Andarilho
A vida não tinha sido boa para Augusto, andava de cidade em cidade, sem destino, pedindo esmolas, às vezes fazendo algum bico. Já fazia mais de dez anos que se tornara um andarilho, ou, como costumamos chamar aqui no Brasil, um mendigo. Alguém que não tinha um lar, um lugar para viver, uma família. Perdeu tudo. Sempre vinha à sua mente como tinha acontecido, mas pouco importava agora. Ligava apenas para o momento presente, conseguir alguns trocados, alguma refeição. Apesar de ter apenas 45 anos, aparentava muito mais, pois não tinha a possibilidade de manter uma higiene pessoal adequada, ficava exposto ao tempo, chuva, sol, além de não receber os nutrientes que o corpo humano precisa.
Augusto era moreno e devido a impossibilidade de banhos regulares, a sua pele aparentava sempre estar suja. Os cabelos eram negros, com várias mechas brancas, além de muito desgrenhado. Tinha ainda bigode e uma pequena barba. Trajava aquilo que encontrava, geralmente um chinelo de dedo bem gasto, bermuda e camiseta velhas. Quando caminhava pela estrada, sob o forte sol, apoiava-se em um cajado, que na verdade era um galho de uma árvore, incrivelmente reto, como se tivesse sido fabricado. Também servia como peça de defesa, uma vez que estava sujeito a encontrar pessoas ruins. Carregava sempre um saco pendurado nas costas, onde armazenava os seus pertences.
Tinha consciência da sua aparência, tanto que as crianças corriam quando o viam na rua. Na certa as mães delas haviam contado que ele carregaria os filhos desobedientes. Seria melhor se alertassem o máximo possível sobre a vida, para que não terminassem como ele.
Apesar do sofrimento perpétuo, Augusto não tinha ódio do mundo. Era apenas indiferente a dor e ao sofrimento humano. As pessoas não ligavam para ele e ele não se importava com as pessoas. O silêncio era a sua principal marca. O rosto sempre sério e pouco convidativo.
Dessa forma, não entendia porque se traiu e decidiu ajudar aquelas jovens. Por que abandonou a sua conduta e socorreu as garotas, uma vez que já tinha testemunhado tantos acontecimentos ruins? Mas ao ver o desespero de três meninas ao serem constrangidas por dois rapazes, decidiu agir. Pelo visto as três, que aparentavam pertencer à classe média alta, estavam sentadas à mesa, posta na calçada de uma lanchonete. Foram abordadas por dois rapazes altos e musculosos, com barba e óculos escuros. Pareciam saídos de uma forma. Ao convidarem as meninas para dar uma volta de carro com eles e ouvir um não como resposta, tentaram intimidá-las.
Quando Augusto passava, um deles estava segurando com força o braço de uma das garotas, que chorava e tentava escapar em vão. O outro ria, enquanto as duas amigas gritavam por socorro e tentavam ligar para a polícia. A rua onde isso acontecia tinha pouco movimento, pois era uma tarde de sábado. O dono da lanchonete presenciava tudo, mas estava com medo.
Então Augusto decidiu intervir.
- Deixe a moça em paz. – Falou.
Todos olharam para ele com uma surpresa tal como se um cachorro houvesse aprendido a falar.
- Eu disse para deixar a filha alheia em paz. – Continuou, indo em direção ao grupo.
Foi quando um deles, o que apenas olhava e ria da ação ruim do amigo, o ameaçou, usando o seu corpo para intimidá-lo. Isso não causou medo no andarilho, pois já tinha se deparado com situações piores.
O fortão se impôs e Augusto sacou uma pequena faca para ver se os assustava. Não sabia lutar e a sua condição física também estava ruim, apesar de ser um sobrevivente. Mesmo assim foi, pois conhecia toda sorte de animais em forma de gente que as selvas de pedras conseguem tolerar.
Quando viu a faca, o jovem que tentava intimidá-lo, simplesmente sacou uma pistola e disparou três vezes contra o peito de Augusto. Como estavam a menos de cinco metros um do outro, os tiros foram certeiros. O mendigo vacilou, deu dois passos para trás, levou seus olhos arregalados até o peito esquerdo, onde as balas tinham perfurado, tocou o sangue com a mão esquerda, dobrou os joelhos e caiu de bruços no chão.
- O que foi que você fez?! – Gritou o jovem que segurava uma das garotas. Ele a soltou e os dois entraram correndo para dentro da Hilux onde haviam chegado e arrancaram.
Ao ver o estranho caído, as três meninas não hesitaram, saíram às pressas da lanchonete e foram embora. O dono do estabelecimento praguejou. Esperava que aquela confusão terminasse sem que tivesse de chamar a polícia, mas agora não teria mais jeito. Pegou o celular, discou o 190 e aguardou.
Assim que o policial do outro lado da linha atendeu o comerciante soltou o grito mais medonho que a sua garganta já produzira. Ele estava com os olhos fixos no andarilho que começou a se levantar. O pedinte mexeu uma mão, depois a outra até que começou a se pôr de pé. O sangue que escorria do seu peito, há muito secara, bem como os buracos de bala, que já tinham cicatrizado, como se nunca tivesse sido ferido. A verdade é que não era a primeira vez que fora alvejado por uma arma de fogo, já tinha acontecido duas vezes antes. Ele pegou a faca e o saco do chão e saiu apressadamente do local. Iria em direção a outra cidade.
Enquanto caminhava, Augusto se lembrava de como a sua vida chegara até ali. Já teve posses, foi um homem rico, possuiu tudo na vida, até que se achou acima de de todos. Praguejou. E terminou amaldiçoado, um preço a se pagar pela sua arrogância. Não apenas perdeu o que tinha, mas foi condenado a purgar no mais completo sofrimento por um período de cinquenta anos a partir do pecado cometido. Ninguém seria capaz de lhe tirara a vida, até que esse tempo tivesse se passado, só então, teria permissão para descansar e se juntar ao mundo dos mortos. Ainda faltava quase 40 anos até a sua libertação.