O ESPELHO DO PORÃO parte 6
- Pode dizer, Beth.
-Meus pais nem sempre foram bons pais. Sabe, eles elogiam e tudo mais, mas a solidão é muito ruim. Eles me dão atenção, porém eu sinto que falta algo a mais. Nem todas as posses, viagens ou nada material que me deem faz com que me sinta completa. A solidão aqui nesse quarto é cruel. Por isso cansei de me esconder de vocês e quis tanto vossa vinda aqui.
- Mas amiga, você nem possui redes sociais. Poderia fazer um Facebook pelo menos.
- Ai, sabe o que eu faço? Promete que não vai me estranhar?
- Pra ser sincera, estranhar você já não me é mais novidade depois de ontem.
- Eu converso com o espelho. Às vezes, fico por horas olhando para ele e conversando. De dia, é claro, até porque não acontecesse nada; mas à noite que tenho medo por causa das ideias que meus pais colocavam na minha mente. Mas não é só isso... – ela fecha os olhos para contar - Uma vez eu estava olhando para o espelho à noite, porque disse a mim mesma que isso era invenção da cabeça dos meus pais. Era um espelho oval que eu tinha na minha antiga casa. E então...
- E então o quê? Para, amiga, que você já está me assustando.
- O espelho refletiu minha imagem, mas meu rosto mudou. O reflexo fazia tudo, porém não sorria. Apenas me olhava sério. De repente, eu abri os braços diante do espelho e o reflexo ficou imóvel.
- Amiga, chega! Eu vou para a casa. Suas histórias estão mirabolantes demais. Vou pegar minha mochila e voltar de ônibus mesmo. Avise o Douglas que fui indo na frente.
- Calma, amiga, não me deixa. Ela pode aparecer.
- Ela quem, Elizabeth? – disse com voz áspera.
- Mary. Ela que fica no espelho.
- Quê? Quem é Mary?
- Ela possui uma casa. E fica no porão. Posso te provar que é real. Não é coisa da minha cabeça. Ela quem raptou Renata. Ela quem raptou o namorado dela, e ela quer me raptar também, mas eu preciso vencer esse medo e ela irá embora.
- Elizabeth Ferrera, escute aqui. Eu vou descer naquilo lixo de porão e esfregar na sua cara que ali não tem nada! Se você estiver com alguma brincadeira sem graça comigo, eu nunca mais falo com você, está entendendo?
- Eu juro – começa a chorar – Eu juro. Ela está lá. Somente vencendo esse medo eu posso expulsá-la dali. Eu deixo você fazer o que quiser com nossa amizade se eu estiver mentindo.
As duas descem as escadas e chegam até a porta do porão. Abriram-no, e Adriana começou a descer na frente, com passos rápidos e indignação devido às histórias que ouvira.
- Me dá esse lampião aqui. – tomou da mão da amiga que, temerosa, a acompanhava com a mão em seu ombro.
Adriana viu o pano branco sobre o grande espelho oval na parede vazia.
- Ela está aí...
- Ai, para de frescura. – removeu o pano com força. – Está vendo? Não há nada...
A voz de Adriana é interrompida ao vislumbrar seu reflexo, dois reflexos de Beth e, ao ver um reflexo semelhante ao de Renata ensanguentada com as mãos sobre o espelho, se desespera.
- Beth, o que é isso? Douglas! Douglas! Vem aqui correndo!
Quando olha para a amiga, seu olhar está maligno, como se sondasse todos os medos da alma assustada de Adriana:
- Acho que o Douglas vai demorar a acordar... E você também.
Num momento, Adriana sentiu uma tontura e se afastou da moça. Ao olhar o espelho novamente, enxerga o reflexo de Beth duplicado, se mexendo dentro do espelho, enquanto o reflexo de Renata se afastava da moldura oval. Ela desmaiou e, antes de fechar os olhos, duas cartelas de comprimido para dormir caem em sua frente:
- No Douglas, a dose foi maior... – com voz sussurrada. – Bons sonhos, amiga...
Continua...