou, as criaturas emitiram uma espécie de zumbido. Não demorou para que os animais da floresta viessem para com suas mandíbulas poderosas pudessem triturar e dar fim àquela tenebrosa tripulação de esqueletos.
Os seres eram inteligentes e se comunicavam, pois quando não havia mais vestígios, eles se reuniram e empurraram o coletivo, que deslizou pela grande pedra e foi direto para o fundo do rio.
Fui atrás deles, eu precisava saber onde se escondiam para falar com as autoridades.
As lesmas subiram gordas por entre a vegetação fechada e passaram espremidas por uma fenda que ficava em uma rocha bem embaixo da curva da morte. Contei tudo para os policiais e hoje vivo em um hospício.
Dizem que fiquei louco depois de ser atingido por um raio, que também levou para o fundo do rio mais um ônibus, cujo motorista e os cinquenta e três passageiros, jamais foram encontrados.
FIM