Seduzido para o sacrifício
Sempre introspectivo. Fechado no próprio mundo. Gostava de mergulhar em livros, o que salvava a sua existência. Assim era Samuel, um rapaz que aos 20 anos tinha grande dificuldade em fazer amigos; preferia a companhia de pessoas idosas, tudo para assimilar o máximo de conhecimento. Era a sua motivação, uma vez que as demais interações sociais lhe eram tão limitadas. Especialmente em relação a Luanda, uma moça de porte médio, loira, rosto afilado e curvas avantajadas. Alguém que não dava muita bola para ele, que era alto, magro, com o rosto meio torto. Nada bonito. Isso não o impedia de suspirar profundamente toda vez que a via. E não eram poucas as oportunidades, uma vez que faziam o mesmo curso superior e eram colegas de classe.
Foi com grande surpresa que Samuel reagiu quando a Luanda lhe dirigiu a palavra. Ele estava de cabeça baixa, lendo um livro, no intervalo das aulas. Olhou para ela como se uma entidade espiritual tivesse descido a terra. Tudo o que a sua colega queria eram informações sobre o conteúdo de uma disciplina. Gaguejando e bastante vermelho, ele deu as instruções. Até estranhou, porque a garota dos seus sonhos era boa aluna. Destacava-se tanto nas notas quanto ele. No decorrer dos dias, Luanda voltou a procurá-lo esporadicamente. Fazia-lhe perguntas, até que em pouco tempo a conversa já fluía naturalmente. Samuel não queria se enganar, mas parecia que ela gostava dele.
Ricardo, uma das poucas pessoas da sua idade com quem Samuel falava, o alertou várias vezes que ela estava lhe “dando mole”, e que ele deveria “investir” na nova amiga. Até que tomou coragem e decidiu convidá-la para sair. Ali mesmo, na universidade, não esperaria.
Tal não foi a surpresa de Samuel quando ouviu o sim improvável de Luanda. Quase deu um pulo e um soco para o alto, como fazia Pelé, sempre que marcava um gol. “Deve ser a mesma emoção”, pensou. A positiva emoção por algo inesperado. O encontro foi agendado para a noite de sábado. Tudo estava programado.
Até que o dia chegou e Samuel foi, hesitante e lamentando não ter um carro melhor, pois iria buscar Luanda em um Fiat Uno Mille, ano 2008, bastante gasto. Era o que tinha. Teve a sorte do seu pai emprestá-lo. Via, contudo, os Corollas, Hilux, Jettas, que trafegavam pela cidade onde viviam, e sentia inveja. Pura e genuína. Mas foi assim mesmo.
Luanda se mostrou receptiva ao longo de toda a noite. Sorriu, não deixou o assunto morrer. Mostrava ser uma pessoa encantadora. Ele jamais imaginaria que o sonho de uma vida poderia se tornar realidade. Até que se beijaram. O coração de Samuel quase estourou de tanto bater, além de outros órgãos de seu corpo, que ganharam volume.
- Vamos para a minha casa? – Sussurou Luanda ao pé do ouvido do rapaz com muita malícia na voz. Falou de uma forma que Samuel teria ido até para o inferno se ela o chamasse.
- Mas e seus pais? – Ele indagou.
- Estão viajando. – Respondeu.
Ele acenou para o garçom e pagou a conta. Saíram os dois de mãos dadas. Inúmeros olhares os acompanhavam enquanto cruzavam o restaurante. Samuel apostava que pensavam: “como uma jovem tão bela pode sair com esse rapaz?”. Afastou tais ideias e seguiu feliz da vida.
Quando chegaram na mansão onde Luanda vivia com a família, ela desceu do carro para entrar por um dos portões do grande muro que cercava a residência, protegida por cerca elétrica e com câmeras de monitoramento, além de alarmes. Do interior, ela abriu um dos dois portões automáticos maiores, por onde os dois carros da família passavam para guardá-los. A luz estava muito fraca no pátio da casa. Ao estacionar e apagar os faróis, Samuel desceu do seu Fiat.
- Tá um pouco escuro aqui. – Disse ele calmamente.
Do outro lado do pátio, em uma parte mais clara, Luanda respondeu.
- É por aqui!
Ele olhou e a avistou parada, um pouco distante, em frente a porta de acesso ao interior da residência.
- Tô ind- A voz de Samuel foi interrompida.
Ao acordar percebeu-se deitado e com pulsos e tornozelos amarrados, formando um “x”, sobre uma maca de ferro, semelhante às dos hospitais. A visão estava embaçada, mas a recobrou rapidamente. Sua cabeça sangrava. Quando pôde distinguir melhor o mudo, viu Luanda ladeada por um homem e uma mulher, bem mais velhos que ela.
- Você é um rapaz de sorte. – Disse Luanda com ironia. – Já está conhecendo meus pais. – Miguel e Samantha, esses eram os nomes dos dois, o saudaram com um menear de cabeça.
