“A morte não era o que pensávamos.”
- Clarice Lispector -
O que é um fantasma? Um espírito condenado a vagar pelo mundo dos vivos? Uma lembrança impregnada nas paredes de uma velha casa? Um amor? Um medo? Uma dor?
Seria o delírio de uma mente que aos poucos se apaga ou apenas o reflexo de quem o vê? Poderia ser uma música sussurrada pelo vento ou, ainda, um arrependimento nascido na alma?
O que sou eu afinal?
Inesperadamente fui tomado pela plena consciência da minha existência imaterial. Sei que estou morto, pois estou certo de que um dia já estive vivo e, apesar de não me lembrar de fatos concretos, recordo-me dos sentimentos que estar vivo proporciona.
Lembro-me de coisas como a alegria de uma boa conversa aos pés do fogo, o prazer de ler um livro, o encantamento de ouvir uma música e, sobretudo, lembro-me do amor que senti quando a vi pela primeira vez e da felicidade estonteante que me dominou quando tive um filho (1).
Mas essas são lembranças por demais suaves. Sei que não são elas que pesam sobre mim encarcerando minha alma por todos tempo em que estou preso aqui, observando o rosto belo, doce e gentil daquela que fora minha obediente e humilde esposa.
A mulher que aceitara meus erros e que acabou por definhar quando descobriu os meus pecados, sem jamais me acusar de qualquer falta.
Compreendo agora que o que me encerra aqui é a lembrança de que, mesmo tendo a amado, nunca fui capaz de retribuir a alegria que ela me proporcionou enquanto agia como se fosse seu único dever me amar e me fazer feliz.
Sim! Minha prisão é a consciência de que, sem saber que não teria todo tempo do mundo, me eximi de lhe dar o amor e o cuidado que ela merecia e neguei-lhe minha juventude, mesmo após ela ter me entregado toda a sua existência.
Acorrenta-me a certeza de que fui tolo, pois as delicias das noites boemias jamais alcançaram a beleza de seu mais simples sorriso ou o prazer que seu toque me proporcionava.
É o poder do remorso, e não de uma força física, que me aprisiona no interior deste lugar decrépito que se tornou meu inferno, meu purgatório.
São os erros cometidos, o desejo de ser perdoado e o orgulho que me impediu de pedir seu perdão, as recordações que fazem com que eu me arraste por essa existência espectral.
Então, a súbita consciência de tal realidade me impulsionou a abandonar aquela cela de paredes opacas e sem vida e sem que nada me impedisse, vaguei em direção ao jardim e, mesmo sabendo que aquilo era desnecessário, talvez por pura força de um hábito arraigado, movi a porta da frente que rangeu com um som estridente e cortante comum aos lugares assombrados.
Por um instante, a luz do sol cegou-me sem me aquecer. Senti uma forte onda de frio percorrer minha espinha. Saí para a varanda e avancei em direção ao jardim. Tudo ali me pareceu ao mesmo tempo igual e diferente e eu senti medo.
Por um segundo, olhei para trás e o que vi não foi a minha velha casa, mas sim uma casa jovem, com as paredes brancas, envolvida por um jardim de lírios regados por uma bela moça de semblante feliz.
Então, livre de tudo aquilo que até então me encarcerava, continuei caminhando sentindo que me desfazia até que, no instante seguinte, éramos apenas eu e o nada.