Foi então que ele percebeu que estava sem camisa. Ergueu a cabeça e viu uma cruz invertida desenhada sobre seu peito esquerdo. Ao lado, havia uma pequena mesa de metal, com alguns objetos cortantes, com destaque para uma grande faca, estilizada, brilhando com a luz penumbra do ambiente. No quarto não havia mais nada. As paredes foram pitadas com tinta preta e a claridade era garantida por grossas velas vermelhas. Montes delas. À sua frente havia um grande pentagrama branco desenhado na parede.
- O que farão comigo? – Perguntou Samuel aparentando medo.
- Vamos oferecer a sua morte ao “Senhor as Moscas” – Disse Miguel. – Minha filha fez bem o trabalho em atraí-lo até aqui. Já faz algum tempo que não fazemos sacrifícios, daí demos o aval para que ela agisse. Precisamos de vítimas para manter o nosso luxo. Luanda se saiu muito bem, não foi?
Samuel olhou incrédulo para a garota. As lágrimas começaram a escorrer do seu rosto.
- Você acha que alguém como eu gostaria de você? – Indagou a jovem enquanto sorria.
- Já chega de conversa. Vamos cumprir com o ritual. – Falou o pai.
Dirigindo-se até a pequena mesa, ele pegou a faca maior e começou a fazer uma prece enquanto a erguia com as mãos unidas, acima da cabeça. Estava ao lado de Samuel, pronto para enterrá-la em seu peito. As palavras proferidas pelo homem eram incompreensíveis. Até que depois de alguns minutos baixou o objeto pontiagudo com grande força.
O grito de dor preencheu todo o recinto. A faca havia entrado profundamente na barriga de Miguel, que vacilou para trás, olhos arregalados e incrédulos. Sangue jorrava de sua boca. Como se não bastasse, a lâmina ainda foi puxada para a direita, derramando as suas vísceras no chão. Ele caiu, suspirou e morreu.
O choro de Samuel começou a se transformar em uma risada convulsiva, cada vez mais alta e estridente. Luanda e sua mãe não acreditavam no que viam e nem no que Miguel tinha feito a si mesmo. Por que se matara?
- Deve estar lamentado por ter me trazido até aqui. – Disse Samuel levantando-se após as cordas se desamarrarem “sozinhas”. – Eu sempre soube que você nada sentia por mim. Quis ver onde isso ia dar...Na verdade, durante um momento, eu quis acreditar, pois a idolatrava. Seria bom se os meus sonhos tivessem virado realidade. Mas não. Também fico triste por isso.
As duas haviam recuado, sem dizer nada. E quando fizeram menção de fugir para a porta, perceberam que o chão estava repleto de serpentes, centenas delas. Grandes jiboias, corais, cascavéis, jararacas, sibilavam e arrastavam-se pelo chão em uma orgia infernal. Impossível passar por sobre elas sem serem picadas.
- Vocês escolheram a pessoa errada para sacrificar. – Ele continuou. – O Barão Samedi, de quem sou servo, não abandona os seus. Com a vinda dos haitianos para o Brasil, conheci alguns bons idosos que me ensinaram tudo sobre o Senhor dos Cemitérios. Fiquei impressionado com essa religião, o Vodu, e, principalmente, pelo Barão. Hoje vejo que todo o meu estudo e devoção a ele valeu a pena, pois fui salvo. Acho que tenho muito a realizar com a ajuda dessa influência. Nessa briga de entidades, a minha parece ter sido a vencedora.
- Perdoe-nos. – Implorou Samantha, puxando o braço da filha para que se ajoelhasse também diante do jovem que há pouco tempo chorava como um garotinho frágil. Os olhos de Luanda esboçavam terror e incredulidade.
Samuel olhou para as duas por um momento. Com um misto de desprezo e asco. Fez silêncio, fechou os olhos, como se meditasse, abriu-os lentamente e disse:
- Hoje não.
Momentos depois três corpos jaziam no chão. Um com a barriga rasgada. Os outros dois estavam deformados, inchados pelo veneno das dezenas de picadas de cobra que receberam. Contemplou a obra e viu no que se tornara. Vestiu a sua camisa e ao caminhar para a saída, parou e olhou para trás. Disse:
- Obrigado.
Em cima da maca onde Samuel estivera amarrado momentos antes, o Barão Samedi o olhava malvadamente. Calça social preta, fraque, uma jiboia sobre os ombros, uma caveira no lugar do rosto e um chapéu branco. Além do charuto em uma das mãos. Fora ele quem conduzira a mão armada de Miguel para a própria barriga, desatara os nós e invocara as serpentes. Não esboçou reação ao ver o jovem se retirar.
É sempre um problema subestimar as pessoas, pois nunca sabemos com quem vamos nos deparar.